2 de junho de 2014

Anotações em torno do jogo e à margem das "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa

Jogos, ritos e mitos
       Numerosas e bem documentadas pesquisas mostram que a origem da maior parte dos jogos que conhecemos encontra-se em antigas cerimônias sagradas, em danças, lutas rituais e práticas divinatórias. Assim, no jogo de bola, podemos perceber os vestígios da representação ritual de um mito em que os deuses lutavam pela posse do sol; a dança de roda era um antigo rito matrimonial; o pião e o tabuleiro de xadrez eram instrumentos divinatórios.
Pintura Olmeca ("povo borracha") mostra o jogo de bola como experiência sagrada.
        A potência do ato sagrado reside precisamente na conjunção do mito, que enuncia a história, e do rito, que a reproduz. Se a este esquema nós comparamos o do jogo, a diferença mostra-se essencial: no jogo, apenas o rito sobrevive, e não se conserva mais que a forma do drama sagrado, na qual todas as coisas voltam sempre ao início. Mas foi esquecido ou abolido o mito, a fabulação em palavras ricas de significado que confere o seu sentido e a sua eficácia.
        Ao contrário do ludus, mas de maneira simétrica, o jocus consiste em um puro mito, ao qual não corresponde nenhum rito que lhe dê aderência à realidade.
       [Brinquedo] é aquilo que pertenceu – uma vez, agora não mais – à esfera do sagrado ou à esfera prático-econômica.
Giorgio Agamben em O país do brinquedo – reflexões sobre a história e sobre o jogo
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Do jogo à festa
          Por que será que existe no universo uma criatura que gosta tanto de Festa, que adora jogar e divertir-se? – É a pergunta que mobiliza e encanta todo desafio histórico! E a resposta nos traz as Musas de Mnemosine: porque jogo é diversão e ambos fazem a Festa. Divertir-se é separar-se do que se deve ser, toda diversão troca a necessidade pela liberdade. E jogar é evadir-se de um mundo de regras e deveres, é encaminhar-se para o mundo do inesperado e da surpresa na criação da inventividade. De que o homem se diverte na Festa? – Ele se diverte das prescrições e restrições. Com que o homem se diverte na Festa? – Ele se diverte com a liberdade. É a Festa da Memória que nos faz esquecer as injunções e nos joga na diversão da liberdade e nas peripécias da criação.
        Como esquecimento positivo a Festa perde o caráter frívolo e passivo e converte para o mais elevado patamar de ação e atividade: a invenção de ser, a inventividade de se criar a si mesmo. O mais ativo que o homem pode ser não é, portanto, no trabalho, quando produz alguma coisa e sim no empenho com que se dedica a traçar o perfil de sua fisionomia. Os demais seres vivos vivem a sua vida e nada mais. Só o homem vive com o Nada, i. é, sobrevive à vida em sua vida. O homem é assim o único ser vivo que, para viver, como homem, não lhe basta viver, tem de empenhar-se todo em criar a vida. É convidado constantemente a assumir a responsabilidade de cuidar da vida, de dedicar-se a viver.
Emanuel Carneiro Leão, em Pensamento, Festa da Memória
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É a festa. Gritos e canções, as vozes, o estampido alto e transmitido dos foguetes. Pelo seu magnetismo elementar, a festa atrai o homem solitário, o que repousava na casa, um homem grande, com duas mãos maciças, a cabeça amarela debaixo do sol. Anda como um urso. Então pára e põe-se a ouvir o barulho da festa. Esteve muito tempo a dormir, a comer e a pensar. Regressa agora ao mundo veemente e luminoso das pessoas com os seus gestos e palavras largas, a sua paixão de pessoas. Ele vem à festa. A festa não é uma coisa menor. Bem: é uma fábula, uma ficção verdadeira. Porque os homens semearam os campos e cuidaram dos animais. Com sol, neve e chuva, num circuito inexorável. Sempre. Dormiram, acordaram, esgotaram-se. Vivem na escuridão, no vácuo. Têm mãos. Respiram sombriamente sobre as mãos. Depois param. Então criam a festa. As forças irrompem do fundo; fazem vacilar o fino e precário equilíbrio da terra. Para lá da lei abolida, às coisas tornam-se visíveis, com uma intensidade, uma transparência anterior: sinais, vozes, tudo. Como se o mundo inteiro cavasse uma ressaca no corpo de cada um, e essa límpida desordem deixasse o coração escorrido. É a festa dos homens.
Herberto Helder em Os passos em volta
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Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo.
Jogos às margens As primeiras estórias de Guimarães Rosa
         Os protagonistas de Primeiras estórias farejam esses acontecimentos, adivinham esses milagres. São todos, em grau menor ou maior, videntes: entregues a uma ideia fixa, obnubilados por uma paixão, intocados pela civilização, guiados pelo instinto, inadaptados ou ainda não integrados na sociedade ou rejeitados por ela, pouco se lhes dá do real e da ordem. Neles a intuição e o devaneio substituem o raciocínio, as palavras ecoam mais fundo, os gestos e os atos mais simples se transubstanciam em símbolos. O que existe dilui-se, desintegra-se; o que não há toma forma e passa a agir. Essa vitória do irracional sobre o racional constitui-se em fonte permanente de poesia.
Paulo Ronai em Os vastos espaços

               As estórias são “primeiras” porque são originais em dois sentidos: por conterem sua origem  em si mesmas, o que significa que elas não cessam de criar sentido, e por não se parecerem com nenhuma outra, o que equivale a dizer que elas inventam um mundo e o homem que o habita.
Maria Lúcia Guimarães de Faria, em Aporia e alegria

             Não gosto de falar em infância. Um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, estragando os prazeres. Recordando o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada. Fui rancoroso e revolucionário permanente, então. Já era míope, e nem mesmo eu, ninguém sabia disso. Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagem, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas. 
Guimarães Rosa em Perfil do autor, por Renard Perez
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            “As margens das alegria” abre-se com a frase categórica: ESTA É A ESTÓRIA. Por que se diz que esta é a estória, e qual é o significado das margens da alegria?
         A estória se articula na ritmanálise de dois movimentos antagônicos, que configuram a dialética do elemento aéreo: o entusiasmo do voo que eleva o Menino ao ápice da experiência vital e a angústia da queda que o degrada ao vórtice da vivência mortal.
         A alegria demasiado humana é frágil, constantemente ameaçada e interrompida, como um riacho sem fonte própria, sempre sujeito a secar-se, uma vez que não promana de si mesmo, de um núcleo propulsor interno, mas depende de circunstâncias alheias a seu curso.
        A estória total do Menino, em seus dois segmentos complementares, é regida pela liminaridade, que preside à gênese, ao desenvolvimento e à consumação de sua travessia existencial.
            O limiar é o cenário poético da dança dos contrários, que dramatiza o existir.
Maria Lucia Guimarães de Faria em Aporia e alegria
por Nelson Cruz
No conto “As margens da alegria”, a figura principal é um garoto, chamado apenas de menino, lembrando a universalidade e anonimato do ser humano frente à imensidão do universo. A sua trajetória se inicia com uma viagem: [...] a viagem corresponde a um círculo, obedecendo a um movimento que se identifica com a própria progressão da existência humana. O Menino é a personagem central que experimenta as seguintes etapas: saída para o mundo, conhecimento do mesmo e volta para o lugar de origem, após uma significativa experiência de vida.
Vânia Resende em O menino na literatura brasileira

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Exercício para se aventurar pela ficção
 Jogar com a gente mesmo, sendo um outro
1. Depois de ler o conto "As margens da alegria", de Guimarães Rosa, escolha uma foto sua da infância. De preferência uma foto da qual você não tenha recordações do momento em que foi tirada. Olhe para você. Olhe bem para a fotografia e a descreva. Tome por base o texto de Cristóvão Tezza, "O duplo". Para baixa-lo, clique aqui.
2. Descreva uma viagem feita durante a sua infância, na 3a. pessoa do singular.
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Duas boas referências de críticos para uma leitura criativa
de "Primeiras estórias", de Guimarães Rosa
"A originalidade das Primeiras Estórias e a estrutura arquitetônica do livro", de Maria Lucia Guimarães de Faria. Para baixar, clique aqui
"Os vastos espaços", por Paulo Rónai. Para ler o texto, clique aqui.
Cena de teatro de sombras em "As Margens de Alegria", por Alexandre Fávero

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