4 de março de 2011

Olhar Moacyr


O fascínio da síntese (Folha de São Paulo)
Moacyr Scliar
          Existe uma idéia, comum sobretudo entre aqueles que começam a escrever, segundo a qual é fácil escrever um conto (uma idéia para a qual Mário de Andrade talvez inadvertidamente tenha colaborado ao declarar que "conto é tudo aquilo que a gente quer chamar de conto"). Nada mais ilusório, porém.
          Em termos de literatura, o conto representa um desafio extraordinário. Existe, em fisiologia, uma lei do "tudo ou nada": quando um músculo isolado recebe um estímulo elétrico crescente, ele a princípio não se contrairá, mas, quando o fizer, será com o máximo de sua energia. O conto é assim: nasce com o máximo de energia ou fica imóvel.
          Há para isso explicação. O conto é a forma mais antiga de narrativa, o começo de toda literatura. Sob essa forma são narrados os mitos gregos e as parábolas bíblicas, que inspiraram inclusive um Franz Kafka. O contista, no fundo, está em busca da síntese, da economia que caracterizavam estes simples, mas transcendentes relatos. Dalton Trevisan é um grande exemplo nesse sentido, uma vez declarou que seu ideal era escrever haicais. Objetivo semelhante perseguem os autores de minicontos, um gênero muito especial.
          A revista "El Cuento", editada pelo mexicano Edmundo Valadés, reuniu centenas de textos desse tipo. Um exemplo, de Thomas B. Aldrich:
          Uma mulher está sentada só em sua casa. Sabe que não restam mais ninguém no mundo: todos os outros seres morreram.
          Batem à porta. 
*** 
Viés 
(em O imaginário cotidiano)

"EUA mantêm juros, mas com viés de alta." (suplemento Dinheiro da Folha, 19 mai. 1999)
"Juro cai para 23,5%; viés de baixa continua." (idem, 20 mai. 1999)

          Ele a olhava com viés de baixa. Ela o olhava com viés de alta.
          Ele a olhava com viés desenvolvimentista. Ela o olhava com viés monetarista.
          Ele a olhava com viés "um pouco de inflação não faz mal". Ela o olhava com viés recessivo.
          Ele a olhava com viés telescópico. Ela o olhava com viés microscópico.
          Ele a olhava com o viés olímpico da utopia. Ela o olhava com o viés labiríntico do mercado.
          Ele a olhava com viés histórico. Ela o olhava com viés contábil.
          Ele a olhava, no mínimo, com viés Keynes, e em momentos de maior desespero, recorria até o viés Marx. Ela o olhava com viés Milton Friedman (e escola de Chicago).
          Ele a olhava com viés "con los pobres de la tierra quiero yo mi suerte echar". Ela o mirava com viés "business is business, my friend".
          Ele a olhava com viés bandeiras ao vento. Ela o olhava com viés gráficos e tabelas. Ele a olhava com viés romântico, mas admitindo o moderno. Ela só olhava com viés pós-moderno.
          Ele a olhava com viés filme iraniano, ou seja, arte. Ela o olhava com viés George Lucas, ou seja, bilheteria.
          Ele se desesperou; será que nunca vamos nos olhar com o mesmo viés, perguntou, em tom de súplica. Eu não posso mudar meus olhos, respondeu ela. Nem eu posso mudar os meus, replicou ele. Mas eu tenho aqui uns óculos que compatibilizam o viés, disse ela. Eu quero estes óculos, disse ele, esperançoso. Eu vendo estes óculos, disse ela, mas você pode fracionar o preço em várias parcelas, com juros. Felizmente os juros estão com viés de baixa, disse ele. Mas nos Estados Unidos estão com viés de alta, disse ela.
          Ele a olha com viés desconsolado. Ela o olha com viés implacável.

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