3 de dezembro de 2010

Vocabulário de afetos IV

A graça das meninas
Velasquez_As meninas
Mário de Carvalho (escritor)
Hoje, as dez escolhidas calham a ser, por ordem de relembrança, e com considerandos, as seguintes: 
Menina – Valéry Larbaud impressionou-se com a palavra entre outras. Opiniões de escriba diletante, aliás estimável, que sabia tanto de Português, que aprendeu, como eu de lagares de azeite, que não aprendi. Não é uma das mais mais, é a mais! Não foi por acaso que Velasquez escolheu As Meninas para título do quadro, tão profusamente picassiado. Traduz doce ternura, uma vênia faceta, uma sugestão de contida brincadeira e alegria, um respeito pela graça ainda frágil. Doces consoantes que murmuram, um “i” que salta e ri.
Meiga – Vem de mágico e não lhe está longe. O oposto espreita, irmanado em megera, galego, “meigueira”. Venham bruxas, feiticeiras, meigueiras, mas não antes de eu contar as areias do mar. Tudo me seja perdoado em meigueira.
Delir – Evola-se nos ares, funde-se nas cores, morre manso. Há muitos vocábulos para o efeito, mas este parece-me o mais elegante e fatal.
Mesura – O sentido da medida, a recusa dos extremos. Prefiro-a na acepção arcaica e não na que sobrou de rapapés e vênias. Seja mesura atitude de prudência, deferência, cautela e discrição. Assim devera eu ser, se não fora não poder.
Brando - ... e piadoso, o mover dos olhos. Os quais me matam.
Mirto – que antigamente se escrevia “myrtho”. Uma vez mostraram-mos num lugar de frutas e flores, ao lado dos diospiros e das sardinheiras. Não, o myrtho verdadeiro não era aquele. Atapetava as florestas umbrosas que nunca existiram na Grécia. De par com as boninas, misteriosas e rimáveis.
Pairar – vem, da linguagem náutica, como uma parte muito apreciável, e insuspeitada, do nosso vocabulário corrente. O “pairo”, “ferrado todo o pano, etc”. prefiro pensar na águia ou no milhano, em silentes círculos de ameaça, de “pólo em pólo” como diz a velha canção. A gaivota também bem paira, mas é outra coisa.
Saudade – porque não, a saudade? Já milhões de mariconços e obscurantistas iluminados, de século em século, tentaram gastar o conceito e pindericar de vez a palavra. E também adejaram os místicos, com os seus mantos de bolor, forrados a lantejoulas de escamas de pescada. Sobrevivendo-lhes, eu te saúdo, saudade.
Formosa – fermosa era outra coisa. Ou fremosa, fremisnha, se bem ajades... Sedia la fremosa seu sirgo trocendo, as voz manselinha fremoso dizendo ... “manselinha” também era boa palavra para as dez mais.
Velida – Arcaísmo, pois, magnífico. Bailemos agora todas três, ai. Por cada dez neologismos devia ser obrigatório repor um arcaísmo. Eu proponho este.
Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal. 

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