Flávio Franklin
Nascemos em uma favela no entorno do
Cemitério do Sambaqui na Cidade do Rio de Janeiro. Éramos dois garotos
particularmente alegres e comunicativos, bons filhos e bons alunos. Porém,
quando amigos nossos entraram para o tráfico de drogas, ainda adolescentes, nossas
famílias resolveram se mudar antes que fossemos cooptados pelo crime. A minha
foi para Nova Friburgo, onde tínhamos parentes.
O pai dele conseguiu emprego como
porteiro de edifício em Copacabana. Trabalhava na portaria enquanto a esposa
fazia faxina para os moradores. O casal gostou da comodidade de morar no local
de trabalho. Já o menino, acostumado a viver entre amigos, sofria de solidão.
No colégio, não estava fácil fazer amizades e, no edifício, ninguém sequer
olhava para o filho do porteiro.
Felizmente, não
demorou para que um professor o incentivasse a frequentar a biblioteca da
escola, onde descobriu livros de mágica. Como tais livros foram parar em um
colégio público, ninguém sabia explicar. Talvez algum mágico aposentado os
tenha doado. O fato é que o rapaz se apaixonou pelo ilusionismo.
Chegou a flertar com a idéia de
tornar-se prestidigitador, mas o mestre dissuadiu-o dizendo que a profissão estava
em extinção por impossibilidade de competir com os efeitos especiais do cinema.
Disse também que estava para se iniciar no colégio um curso de contabilidade, noturno
e gratuito. Como ele era bom em matemática, podia perfeitamente ser contador. Acrescentando
que os contadores ganhavam bem, conseguiu convencer o pupilo a tomar esse rumo,
mas ele não abandonou a mágica.
Depois de praticar em segredo durante
anos, tomou coragem e resolveu fazer uma apresentação para os colegas de
trabalho. Foi um sucesso! Ninguém imaginava que o chefe da contabilidade,
aquele solteirão, pudesse ser mágico. O segundo espetáculo, apesar do repertório
renovado, não foi tão bem recebido. Ficou claro que não haveria uma terceira
exibição.
Desiludido, parou
com tudo que se referia ao ilusionismo. Ele mesmo não sabia dizer se desistira
definitivamente ou se apenas recuperava o fôlego para novo recomeço. Ficou a
espera de algo que o ajudasse a se decidir e aconteceu uma tragédia.
No entardecer de um sábado, um
ônibus circular forçou passagem pelo meio de uma passeata. Era para ser uma
manifestação pacífica de professores reivindicando melhores condições de
trabalho, mas um grupo mascarado, para atender a seus objetivos, sejam lá quais
fossem, pôs fogo no ônibus. Houve pânico, muitos passageiros se feriram e seis
morreram carbonizados, dentre eles, os pais de meu amigo que voltavam de uma
festa de aniversário.
A morte dos pais fez o filho
repensar a própria vida: gostava de televisão, cinema, teatro, espetáculos
musicais, circo e, em particular, de mágica. Devia ter tentado ser artista e
não contador. Que não fosse mágico, que fosse ator, cantor, bailarino, diretor,
contrarregra, qualquer coisa, menos contador. Somente agora percebia o
mal-entendido de que fora vítima. Ele gostava, e muito, do professor que lhe
indicou o caminho da contabilidade e não da contabilidade em si. Essa, era
forçoso admitir, detestava.
Não suportou o fracasso na carreira
de mágico amador, a morte trágica dos pais e a constatação de que abominava a
profissão.
Suicidou-se.
Fui ao velório. A capela
transbordava de gente! Ele não era um sujeito popular, nem especialmente amado,
mas era um profissional respeitado e a empresa deve ter recomendado aos
empregados que comparecessem. O caixão estava coberto pela capa de mágico, com
a face negra a mostra e a vermelha voltada para baixo. Em cima, a cartola e a
varinha. No geral, as pessoas conversavam sobre trabalho. Algumas, no entanto, estavam
compungidas. Um padre surgiu e encomendou a alma do finado, sem se importar com
o fato de ele não ter sido crente. Findo o ritual, como ninguém pedisse a
palavra, um agente funerário e cinco jovens que se voluntariaram seguraram nas
alças e levantaram o esquife com extrema facilidade. Mas não caminharam como
seria esperado. Cochicharam. Os demais se interrogavam com o olhar enquanto o caixão
era recolocado no lugar e aberto. Estava vazio. O corpo desaparecera. Depois de
um instante de estupefação, a plateia irrompeu em aplausos e houve até quem
gritasse “bravo”.
Eu era o único dos presentes para
quem o truque tinha sido previamente revelado. Saí de lá me perguntando por que
o defunto, que não acreditava em vida após a morte, tomara tanto trabalho por
esse momento de glória póstuma.
O falecido foi meu
amigo de infância. Estivemos apartados durante muito tempo, mas pouco antes de
morrer, ele me procurou para pedir que eu comparecesse a seu velório e observasse
a reação das pessoas. Para concordar com tal bizarrice, exigi que me revelasse
o que tramava.
Depois de narrar os
infortúnios que o levaram a decidir se matar, ele me tranquilizou dizendo que
me queria apenas como espectador do velório. O serviço, propriamente dito,
tinha sido encomendado a outro amigo de infância, o Joãozinho Silva, que se
transformara em chefão no tráfico de drogas. Em nome da antiga amizade, o
bandido aceitou a incumbência, assim como eu estava prestes a aceitar a minha. O
“Coisa Ruim”, como era chamado, não via dificuldades em desaparecer com o
corpo. O cemitério ficava em seu território e seria invadido à noite. Os vigias
eram conhecidos e já recebiam propina para fazer vista grossa para os
movimentos do bando.
O jazigo também já estava comprado e
contratado um plano funeral personalizado especificando que o corpo passasse a noite
anterior ao velório na capela do cemitério, que o caixão fosse velado fechado e
coberto pela capa, cartola e varinha mágicas do falecido.
A visita da faxineira fora marcada para
hora exata em que desejava ser encontrado. Ao lado do corpo ficaria o aviso com
nome e telefone do agente funerário que cuidaria de tudo.
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