4 de dezembro de 2010

Vocabulário de afetos (o último)

O elemento terra
Rui Lage (poeta)
Não me sinto mais próximo de certas palavras do que de outras, nem consigo escolher palavras prediletas, por isso optei por contabilizar a ocorrência de palavras no meu último livro, “Berçário”, tentando perceber de quais me socorria mais vezes, e cheguei à seguinte conclusão:
Terra – Não a terra que significa mundo, planeta (ou sequer a terra natal), mas a terra enquanto matéria orgânica e mineral. A terra como origem, fonte, raiz, alimento, como destino último e comum dos homens, lugar de eterna criação e destruição, princípio de vida e de morte.
Pensamento – Como valor de substantivo concreto, e não abstrato. Coisa entre coisas. Uma espécie de antena, atenta aos padrões, ritmos e texturas da natureza. Mais próximo dos sentidos (e dos instintos) que da consciência ou do entendimento. Um “metasentido”. Uma palavra com conotações de tranquilidade, ao contrário da consciência, que é um conceito trágico, que divide, que angustia (que “faz de nós todos covardes”), que coloca problemas de alteridade. O pensamento como instrumento adequado à contemplação da natureza. Coisa para usar com os olhos, como no “Guardador de Rebanhos” (uma doença, portanto).
Pedra – Aquilo em que esbarra o pensamento. Não é possível ir além da pedra, a mais perfeita escultura da natureza. Não há duas iguais. Nada resiste ao tempo como uma pedra. Também não há nada que me lembre de forma tão evidente a lei da gravidade, à qual os homens também cedem, como dizia Heine. Pode ser polida, suave e circular, como um seixo. E os seixos cantam quando batem uns nos outros. As pedras habitam lugares no mundo onde é impossível aos homens sobreviver: no fundo dos oceanos, encravadas no gelo dos pólos, nos rios que seguem o seu curso no coração de inacessíveis florestas.
Poço – Quando olhamos para dentro de nós, não vemos nada, mas escutamos o nosso eco. Um eco amplificado, límpido, fresco. O auto-conhecimento. Pode ser um lugar que cai para dentro de nós (do abismo de nós). E no poço costuma haver rãs que mergulham para dentro de si, como no poema de Bashô.
Sombra – A substância de que somos feitos, logo a seguir ao tempo. O desconhecido. O que ocupa os interstícios do tempo e do espaço (e do cosmos: a “matéria sombra” ou negra). Reino do indefinido, de secretos desígnios, daquilo que se está a fazer, a construir longe do nosso olhar.
– O acumular do tempo sobre as coisas que amamos. O que nos corre nas veias.
Caminho – No sentido topográfico, e não enquanto metáfora da existência, do percurso do homem na terra. O caminho que serpenteia através das florestas, que trepa pelos montes e pelas encostas. Que desaparece, por vezes, por entre as árvores, ou sob a vegetação rasteira. Ou que gostamos que desapareça.
Folhas – No solo, estalando e crepitando sobre os nossos passos. Indecisas nos ramos das árvores. Encharcadas nas margens dos rios, coladas às pedras. A fermentar na manta morta. A rescender. Iluminadas por dentro, contra a luz do sol.
Insecto – Não é um ser deste mundo. É o encontro perfeito entre o reino animal, vegetal e mineral. Um hino à imaginação da natureza. Perfeito como uma jóia, ou como um relógio. Imagino sempre que os insetos são feitos de ínfimas engrenagens, rodas dentadas, minúsculos mecanismos de precisão. Elegante no vôo. Faúlha. O ruído que fazem os insetos é o latejar da própria natureza. Até nos sítios mais isolados e longínquos, lá está o inseto, atarefado. O mundo seria um lugar triste sem os insetos, embora a tendência seja para achar precisamente o contrário. O meu inseto favorito é o louva-a-deus do poema de Fiama Hasse Pais Brandão.
Ossos – São a face mineral dos seres vivos, a sua estrutura profunda, aquilo que se encontra depois de percorrer sucessivamente a pele, a carne e os órgãos, e, no entanto, podem doer quando chega o tempo húmido, ainda antes de nos apercebermos da sua chegada, como se possuíssem poderes sobrenaturais. É a última coisa que deixamos na terra, depois de desaparecermos, aquilo que de nós mais resiste e que lembra que existimos outrora.
Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal.

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