Jogos, ritos e mitos
Numerosas e bem
documentadas pesquisas mostram que a origem da maior parte dos jogos que
conhecemos encontra-se em antigas cerimônias sagradas, em danças, lutas rituais
e práticas divinatórias. Assim, no jogo de bola, podemos perceber os vestígios
da representação ritual de um mito em que os deuses lutavam pela posse do sol;
a dança de roda era um antigo rito matrimonial; o pião e o tabuleiro de xadrez
eram instrumentos divinatórios.
Pintura Olmeca ("povo borracha") mostra o jogo de bola como experiência sagrada. |
Ao contrário do ludus, mas de maneira simétrica, o jocus consiste em um puro mito, ao qual
não corresponde nenhum rito que lhe dê aderência à realidade.
[Brinquedo] é aquilo que
pertenceu – uma vez, agora não mais –
à esfera do sagrado ou à esfera prático-econômica.
Giorgio Agamben em O país do brinquedo – reflexões sobre a
história e sobre o jogo
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Do jogo à festa
Do jogo à festa
Por que será que existe no universo uma criatura que gosta tanto
de Festa, que adora jogar e divertir-se? – É a pergunta que mobiliza e encanta
todo desafio histórico! E a resposta nos traz as Musas de Mnemosine: porque
jogo é diversão e ambos fazem a Festa. Divertir-se é separar-se do que se deve
ser, toda diversão troca a necessidade pela liberdade. E jogar é evadir-se de
um mundo de regras e deveres, é encaminhar-se para o mundo do inesperado e da
surpresa na criação da inventividade. De que o homem se diverte na Festa? – Ele
se diverte das prescrições e restrições. Com que o homem se diverte na Festa? –
Ele se diverte com a liberdade. É a Festa da Memória que nos faz esquecer as
injunções e nos joga na diversão da liberdade e nas peripécias da criação.
Como esquecimento positivo
a Festa perde o caráter frívolo e passivo e converte para o mais elevado
patamar de ação e atividade: a invenção de ser, a inventividade de se criar a
si mesmo. O mais ativo que o homem pode ser não é, portanto, no trabalho,
quando produz alguma coisa e sim no empenho com que se dedica a traçar o perfil
de sua fisionomia. Os demais seres vivos vivem a sua vida e nada mais. Só o
homem vive com o Nada, i. é, sobrevive à vida em sua vida. O homem é assim o
único ser vivo que, para viver, como homem, não lhe basta viver, tem de
empenhar-se todo em criar a vida. É convidado constantemente a assumir a
responsabilidade de cuidar da vida, de dedicar-se a viver.
Emanuel Carneiro Leão, em Pensamento, Festa da Memória
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É a festa. Gritos e
canções, as vozes, o estampido alto e transmitido dos foguetes. Pelo seu
magnetismo elementar, a festa atrai o homem solitário, o que repousava na casa,
um homem grande, com duas mãos maciças, a cabeça amarela debaixo do sol. Anda
como um urso. Então pára e põe-se a ouvir o barulho da festa. Esteve muito
tempo a dormir, a comer e a pensar. Regressa agora ao mundo veemente e luminoso
das pessoas com os seus gestos e palavras largas, a sua paixão de pessoas. Ele
vem à festa. A festa não é uma coisa menor. Bem: é uma fábula, uma ficção
verdadeira. Porque os homens semearam os campos e cuidaram dos animais. Com
sol, neve e chuva, num circuito inexorável. Sempre. Dormiram, acordaram,
esgotaram-se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm mãos. Respiram sombriamente
sobre as mãos. Depois param. Então criam a festa. As forças irrompem do fundo;
fazem vacilar o fino e precário equilíbrio da terra. Para lá da lei abolida, às
coisas tornam-se visíveis, com uma intensidade, uma transparência anterior:
sinais, vozes, tudo. Como se o mundo inteiro cavasse uma ressaca no corpo de
cada um, e essa límpida desordem deixasse o coração escorrido. É a festa dos
homens.
Herberto Helder em Os passos
em volta
Jogos às margens – As
primeiras estórias de Guimarães Rosa
Os
protagonistas de Primeiras estórias
farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres. São todos, em grau
menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma
paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda
não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e
da ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras
ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em
símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa
a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte
permanente de poesia.
Paulo Ronai em Os vastos espaços
As estórias são “primeiras” porque são
originais em dois sentidos: por conterem sua origem em si mesmas, o que significa que elas não
cessam de criar sentido, e por não se parecerem com nenhuma outra, o que
equivale a dizer que elas inventam um mundo e o homem que o habita.
Maria Lúcia
Guimarães de Faria, em Aporia e alegria
Não gosto
de falar em infância. Um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes
incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de
criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos,
ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e
revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia
disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de
verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de
poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar
estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem,
misturando as melhores coisas vistas e ouvidas.
“As margens das alegria” abre-se com a
frase categórica: ESTA É A ESTÓRIA. Por que se diz que esta é a estória,
e qual é o significado das margens da alegria?
A estória se articula na ritmanálise de
dois movimentos antagônicos, que configuram a dialética do elemento aéreo: o
entusiasmo do voo que eleva o Menino ao ápice da experiência vital e a angústia
da queda que o degrada ao vórtice da vivência mortal.
A alegria demasiado humana é frágil,
constantemente ameaçada e interrompida, como um riacho sem fonte própria,
sempre sujeito a secar-se, uma vez que não promana de si mesmo, de um núcleo
propulsor interno, mas depende de circunstâncias alheias a seu curso.
A estória total do Menino, em seus dois
segmentos complementares, é regida pela liminaridade, que preside à gênese, ao
desenvolvimento e à consumação de sua travessia existencial.
O limiar é o cenário poético da dança dos
contrários, que dramatiza o existir.
Maria Lucia Guimarães de Faria em Aporia e alegria
por Nelson Cruz |
Vânia Resende em O menino na literatura brasileira
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Exercício para se aventurar pela ficção
Jogar com a gente mesmo, sendo um outro
Jogar com a gente mesmo, sendo um outro
1. Depois de ler o conto "As margens da alegria", de Guimarães Rosa, escolha uma foto sua da infância. De preferência uma foto da qual você não tenha recordações do momento em que foi tirada. Olhe para você. Olhe
bem para a fotografia e a descreva. Tome por base o texto de Cristóvão Tezza, "O duplo". Para baixa-lo, clique aqui.
2. Descreva uma viagem feita durante a sua infância, na 3a. pessoa do singular.
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Duas boas referências de críticos para uma leitura criativa
de "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa
de "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa
"A
originalidade das Primeiras Estórias
e a estrutura arquitetônica do livro", de Maria
Lucia Guimarães de Faria. Para baixar, clique aqui.
"Os vastos espaços", por Paulo Rónai. Para ler o texto, clique aqui.
Cena de teatro de sombras em "As Margens de Alegria", por Alexandre Fávero |
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