6 de dezembro de 2010

Invocações (memória e ficção) - outro trecho

 Sergio Sant'Anna
          No dia seguinte, o peru, enquanto ser vivo, já estava completamente esquecido, sem lástima, para tornar-ne cheiro tentador de carne assada que se espalhava por toda a casa, e depois gosto delicioso, do qual se desfrutava sem nenhuma culpa. O almoço de Natal da família era sempre realizado em nossa casa, e a ele compareciam os dois irmãos de minha mãe com suas mulheres, sendo que somente um dos casais tinha uma filha. Quanto aos pais de minha mãe, apenas minha avó era viva, e morava conosco. Da família de meu pai raramente vinha alguém, pois moravam, meus avós e três tias, em Catalão, no interior de Goiás. para chegar a Catalão, naquele tempo, era preciso fazer uma demorada viagem aérea num bimotor DC3 até Araguari, em Minas, seguida de outra demorada etapa terrestre.
          Entre os dois tios, aqui no Rio de Janeiro, eu e meu irmão tínhamos preferência indisfarçável pelo mais velho, Luiz, nos sentíamos totalmente seduzidos por ele que, não tendo àquela época filhos, era uma espécie de segundo pai, mais liberal e divertido, para nós. Mulherengo, nos contava em segredo suas experiências amorosas, revelando para nós os assuntos do sexo, totalmente vedados em nossa casa. E, o mais importante, detinha a senha mágica que nos abria os bastidores do Fluminense Futebol Clube, pois, além de jornalista esportivo, foi algumas vezes Diretor de Imprensa do clube, o que nos permitia ter acesso, em sua companhia, aos jogadores do time tricolor, uma verdadeira glória para nós. E, se esta é uma história de fantasmas, é de fantasmas tricolores, entre eles o de minha mãe, torcedora fervorosa do Fluminense e que ia muitas vezes ao estádio de Laranjeiras -, posteriormente, aos jogos do time no Maracanã.
          Mas, como um texto que se esconde atrás de outro texto, um fantasma que se oculta sob outro fantasma, eis que, de repente, de regiões mais profundas, surgiu outro morto e passei eu a invocá-lo no lugar de minha mãe, não apenas para que me guiasse neste texto como para que figurasse nele como seu personagem principal, com quem tomarei diversas liberdades da ficção, sem deixar de ser fiel à sua pessoa.
          Esse fantasma, de um morto mítico, que pairava como o grande ausente de nossas festas de natal, é o de um outro tio materno, que não cheguei a conhecer , pois somente minha irmã, dos filhos de meus pais, era nascida, e tinha um ano de idade quando ele morreu de tuberculose, em 1939, aos vinte e seis anos. Seu nome era Carlos, e a família verdadeiramente cultuava sua memória. Além de médico, esportista de várias modalidades (seu apelido era Secura, por ser "seco" por esporte), criador de passarinhos, excursionista de montanha, fotógrafo, dotado de uma bela voz, segundo se dizia, e tocador de violão, fora goleiro amador do Fluminense, já no início do profissionalismo no futebol carioca. Na mesma pasta em que vou guardando os rascunhos deste texto há uma foto dele com o time tricolor que disputou e venceu o campeonato carioca da segunda divisão, reservada a amadores, em 1932, enquanto na primeira divisão jogavam os profissionais do clube. Uma outra foto que havia em nossa casa e que me causava fortíssima impressão, mostrava-o com uma cobra não venenosa enrolada no braço. Era seu "bicho de estimação", criado num viveiro de fundo de quintal e, às vezes, ele saía com ela no bolso para de repente mostrá-la na rua ou no bonde, a fim de assustar as pessoas. Sua coragem e sangue-frio, segundo minha mãe, levavam-no a fazer defesas arriscadíssimas, caindo aos pés de atacantes adversários, e era comum que chegasse em casa todo esfolado e cheio de mercuro-cromo na pele.
          Esse tio, sempre o amei, até idolatrei, sem conhecê-lo. Então acho natural que, ao invocar minha mãe morta, tenha chegado até ele, ou mesmo a recebê-lo, e é aí que começo a entrar no território da ficção, da fantasia. Sim, porque tive a exata sensação de estar com ele em certas situações, como entre as traves de um gol, num jogo do Fluminense, no estádio do tricolor em Laranjeiras, digamos que contra o Botafogo. Ele joga na partida preliminar, no início da tarde, entre os times da segunda divisão dos dois clubes e, num momento em que a bola é lançada pelo ponta-direita botafoguense sobre a área tricolor, Carlos sai do gol, com segurança e elegância, para saltar e agarrar a bola sobre a cabeça de todos. É um lance comum de partida, mas revivo-o num clima onírico, quase fazendo a defesa junto com o tio, ouvindo o barulho da bola cortando o vento, o estádio em silêncio, como num sonho. Logo a seguir, num outro ataque do Botafogo, no finalzinho do jogo, que o Fluminense está ganhando por 1 a 0, a bola é chutada no ângulo pelo centroavante alvinegro e Carlos, numa ponte espetacular, joga-a para escanteio, agora sob gritos e aplausos intensos da torcida. Dessa vez não ousei ser mais do que espectador, mas postado logo ali, atrás do gol, ouvindo o barulho, o impacto da bola sendo chutada e depois defendida.
          Esse barullho de uma bola sendo chutada ou defendida, ou batendo numa trave ou se aninhando no fundo de uma rede, ouvi-o muitas vezes, de verdade, com emoção, durante a adolescência, acompanhando o Fluminense em jogos de juvenis, aspirantes e profissionais, em campos pequenos do Rio, onde um torcedor podia se colocar bem atrás de um gol, separado dele apenas por um alambrado. mas é principalmente de treinos do Fluminense em Laranjeiras, aos quais eu ia com meu tio Luiz, quando menino e adolescente, que o som da bola retorna aos meus ouvidos.
           Pulando os canos grossos de ferro que separavam, naquele tempo, o campo da arquibancada ou da tribuna social, no Fluminense eu ia me sentar, com meu irmão e outros meninos, atrás da meta defendida por outro Carlos, o grande Carlos Castilho, goleiro do Fluminense e da seleção brasileira. Atuando entre os reservas, contra o ataque titular, para ser mais exigido, Castilho, num simples treino, mostrava toda a sua categoria, ora fazendo defesas difíceis ou mesmo dificílimas, ora apenas mostrando o seu grande senso de colocação, tudo o que se confirmava nas partidas oficiais, tendo ele recebido da torcida o apelido de São Castilho. E jamais me esquecerei de uma falta cobrada, com barreira, pelo fenomenal meia-armador Didi, naquele tempo também tricolor, fazendo a bola subir e depois descair, na sua famosa folha seca; bola que Castilho foi buscar no ângulo direito, espalmando-a para escanteio. para melhor treinar os jogadores, o técnico Zezé Moreira mandou repetir a cobrança, e Didi, dessa vez, meteu a bola no ângulo esquerdo, mas Castilho defendeu-a do mesmo jeito. O técnico ordenou nova cobrança e Didi, marotamente, chutou a bola rasteirinha junto à barreira, o que quase nunca fazia, e Castilho foi pego de surpresa e ficou parado, vendo a bola entrar no canto direito. E os dois craques riram e se abraçaram.
          Se perguntassem ao menino que eu era dos dez aos catorze anos quem eu mais admirava no mundo, acredito que responderia sem hesitação que o Castilho. Achava-o, inclusive, bonito, contrariando a opinião de minha mãe. E, observando-o nos treinos e jogos, quantas vezes não imaginei meu tio Carlos jogando ali naquele espaço, em Laranjeiras?
          Carlos Castilho se suicidou em 2 de fevereiro de 1987, aos cinquenta e nove anos. Devastado por uma depressão, às vésperas de voltar para a Arábia Saudita, onde era treinador de um clube, pulou da sacada do apartamento da ex-mulher, Vilma, de quem era muito amigo. Segundo ela, e conforme publicado na revista Placar de 16 de feveriro de 1987, ele ficou andando de um lado para outro no apartamento e esteve na sacada, olhando fixo para baixo; ela o chamou para dentro, ele veio, ela lhe deu um comprimido de Lexotan, mas, de repente, em passos decididos, ele voltou para a sacada e se jogou.
          Senti a morte de Castilho quase como se fosse de uma pessoa da família e, como outros, não pude deixar de associar, numa coincidência macabra, seu mergulho no espaço aos seus saltos para grandes defesas. De acordo com as leis cruéis e inflexíveis da religião católica, os suicidas perdem suas almas, são condenados para sempre ao inferno. Existiriam, então, demônios, e, para os mais desesperados, que são os suicidas, mais desespero, total e definitivo. Como amar um Deus assim, que condenaria ao suplício eterno algumas de suas criaturas? Então passo por cima dessa prescrição sinistra e invoco também o Castilho, para que me ilumine neste texto, e que ele seja também uma espécie de oração em sua homenagem. Para que, caso subsistam as almas para além da vida, a sua esteja acolhida na paz e na felicidade eternas.
Para ler o trecho inicial do texto "Invocações (memórias e ficção)" de Sergio Sant'Anna, clique aqui. CONTINUA.


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