8 de junho de 2014

Ao pé da escada

Daniel Willmer

Talvez escutar Philip Glass gere um texto, uma tristeza, um assombro. A musica não é melancólica, mas algo nostálgica, lenta, em terças menores, repetitiva quase.
 
          Folheando um álbum, vejo uma vida em lacunas. Vejo imagens que sempre soube, que me acompanharam por toda a vida, revisitadas de tempos em tempos, sem contudo ter qualquer lembrança associada a elas. O olhar se volta para onde não existe memória, apenas reconhecimento. O tempo vai adiante e volta, deformado, ao sabor da arrumação, do caber nas páginas, das imagens espalhadas, no ir e vir de um arquivo de retalhos.
          Olhando, me pergunto até quando vai a infância e prontamente respondo: até os doze em 10 de janeiro. Data-marco. Nesse dia, a casa e o tempo desabaram. Me espanto, me dou conta de que nunca tive sete anos, ou cinco, ou mesmo dez. Não existe prova, imagem nenhuma destas idades. Memória portanto é invenção. O que sentiu, viveu ou pensou aquela criança aos onze anos? Nessa infância lacônica, defeituosa, também não existe cidade, rua, apenas a casa, ou melhor, quase sempre  o jardim da casa.
          Me detenho numa foto em que me vejo junto aos cães da casa. Estou no centro, sentado numa curta escadaria que parece se fechar aos poucos pela perspectiva. Duas jardineiras com samambaias e sem flores, uma de cada lado, acompanham os degraus. Adivinho que seja inverno, pois estou de calças e não há flores. Em todas as casas onde vivi sempre tinha muitas flores. Gosto de flores. Estou sentado ao pé da escada com Alexandre, o dálmata. Repouso uma das mãos em seu dorso pintado. Talvez o afague. A outra mão parece quieta sobre o degrau. Meus joelhos estão juntos enquanto os pés, afastados para os lados, são escudos contra o mundo. Estou de sapatos. (Sempre usava sapatos fechados. Ou então ficava descalço.) São os sapatos marrons. Uso-os sem meias. Com eles, chutava pedras, jogava futebol de chapinha ou de bola de papel no colégio. Tirava apenas para tomar banho ou quando ia para a cama. Os bicos estão marcados, lanhados.
       Visto calça e camiseta azuis. Uma das minhas combinações favoritas. Roupas que eu exauria, antes de, muito infeliz, jogá-las fora.  Quando o fazia era porque os remendos eram mais abundantes do que o tecido, e os furos impossíveis de serem cerzidos.  Noto que a gola da camiseta está frouxa. Por anos destruí golas. Da roupa herdada de meus irmãos maiores, não gostava: eram velhas, eram deles. Gostava daquelas que sempre haviam sido minhas.  No entanto, destruía suas golas com raiva animal. Elas eram as rédeas do cavalo em que me transformava. Rédeas que eu mesmo me impunha para me refrear. Trincava os dentes, respirava forte. Com intensidade crescente, num acesso curto, desabava pelo chão com um riso louco, a camiseta toda deformada e babada (cavalo não cospe), enchia o peito de ar e batucava o chão com mãos e pés. Rosnava como os cães e gatos para parecer bravio, um cavalo louco. (Não sabia que cavalos não rosnam, resfolegam – não conhecia a diferença, fraco de vocabulário.) Foram vários anos e muitas camisetas. Mais tarde, depois de me tornar ladrão de cigarros e fumar escondido,  passei a usar camisas e a raiva seria extravasada por bombas.
          Na foto, olho para a lente da câmera com desconfiança, de soslaio, sutilmente infeliz, a cabeça de lado e o queixo para baixo. Não tinha o costume de ser fotografado, desgostava. Noto as olheiras e o semblante algo triste. Nessa época não tinha amigos, apenas companheiros de classe. E não me encaixava com a minha família. Eu, a minha turma; eu, a família, tínhamos caminhos diversos. Eu era do jardim.
          Lentamente, subo os seis degraus da escada. Vejo que há um outro cão, grená, escondido na sombra, e na varanda mais acima, muito alta e coberta, duas cadeiras de ratam, de onde se podia desfrutar da vista do centro do Rio e do jardim cuidado por meus pais e o jardineiro. Lá dentro, fica um aposento inacessível: a sala de música de meu pai. Majestosa, suntuosa, com seus seis metros de altura e os oito de lado, as enormes portas, cortinas pesadas fabricadas por minha mãe, sofás proporcionais, e as caixas de som: monstros de mais de metro de altura e quase dois de largura onde cabiam 102 autofalantes. O seu orgulho. Desenvolvidas por um amigo engenheiro, povoavam as noites com vozes e orquestras, vindas de elepês estereofônicos ou não. Acima, em meu quarto, tudo vibrava pelos tímpanos, os tutti, os dós de peito, enquanto que, sob o travesseiro, por um radinho de pilha, a rádio Nacional me embalava o sono.
          O pensamento aderna por outros cantos, outras lembranças, ao sabor do solo de piano. Olho de relance outra imagem da família, e a memória me leva a uma prima que por aqueles tempos conheci, mas que não encontro na foto. E a garota bela e simples de quem não sei sequer refazer o rosto me sussurra: estórias descansam no invisível.
5 de junho de 2014

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