24 de setembro de 2010

Crônica feminina

Pilar Carvalho
judoepoesia.blogspot.com
           Seu nascimento tinha sido motivo de comemoração: Doninha, apesar de ter engravidado várias vezes, só conseguira parir menino-homem, como se diz. Foi somente quando estes já estavam crescidinhos, que deu à luz uma menina, Gracinha. Uma garotinha mirradinha que cabia na palma da mão do pai, só as duas perninhas fininhas, pendiam para além das bordas dos dedos calosos. Não condizia exatamente com a imagem que aparecia nos seus sonhos, mas isso não importava. Era sua filhinha, sua menina.
          No dia seguinte, Doninha mandou que furassem as orelhas da menina. Não queria que duvidassem do sexo da criança. O par de brincos estava guardado no fundo de um velho baú: tinha sido comprado quando esperava seu primogênito.
          Com dez dias de nascida, a orelha esquerda de Gracinha infeccionou e Doninha foi obrigada a retirar o mimo das orelhas da menina. Doninha teve de esperar dolorosos quarenta dias para poder recolocar os brinquinhos.
          Mais alguns dias se passaram até que as orelhas inflamaram novamente. Para a tristeza de Doninha, a menina teve que ficar sem os brincos outra vez.
          Ao longo dos três primeiros anos de vida, o problema continuou intermitentemente. Doninha decidiu que precisava comprar um par de brincos novos para Gracinha. Ela acreditava que assim resolveria o problema para sempre.
         Apesar dos brincos novos, as orelhas continuaram se inflamando como antes. E, ao final de mais dois anos de sofrimento, Doninha decidiu que Gracinha não precisava mais dos brincos. Com lacinhos nos cachinhos longos ninguém a iria confundir com um menino.
          Parece que a cisma da mãe passou para a filha, pois agora era esta que não se conformava com as orelhas nuas: dia sim, dia não, sonhava que estava usando lindos brincos. Adolescente, Gracinha não se incomodava com o corpo que parecia ter se esquecido de crescer. O que a deixava muito frustrada era não poder usar brincos como todas suas colegas faziam.
         Um dia Gracinha descobriu um artefato que se prendia à orelha por meio de pressão: um pequeno beliscão no lóbulo da orelha e o brinco ficava lá, presinho, igualzinho como o outro.
         É bem verdade que às vezes sentia um grande alívio ao retirá-los, mas Gracinha estava feliz da vida e, finalmente, sentia-se totalmente feminina.
         Os brincos de pressão passaram a ser a mania de Gracinha e ela gastava cada tostão que ganhava na compra de um novo par.
         Casada, Gracinha foi morar na capital e lá acabou por preencher dezenas de caixinhas com sua coleção que, com o tempo, apresentava brincos de todos os tamanhos, cores e formatos.
Gracinha não era como essas mulheres que levam uma hora escolhendo o que vai vestir, mas levava quase uma hora escolhendo o par de brincos que melhor combinava com a roupa e com a ocasião.
          A coleção de Gracinha chegou a ocupar três enormes gavetões de uma cômoda comprada só para guardar todos aqueles brincos. Ali havia dezenas de caixinhas e cada uma abrigava um par de brincos. Ela conhecia todos eles e não se incomodava de emprestá-los, mas só sossegava quando os via de volta ao seu lugar.
          Quando sua netinha caçula, Mariana, completou dez anos, Gracinha decidiu que era hora de parar de gastar com essa mania de comprar brincos. Foi então que fez uma promessa: só voltaria a comprar um novo par de brincos para a ocasião de formatura de sua neta na faculdade. Gracinha era uma mulher de muita fé e adoraria ver a neta realizando o sonho que quando menina sonhara para si: formar-se numa grande universidade, com festa, discursos, beca e capelo.
         Treze anos após o ter feito a promessa, Mariana formou-se na faculdade. Vestida impecavelmente com a beca e o capelo, lá em cima do palco, avistou aquela figura miúda de cabelos encanecidos que sorridente ostentava brincos novos e reluzentes.

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