Elizabeth Bishop em “Esforços do afeto”, trad. Paulo Henriques Brito
Quando me formei em Vassar, em 1934, durante a grande depressão, ainda era muito difícil encontrar emprego, e os salários eram muito baixos. Talvez exatamente por isso, eu e muitas de minhas colegas nos achávamos na obrigação de arranjar emprego, mesmo que não precisássemos trabalhar. O espírito da época – e, naturalmente, de minha turma – era radical; éramos todas adeptas de um vago e puritano socialismo. Talvez julgássemos haver algo de virtuoso em trabalhar para ganhar muito menos do que nossas famílias haviam gastado com nossa educação. Foi por esse motivo, por precisar de fato de um pouco mais de dinheiro, por simples curiosidade e, creio eu, por puro masoquismo que me interessei por um anúncio publicado no Times de domingo. Era de um curso por correspondência, a Escola de Redação U.S.A.
Primeiro fui entrevistada pelo dono, ou presidente, como ele se autodenominava, o senhor Black. Sua primeira afirmação foi a de que a “Escola de Redação E.U.A.” queria dizer “Escola de Redação Estados Unidos da América”, e o prazer que me deu essa explicação me prendeu de imediato. mas agora compreendo que eu fora fora feita por encomenda para o senhor Black, e mentalmentalmente ele deve ter esfregado as mãos e lambido os beiços durante nossa peqeuna conversa. Eu não sabia escrever à máquina – quer dizer, não da maneira correta; queria fumar durante o trabalho, o que era contrário à legislação antiincêndio; e não tinha experiência alguma em coisa nenhuma. Mas tinha um diploma de Vassar; e havia publicado um conto e três poemas em revistas. Eu não fazia a menor idéia da minha força; ele provavelmente me teria aceitado mesmo se eu pedisse vinte e cinco dólares por semana em vez dos quinze que me foram oferecidos, mas é claro que esse pensamento não me ocorreu. Sem dúvida o senhor Black já estava pensando de que modo poderia incorporar minha formação primorosa e minha carreira literária nos prospectos de sua empresa.
Primeiro fui entrevistada pelo dono, ou presidente, como ele se autodenominava, o senhor Black. Sua primeira afirmação foi a de que a “Escola de Redação E.U.A.” queria dizer “Escola de Redação Estados Unidos da América”, e o prazer que me deu essa explicação me prendeu de imediato. mas agora compreendo que eu fora fora feita por encomenda para o senhor Black, e mentalmentalmente ele deve ter esfregado as mãos e lambido os beiços durante nossa peqeuna conversa. Eu não sabia escrever à máquina – quer dizer, não da maneira correta; queria fumar durante o trabalho, o que era contrário à legislação antiincêndio; e não tinha experiência alguma em coisa nenhuma. Mas tinha um diploma de Vassar; e havia publicado um conto e três poemas em revistas. Eu não fazia a menor idéia da minha força; ele provavelmente me teria aceitado mesmo se eu pedisse vinte e cinco dólares por semana em vez dos quinze que me foram oferecidos, mas é claro que esse pensamento não me ocorreu. Sem dúvida o senhor Black já estava pensando de que modo poderia incorporar minha formação primorosa e minha carreira literária nos prospectos de sua empresa.
Porém aqui havia um pequeno problema. Ao menos durante algum tempo, eu teria que exercer minhas funções na escola com o nome de Fred G. Margolies, que era o nome não de meu antecessor, e sim do antecessor do antecessor de meu antecessor. Fiquei sabendo que alguns dos alunos do senhor Margolies ainda não havima concluído o curso, e tinham que receber seus trabalhos corrigidos com a assinatura dele, e até que eles se formassem eu teria de ser o senhor Margolies. Depois eu poderia me transformar em mim mesma e orientar novos alunos. Ocorreu-me que talvez eu preferisse continuar sendo o senhor Margolies, se tal fosse possível. Ele também havia publicado alguma coisa, se bem que nunca consegui me aprofundar na história do curso o bastante para descobrir o quê. E ele – melhor, eles – certamente sabiam escrever cartas muito bem, ou então tinham ainda mais curiosidade do que eu, ou talvez apenas pessoas de muito bom coração, a julgar pelo tom das cartas que eu recebia em nosso nome. Na verdade, durante muito tempo depois desse período continuei achando que o lado neuroticamente "bonzinho" da minha personalidade era mesmo o senhor Margolies.
O curso ficava no quarto andar, o último, de um velho edifício caindo aos pedaços perto do Columbus Circle. Não havia elevador. Eu havia aceitado – se bem que "aceitado" não pode ser a palavra correta – o emprego no final do outono, e agora tenho a impressão de que estava sempre ou chovendo ou nevando quando eu emergia da estação do metrô, de manhã, no Columbus Circle, e que eu estava sempre com um vestido preto de lã, de impermeável, galochas e guarda-chuva. No corredor escuro havia três lances de escada; e a escada sempre cheirava a coisas como ferro quente; charutos, botas de borracha, caroços de pêssego – os últimos estertores das indústrias agonizavam por trás daquelas portas assinaladas por letras.
A Escola E.U.A. consistia de quatro salas: uma ante-sala minúscula onde ficava uma moça sozinha, datilografando – conforme vim a constatar, batendo à máquina exatamente a mesma coisa que suas colegas estavam datilografando na sala grande a que a ante-sala dava acesso; creio que ela ficava ali para deter algum aluno que resolvesse inesperadamente vir em pessoa à escola. Nessa ante-sala havia algumas fotos na parede: retratos de Sinclair Lewis e outras pessoas que não haviam estudado lá. Depois vinha a sala grande, mal iluminada por diversas clarabóias cobertas de fuligem e neve, com as luzes acesas o dia inteiro; ali trabalhavam de seis a doze moças. O número delas variava de um dia para o outro; usavam máquinas de escrever muito antiquadas para preparar "aulas" do curso. Na outra extremidade dessa sala havia duas saletas bem pequenas, com janelas para a rua: a sala do senhor Black e a dos senhores Margolies e Hearn.
O senhor Hearn era uma mulher alta, muito corpulenta, bonitona, com cerca de trinta anos de idade, chamada Rachel, que usava óculos pretos de tartaruga e tinha um sinal preto na bochecha. Nossa sala era um pouco pequena para nós duas. Rachel fumava furiosamente o tempo todo, eu fumava moderadamente, e tínhamos que ficar com a porta fechada para que as pobres datilógrafas provisórias, que não tinham permissão para fumar, não nos vissem e entrassem em greve, ou nos denunciassem ao quartel do corpo de bombeiros mais próximo. Com a chuva e a neblina e a neve lá fora e a fumaça dentro, vivíamos num isolamento sufocante, abafado, como se num casulo. O cheiro era o de um vagão de passageiros após uma longa viagem. Trabalhávamos uma de costas para a outra, mas nossas cadeiras eram giratórias, e passávamos boa parte do tempo viradas para trás, nossos joelhos quase se esbarrando, o cigarro de uma debaixo do nariz da outra, conversando.
No início, ela me tratava muito mal. Na minha inocência, mais uma vez, não percebi que isso, naturalmente, era por conta de meu passado em Vassar e de minha carreira literária; mas em pouco tempo ela foi se tornando mais educada, e chegamos até a gostar uma da outra, moderadamente. (continua)
O senhor Hearn era uma mulher alta, muito corpulenta, bonitona, com cerca de trinta anos de idade, chamada Rachel, que usava óculos pretos de tartaruga e tinha um sinal preto na bochecha. Nossa sala era um pouco pequena para nós duas. Rachel fumava furiosamente o tempo todo, eu fumava moderadamente, e tínhamos que ficar com a porta fechada para que as pobres datilógrafas provisórias, que não tinham permissão para fumar, não nos vissem e entrassem em greve, ou nos denunciassem ao quartel do corpo de bombeiros mais próximo. Com a chuva e a neblina e a neve lá fora e a fumaça dentro, vivíamos num isolamento sufocante, abafado, como se num casulo. O cheiro era o de um vagão de passageiros após uma longa viagem. Trabalhávamos uma de costas para a outra, mas nossas cadeiras eram giratórias, e passávamos boa parte do tempo viradas para trás, nossos joelhos quase se esbarrando, o cigarro de uma debaixo do nariz da outra, conversando.
No início, ela me tratava muito mal. Na minha inocência, mais uma vez, não percebi que isso, naturalmente, era por conta de meu passado em Vassar e de minha carreira literária; mas em pouco tempo ela foi se tornando mais educada, e chegamos até a gostar uma da outra, moderadamente. (continua)
A turma de 1934 (um ano depois da formatura de Mary McCarthy) em Vassar (aavc.vassar.edu) PARA CONTINUAR LENDO O TEXTO, CLIQUE AQUI. |
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