7 de setembro de 2010

A escola de redação E.U.A. (Parte 2)

Elizabeth Bishop em "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
posted by chymes at 12:50 PM on April 14, 2006 em http://www.metafilter.com/
          O senhor Hearn era uma mulher alta, muito corpulenta, bonitona, com cerca de trinta anos de idade, chamada Rachel, que usava óculos pretos de tartaruga e tinha um sinal preto na bochecha. Nossa sala era um pouco pequena para nós duas. Rachel fumava furiosamente o tempo todo, eu fumava moderadamente, e tínhamos que ficar com a porta fechada para que as pobres datilógrafas provisórias, que não tinham permissão para fumar, não nos vissem e entrassem em greve, ou nos denunciassem ao quartel do corpo de bombeiros mais próximo. Com a chuva e a neblina e a neve lá fora e a fumaça dentro, vivíamos num isolamento sufocante, abafado, como se num casulo. O cheiro era o de um vagão de passageiros após uma longa viagem. Trabalhávamos uma de costas para a outra, mas nossas cadeiras eram giratórias, e passávamos boa parte do tempo viradas para trás, nossos joelhos quase se esbarrando, o cigarro de uma debaixo do nariz da outra, conversando.
          No início, ela me tratava mal. Na minha inocência, mais de uma vez, não percebi isso, naturalmente, era por conta de meu passado em Vassar e de minha carreira literária; mas em pouco tempo ela foi se tornando mais educada, e chegamos até a gostar uma da outra, moderadamente. Rachel era quem falava mais. Tinha muito a dizer; queria corrigir todas as falhas da minha formação e, como tantos outros naquele tempo, queria que entrasse para o Partido. Para não ter que ir à sede com ela e tirar minha "carteirinha", coisa que poderíamos fazer com facilidade na hora do almoço, assim que eu parasse com aquela absurda teimosia e me decidisse, resolvi dizer-lhe que eu era anarquista. Mas isso não adiantou muito. Apesar de meus princípios, me vi obrigada a defender o atentado a Berkman contra o sócio de Andrew Carnegie, Henry Frick, e depois disso passei horas na biblioteca da Forty-second Street consultando os livros classificados sob An, numa tentativa desesperada de conseguir fazer Rachel calar-se. Durante algum  tempo mantive contato com uma organização anarquista (descobri que eles são difíceis de contatar) em Nova Jérsei, a qual passou a me enviar panfletos e convites para reuniões, todos os dias, pelo correio.
          Às vezes almoçávamos juntas na imensa Stewart's Cafeteria. Eu nada tinha contra os restaurantes self-service, mas eles causam uma certa indecisão: o que comer, em que mesa sentar-se, em que cadeira da mesa ficar, tirar ou não o prato da bandeja antes de comer, onde colocar a bandeja, tirar ou não o casaco, largar as coisas com os comensais e ir pegar o copo d'água esquecido ou voltar com bandeja e tudo. Mas Rachel me empurrava a sua frente em direção ao balcão dos sanduíches. Era impressionante a variedade de sanduíches que se podia mandar fazer num átimo, e Rachel sempre comia três: salmão com requeijão num pãozinho, carne enlatada com picles num pão de centeio, carne defumada com mostarda em sei-lá-o-quê. Ela fazia seus pedidos aos gritos. Isso não adiantava muito, concluí, após tentar fazer meus três pedidos em voz alta; os sanduíches tinham todos os mesmo gosto. Passei a pedir uma maçãs cozidas. grandes, um tanto irreais, com café. Eu e Rachel, com seus três sanduíches e suas três xícaras de café pedidas ao mesmo tempo, nos sentávamos com nossas capa e galochas encharcadas, nossos almoços se confundindo na mesa, e ela me fazia sermões sobre literatura.
          Ela nunca falava sobre política no almoço, não sei por quê. Tinha lido muito, e para mim, que era formada em letras, seu gosto me parecia patético. Gostava de livros grandes, com muita auto-afirmação e emoção, e seu poeta favorito era Whitman. Gostava das traduções de Merejkovski, tudo que Thomas Wolfe já havia publicado, tudo de Theodore Dreiser, o ciclo Studs Lonigan de James Farrell e, mais do que tudo, Vardis Fisher - ela praticamente sabia de cor tudo ue ele já havia publicado. Uma sensação de pesadelo me domina quando relembro aqueles almoços: o chão úmido e sujo de terra sob meus pés; a multidão molhada, ruidosa, a comer sob as luzes de néon; e a voz possante e inexorável de Rachel, me relatando com todos os detalhes a infindável e insuportável autobiografia de Vardis Fisher. Talvez alguns detalhes fossem acrescentados por ela, não tenho certeza; tomei a firme decisão de jamais ler os livros desse autor, que ela se oferecia para me emprestar, e até hoje não os li. Lembro de uma vez que ela recitou um verso e meio de "Modern love" de onde Fisher havia tirado três títulos consecutivos: "In tragic life. God wot./ No villain need be! Passions spin the plot..." [A vida trágica, Deus sabe,/ Dispensa vilões! São as paixões que movem o enredo], e fiquei a me perguntar, em meio àquela zoeira, por que motivo Fisher não havia explorado as possibilidade de "Deus sabe", ou se um dia chegaria a fazê-lo. Eu havia recentemente empreendido uma análise pormenorizada de The waste land, de Eliot, e aquela colagem literária não cheou a me impressionar.
          A única coisa que impressionava Rachel era o "realismo", apenas o "realismo". Mas eu tentava argumentar, no meu velho tom de sala de aula, que havia realismos e realismos, ou lhe perguntar o que ela queria dizer com "realismo", Rachel voltava uma expressão feroz para mim - seus olhos brilhavam sob as luminárias Stewart's - e em silêncio escancarava a bocarra para acomodar os vários andares de se sanduíche. O sinal sobre a bochecha subia e descia enquanto ela mastigava De início aqueles olhares que pareciam tabefes me inspiravam medo, mas acabei me acostumando. E quando, um dia, em nossa sala no curso, Rachel me pediu para ler uma frase que ela havia escrito para lhe dizer se a sintaxe estava correta, percebi que minha colega estava começando a gostar de mim, apesar de minha decadência burguesa e de minha falta de contato com a realidade que me levavam  buscar refúgio na infantilidade do anarquismo. Percebi também que Rachel já estava desconfiada de que havia algo de estranho nas posições polítcas que eu supostamente defendia.
          Arrogante, desonesta, pouco simpática, orgulhosa de ser "durona", suscetível, insensível, porém capaz de manifestar bondade ou senso de humor quando um gesto conseguia atingi-la, Rachel era uma novidade para mim. Tinha uma característica rara que captava meu interesse: jamais falava sobre si própria. Ganhava vinte e cinco dólares por semana. Andava mal vestida, até mesmo para uma frequentadora da Stewart's naquele tempo, e suja, ainda por cima. A única coisa que fiquei sabendo a seu respeito era que tinha uma irmã, internada num sanatório público para tuberculosos, que ela visitava todos os meses, mas de quem não gostava muito, ao que parece por ela ser doente, e portanto "não servir para nada". Rachel, por sua vez, era uma mulher fortíssima, e não demorou para que me desse conta de que ela inspirava medo, um medo quase físico, em todo mundo naquela pseudo-escola, inclusive o presidente, o senhor Black. Também não demorei para compreender que Rachel era o verdadeiro cérebro do curso, e posteriormente cheguei mesmo a suspeitar que fosse ela a verdadeira dona, e o senhor Black apenas um testa-de-ferro. Essa hipótese era provavelmente falsa, mas nunca descobri a verdade a respeito de nada do que se passava por lá.
          Rachel fumava cigarros que eram roubados para ela por um "homem" que ela conhecia - de que modo eram roubados, e que homem era esse, jamais descobri. De vez em quando apareciam outros objetos - uma bolsa nova, uma caneta-tinteiro, um isqueiro - vindos da mesma fonte, ou talvez de um outro "homem", mas Rachel jamais falou em amor nem em relações amorosas, a não ser as de Vardis Fisher. Era de esperar que ela me odiasse; minha aquiescência tranquila e minhas correções vacilantes deviam ser difíceis de engolir; mas creio que não me odiava. Acho que tínhamos pena uma da outra. Tenho a impressão de que Rachel me via como uma pessoa marcada para morrer; eu desfrutava minha breve existência de cigarra, meu "senso de humor", minha "cultura", enquanto tal era possível, e talvez, num futuro não muito distante, quando "a coisa virasse", ela poderia interceder em meu favor se quisesse. Imagino que mais tarde ela pode perfeitamente ter tido sucesso no mundo dos negócios - provavelmente em algum negócio escuso, como o curso de redação, só que em escala muito maior. Rachel parecia ser atraída por tudo que era escuro e torto, como se por acreditar que as pessoas eram levadas a usar métodos ilícitos pelas circunstâncias econômicas, não ser desonesta fosse uma desonestidade para ela. Um de seus ditos prediletos eram "a propriedade é um roubo".
          Pobre Rachel! Muitas vezes me inspirava antipatia, me dava um frisson, e no entanto ao mesmo tempo eu gostava dela, e sem dúvida não conseguia deixar de ouvir com atenção tudo o que ela dizia. Durante várias semanas Rachel foi para mim uma espécie de oradora pública particular. O fato de não ter um "passado", nenhum contexto definível em que se situasse, a impressão que dava de ter poder, de estar apenas esperando a hora de agir, por mais falsa e ridícula que fosse, me fascinavam. Conversar com Rachel era como olhar contra a luz e ficar imaginando que imagens sairiam daquelas opacidades e transparências quando a foto fosse ampliada. (Continua)
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