Ruth Lifschits
Um
dia acordei sufocada, pesada. Uma sensação de culpa imensa tinha me tomado, sem
volta e sem perdão, e me colava na cama. A ponta de um sonho tinha ficado na
minha lembrança, algo raro. Meus sonhos fogem de mim quando acordo. Chego a
vê-los me abandonando e o esquecimento se
instalando. Mas, naquela manhã, a culpa ficou e com ela vieram
lembranças antigas, de mais de 30 anos: os chinelos de papai caídos no jardim
com as solas viradas para cima! Azar maior impossível.
E me voltaram tempos de criança, com
minhas práticas sagradas do dia a dia – desvirar sapatos e chinelos por ventura emborcados; não passar de baixo
de escadas e desviar o olhar se surgisse um gato preto na frente. Tudo para não
atrair a má sorte. Não adiantou. Numa tarde de domingo, janela do banheiro
aberta, quis ver a rua e esbarrei nos chinelos de meu pai sobre o batente da
janela. Eles foram bater lá em baixo com as solas para cima. Voei escada
abaixo, mas as portas trancadas me
travaram. Todos os alarmes de perigo zoavam na minha cabeça. Faça algo, rápido,
o azar está chegando. Mas meus pais estavam dormindo, e as chaves com eles. As
janelas abertas e as belas grades de ferro batido trançado impediam entradas ou
saídas de emergência. “Daqui a pouco eu desviro os chinelos”, pensei, mas
acabei me esquecendo de fazê-lo. A tarde se foi entre sucessivas brincadeiras
com meus irmãos e a menina da casa ao lado. Veio a segunda-feira com a ida à
escola, deveres de casa, mais brincadeiras e, no dia seguinte, às 10 e 30 da
manhã papai morre em um acidente aéreo. Eu não desvirei os chinelos a tempo!
Esse pensamento invadiu logo a minha cabeça assim que soube do desastre.
Reagi à culpa e à notícia da morte
de meu pai criando algo que nos salvasse, a mim e a ele: amnésia. Meu enredo
interior: papai não tinha morrido no acidente, estava perdido sem saber quem
era e sem saber de nós. Um dia voltaria para casa. Era só esperar. E como
esperei, quieta e calada, porque nunca contei sobre os chinelos para ninguém.
Deixamos São Paulo de volta ao Rio. Fomos para a Tijuca, casa de minha avó
materna e de lá para a Urca. Eu tinha 6 anos quando ele morreu e até os 12 anos
alimentei esperanças de que ele iria voltar. Quando a campainha de nosso
apartamento tocava eu achava que era ele, finalmente. Até que um dia precisei
de um documento para levar para o colégio. Mamãe não estava em casa e eu
resolvi pegar a certidão numa pasta que ela guardava no guarda-roupas. A busca
me colocou frente a frente com a certidão de óbito de papai. Comecei a ler e
não terminei. A descrição do que foi encontrado, como foi identificado, acabou
com minhas esperanças. Ele estava morto mesmo, sem volta. Os chinelos virados,
o azar, meu feito. Fiquei desesperada, chorei muito naquela tarde. Mamãe chegou
e estranhou me ver deitada na cama, de cara para a parede. Inventei dores de
cabeça, cólicas, algo assim e logo me ignoraram. Mas eu não era mais a mesma,
uma tristeza enorme passou a me habitar. Minha família percebeu a mudança mas
acabaram achando que eram efeitos de já ser mocinha, da adolescência. Mas eu
sabia. Passei a tomar o maior cuidado com tudo que fazia. Não queria provocar o
azar, dar chances para ele atacar. E fui me tornando obediente ao extremo,
incapaz de colar ou matar aulas, procurando acertar em tudo pois se algo
acontecesse eu poderia dividir a responsabilidade com os adultos que me
mandavam fazer isso ou aquilo, proceder dessa ou daquela maneira. Vejo meus
irmãos conversarem sobre “artes” que fizeram na adolescência e eu nada tenho
para contar. Não transgredi, nem fila de cinema eu furei.
Um dia fui absolvida. Foi assim:
estava em Búzios, picando cebolas para o molho do churrasco. Marido, filhos e
amigos no pátio, cervejando e conversando, de olho na carne sendo assada e eu,
na cozinha, preparando os
acompanhamentos: farofa, molho à campanha, arroz e salada. Sem perceber,
comecei a falar comigo, o que adoro fazer quando fico sozinha. Conversa vai,
conversa vem, quando vi estava conversando com meu pai. Ele estava encostado na
pia, de braços cruzados, me olhando
picar cebola. Eu falava de meus filhos, de umas cismas do meu marido e, de
repente, ele me disse “Filha, esquece os chinelos emborcados. O avião ficou sem controle. Foi um acidente”.
A cena está viva em minha mente. Consigo
ver os detalhes da roupa que ele usava: camisa branca de abotoar na frente,
mangas curtas, calça caqui de pregas na cintura e bainha inglesa; sapatos
marrons, de amarrar e meias brancas. Ele estava me olhando com ternura. E assim
ficou por um tempo – calado e me olhando. A imagem foi se desfazendo,
lentamente. Eu com a faca no ar, boca
aberta, olhos arregalados, enquanto um entendimento quente me invadia e
acalentava.
Brejal, 22 de março de 2014
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