27 de setembro de 2010

Escola de Redação E.U.A. (Parte 4)

Elizabeth Bishop "Esforços do afeto", trad. Paulo Henriques Brito
            Nossos anúncios especificavam que, quando um candidato nos escrevia manifestando interesse pelo curso, ele deveria mandar uma mostra de seu texto, qualquer tipo de "material", curto ou longo, para submetê-lo a nossa "análise", juntamente com um vale postal no valor de cinco dólares. Enviávamos de volta nossa "análise" e dizíamos ao candidato se ele tinha ou não talento suficiente para se tornar um escritor de sucesso. Todos os candidatos - a menso que fossem analfabetos - tinham talento. Em seguida, o candidato tinha que completar a primeira lição - creio que o nome era "Relato direto" ou então "Prosa descritiva" - e enviá-la a nós num prazo de um mês, juntamente com os trinta e cinco dólares restantes. Esse texto era "analisado" e devolvido juntamente com a segunda lição; e assim o curso prosseguia.
          Já não me lembro de todas as lições, mas uma delas era "Publicidade". pedia-se ao aluno que redigisse anúncios para frutas, pão, bebidas. Não sei por que se dava tanta ênfase a comida e bebida: talvez fosse sinal dos tempos. Uma outra lição era um conto, e havia também um a "Confissão verídica". Quase todos os alunos confundiam esses dois gêneros totalmente. E as ä mostras" enviadas inicialmente tendiam a pertencer ao gênero "Confissão verídica", também. Essa amostra, expandida ou cortada, censurada ou apimentada, juntamente com a primeira carta ao senhor Margolies que a acompanhava, constituía a parte mais interessante do curso para todas as partes envolvidas. Meu trabalho consistia em redigir uma análise de cada lição em quinhentas palavras, se possível, tantas por dia quanto eu conseguisse fazer, utilizando como modelos uma coleção de lições e análises antigas. Cabia a mim também escrever uma pequena resposta pessoal à carta que infalivelmente acompanhava cada lição. Era meu dever incentivar o aluno se ele estivesse desanimado, e convencê-lo com firmeza a mudar de idéia se demonstrasse algum sinal de querer seu dinheiro de volta.
ParkeHarrison
         Henry James afirmou uma vez que todo aquele que aspira tornar-se escritor deve escrever em sua flâmula uma única palavra: "Solidão". No caso de meus alunos, o que eles necessitavam não era excluir-se da sociedade, e sim entrar nela. O problema deles era que "Solidão" havia sido escrito em suas flâmulas sem que eles pedissem, e era por isso que queriam tornar-se escritores. Todas as cartas que chegavam a minhas mãos, sem exceção, vinham de pessoas que sofriam de uma solidão terrível, em todas as suas formas mais conhecidas, e mais algumas formas de cuja existência eu nem sequer desconfiava. Escrever - principalmente escrever para o senhor Margolies - era uma maneira de diminuir a solidão. Ser publicado, tornar-ser "famoso", seria uma solução instantânea para o problema da falta de identidade e uma fuga da solidão, porque desse modo o escritor conheceria outras pessoas, sob a forma de admiradores, amigos, amantes, pretendentes etc.
         Nos formulários que preenchiam, os candidatos especificavam a idade e a profissão. Muitos eram vaqueiros e empregados de fazendas. Um deles escrevia suas lições com letra de imprensa, não do tipo que foi ensinado uma certa época nas escolas de elite, embora semelhante, mas sim com a espécie de letra de imprensa que uma criança faz quando tenta caprichar. Havia um pastor de ovelhas, um pastor de verdade, que chegou mesmo a afirmar que elevava uma vida muito solitária, "por causa da minha profissão". Escrever o animava, porque "as ovelhas não são uma companhia muito interessante para um homem (ha-ha)".  Havia também mulheres de empregados de fazenda. Muitos eram marinheiros; um, negro, era cozinheiro; havia um suboficial servindo num submarino e um faroleiro - um guardador de farol de verdade. Havia muitas "domésticas", algumas das quais se diziam "de cor", e vários estudantes que me escreviam do interior do Sul, que me informavam, como se tivessem obrigação de fazê-lo, que eram negros.
         De todas as cartas e lições que li durante minha passagem pela Escola E.U.A., apenas as de uma aluna indicavam um mínimo de "talento". Era uma "criadora de gado e galinhas", uma "solteirona", como ela própria se identificava, que morava no interior do Kansas. Os contos que ela mandava, qualquer que fosse o gênero de exercício requisitado, eram contos de verdade. os relatos dos outros alunos eram fracassos de cortar o coração - incoerentes, abruptos, atrofiados. As histórias dessa mulher se prolongavam com exuberância, como a narrativa de um bom contador de histórias, e quase chegavam a ser interessantes, com muita cor local e uma abundância de detalhes. Eram cheias de galos, cobras, raposas e gaviões, e tinham enredos dramáticos, talvez verídicos, que giravam em torno de vacas doentes ou moribundas, hipotecas, madrastas, bebês, nevascas desastrosas, tornados. Eram também dez vezes mais compridas que as histórias de todos os outros alunos. Depois que larguei meu emprego, de vez em quando folheava revistas de fazendeiros, como The Country Gentleman, na esperança de que ela tivesse finalmente conseguido publicar, mas nunca vi seu nome.

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