14 de dezembro de 2010

Rebeldia épica - caminho mais importante do que meta

Circe transformando os homens de Ulisses em bestas - Giovanni Benedetto Castiglione
 O autor épico não avança para alcançar o alvo e sim, de antemão, dá-se um alvo, para onde ele avança, examinando tudo em volta atenciosamente. O herói épico demonstra reflexão. A força de sua alma atua tão livremente que ela pode separar uma onda por assim dizer dentre todo o oceano de sentimentos que lhe corre por todos os sentidos; pode sustê-la, dirigir a ela a atenção e tornar-se consciente de que percebe essa atenção. No texto épico, o caminho é mais importante do que a meta. (cf. Staiger em "Conceitos fundamentais da poética") 
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Na épica, não há como escapar do destino. O que o autor mostra é como, em cada ação por menor que seja, ele já está presente e atuante, tal como se percebe neste trecho da "Odisséia", de Homero, trad. Jaime Bruna:
          Escapamos, por fim, aos rochedos e à terríveis Caríbdis e Cila. Chegamos logo à magnífica ilha do deus, onde havia belas vacas de fronte larga e muitas nédias ovelhas de Helio Hipérião. Então, ainda no mar, a bordo do escuro barco, ouvi os mugidos das vacas ao relento e os baldios das ovelhas. Assaltaram meu coração as palavras do cego adivinho, o tebano Tirésias, e as de Circe de Eéia, que tanto me recomendou evitasse a ilha de Helio, alegria dos homens. Falei, por fim, aos companheiros, com peso no coração:
          - Escutai, companheiros, as minhas palavras, por mais que estejais sofrendo, para eu vos revelar os vaticínios de Tirésias e os de Circe de Eéia, que tanto me recomendou evitasse a ilha de Helio, alegria dos homens, pois ali, disse ela, está nosso perigo mais terrível. Por isso, tocai o negro barco ao largo da ilha.
          Assim falei e o coração se lhe partiu. Prontamente me respondeu Euríloco com palavras odiosas:
          - Tu és cruel, Odisseu; tens robustez incomum e teus membros não se cansam. Deves tê-los todos feitos de aço, tu que, em vez de permitires aos companheiros, mortos de cansaço e de sono, que ponham pé em terra, quando podemos preparar uma ceia saborosa numa ilha em meio das ondas, mandas continuar errando pela rápida noite, no brumoso mar, arredados da ilha. Nascem da noite os ventos ruins, perdição dos navios. Como se pode escapar a um fim abismal, se vier de surpresa uma borrasca de Noto, ou de Zéfiro violento, ventos que mais embarcações despedaçam até sem aprovação dos deuses soberanos? Não! Atendamos agora ao convite da negra noite; preparemos uma ceia sem nos afastarmos do ligeiro barco. Quando clarear, embarcaremos e singraremos o vasto mar.
         Assim falou Euríloco e os demais tripulantes o apoiaram. Reconheci, então, que um deus meditava nosso infortúnio e, proferindo aladas palavras, lhes disse:
         - Verdadeiramente, Euríloco, vós me constrangeis porque sou um só; eia, porém, prestai-me todos um poderoso juramento de que, se depararmos uma manda de vacas ou grande rebanho de ovelhas, ninguém por seu ruim desatino matará uma vaca ou uma ovelha, satisfazendo-vos com a comida que Circe imortal nos forneceu.

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