Ruth Lifschits
Padre, quero me confessar.
Não estou à beira da morte e nem mal da cabeça. Estou velha, só isso. Pequei, errei, é hora de acertar as contas. Não sei quanto tempo mais tenho por aqui, já-já me chamam para o andar de cima.
Católica? Sim, fui. Não se espante, explico. Tive todo o preparo, instrução religiosa mas, lá pelas tantas, parei de praticar. Não que tenha perdido a fé, ela se voltou para um Deus sem igreja. Esse é um dos meus pecados, bem sei.
Padre, por favor me dê esse tempo, quero me confessar conversando. Sei que concordou em me ver nesse quarto onde moro. Preciso que me ouça. Pode ser? Ótimo.
Me casei duas vezes, a primeira, com vinte e poucos anos, com meu grande amor. De véu e grinalda, união abençoada por Deus. Benção?!, pois sim! Danilo morreu de tifo antes de comemorarmos dois anos de casados. Um jovem, trinta anos incompletos, um doce de pessoa. O segundo casamento foi só no civil, o Deus católico descartado, esquecido.
Casei com um judeu. Surpreso? Devo contar isso como pecado? Vejo que o desassosseguei. Casei-me sabendo que teria muitos problemas. Os judeus não me queriam, e os católicos desaprovavam a união.
Aceitei, quer dizer, aceitamos enfrentar as dificuldades como parte da vida. E Jaime era dez anos mais novo do que eu, uma viúva com um filho pré-adolescente. Ah, não falei do filho? A morte de Danilo precipitou o nascimento do menino, prematuro, com quase 8 meses de gestação. Pulmões ainda não inteiramente formados, criança de risco. Deu trabalho, exigiu muitos cuidados que não dei. Entregue à minha dor, desistindo da vida, larguei meu filho com a minha mãe e a minha irmã. Eu não via sentido em viver. Sem meu amor?! Impossível. Cheguei a iniciar um suicídio num dia em que fiquei sozinha em casa. Enquanto o bebê dormia, fui para a cozinha, me ajoelhei diante do fogão, liguei o gás do forno e enfiei a cabeça lá dentro. Comecei a respirar fundo quando ouvi o choro – forte, doído. Desisti de morrer naquela manhã. Ele chorava e esperneava. Tirei-o do berço e me sentei com ele numa cadeira de balanço. Ele foi se acalmando e, de repente, sorriu para mim. Esse sorriso me fez mãe, me conquistou.
Desse dia em diante, tudo que eu fazia, pensava, planejava era para ele. Tentativa de suicídio, pecado forte, não? Conversei muito com aquele pequeno ser, cheguei até a dizer que se o nome dele não fosse Danilo, como o do pai, seria Salvador. Ele sorria e emitia sons me ouvindo e tentando me imitar. Ficamos muito unidos. Tinha tempo para me dedicar a ele com atenção e mimos pois costurava em casa. Ganhava dinheiro vestindo senhoras chiques. Assim pude ajudar nas despesas e nos cuidados com Danilo e com minha mãe.
A costura me trouxe o segundo marido, Jaime. Um dia ele me seguiu na Rua do Ouvidor até me ver entrar numa loja de tecidos e aviamentos finos onde todos me conheciam por ser freguesa. Lá conseguiu meu endereço com um vendedor e eu passei a notar um rapaz magrelo na minha rua, nos finais de tarde, me encarando sempre que eu chegava à janela. Nos aproximamos e começamos a nos encontrar na calçada. Eu sem saber muito sobre ele e ele sem saber que eu tinha um filho de 12 anos. Danilinho era semi-interno no Colégio São José, ali mesmo na Tijuca onde morávamos. Sim, concordo, os irmãos Maristas são excelentes educadores. O fato é que Jaime já tinha visto meu menino e pensava que fosse filho da minha irmã. Ela, dez anos mais nova do que eu, parecia ser a mais velha de nós duas. Minha genética me favoreceu, sempre aparentei menos idade. Até hoje é assim, é o que dizem. Quantos anos o senhor acha que tenho? Pode dizer, seja sincero. Oitenta? Não, completo noventa no final do mês.
Bem, continuando. Parece conversa mas é confissão, creia-me. Pensei muito antes de querer a sua visita. Digamos que ensaiei bem o que lhe falaria. Com Jaime, à medida que fui ficando íntima, e que o namoro ganhou ares de sério, resolvi contar tudo: minha idade, a viuvez, o filho. Ele não esperava por nada disso. Minha aparência jovem o enganara. Passou dias distante mas voltou e me disse que era judeu, não religioso, nunca praticante, mas que a sua família não veria com bons olhos nosso namoro e muito menos uma união. E concluiu dizendo que tinha 10 anos menos do que eu, mas não via problema nisso. Foi a minha vez de ficar mal. Terminei o namoro. Pedi a ele que não me procurasse mais.
Ficamos meses afastados até que ele voltou, decidido a enfrentar tudo. Eu tinha sentido falta dele, muita mesmo. Cheia de coragem, aceitei a reaproximação. Ele passou a frequentar a casa, jantando conosco algumas vezes por semana. Danilinho me tranquilizou. Me disse que eu já tinha sofrido muito, queria minha felicidade. Jaime garantiu que meu menino seria um filho para ele. Mas os dois nunca conseguiram se aceitar de fato. O senhor falou bem, padre – dois estranhos.
Nos casamos, vida simples com poucos recursos. Jaime era funcionário da Light, ganhava pouco. Após batalhar muito, conseguiu um emprego melhor em São Paulo. Danilinho preferiu continuar no Rio, com a tia e a avó. Jaime fez carreira nessa empresa. Seu crescimento na firma começou quando ele assumiu a gerência de uma filial no Sul. Chegamos a Porto Alegre com um filho de cinco anos e lá moramos por dez anos.
Vejo agora que aceitar Danilinho vivendo no Rio, longe de mim, me foi benéfico: a diferença de idade entre Jaime e eu pôde não existir. Um filho adolescente seria a mesma coisa que ter a verdade escrita na testa. Também foi conveniente para ele que não precisou explicar um enteado, a mulher viúva e mais velha. Funcionou bem para nós dois – casal jovem com filho pequeno, início de vida, era assim que nos viam. Nenhum preconceito nos ameaçando. Só o dele ser judeu. Não era possível esconder seu sobrenome. Mas, seu carisma dava conta disso com facilidade. Vendedor nato, soube divulgar uma imagem social positiva, vencedora. Em casa já era diferente: exigente com o filho e controlador em relação a tudo.
De minha parte, ao deixar de dar carinho e proteção ao meu primeiro filho, não me permiti dar carinho e mostras de amor ao segundo. Vejo isso agora. Um pouco tarde, não é? Atuava como uma governanta incansável, impecável: casa limpa, roupas limpas e bem passadas, comida boa na mesa, doces e bolos sempre ao alcance das vontades fora dos horários rígidos.
Como a família dele me tratou? Mal. Em reuniões, ainda bem que raras, muitos não me cumprimentavam, nem falavam comigo. Minha sogra me hostilizava e era muito crítica. Eu não acertava o ponto de nenhuma comida judaica, não fazia nada certo e nem do seu agrado. Riva, irmã de Jaime, me tratava bem, mas sempre desconfiei de suas intenções. Ela queria ficar próxima para me vigiar, ver se eu era boa para o irmão e o sobrinho.
E assim foi minha vida. Viajamos, fui companheira em eventos sociais, mantendo a pose de porto seguro de meu marido. Meu filho Raul, não foi batizado e nem comemorou Bar Mitzvá. Caberia a ele escolher uma religião, quando quisesse e se quisesse. Mas foi circuncisado. Jaime disse que seria por razões higiênicas, mas convidou os pais e irmãos, fingindo uma celebração judaica. Nunca o perdoei por isso.
Aí estão os meus pecados, padre. Ah, tem mais dois, desculpe. Dois abortos que fiz antes de Raul nascer. Por quê?! Ora, mal tínhamos como nos sustentar! Claro que me senti culpada, tenho sentimentos! Era isso ou ver o casamento desabar. Outro casamento interrompido?! Para mim, não! Me dispus a fazer de tudo para que meu segundo casamento fosse duradouro. E foi. Vivemos juntos 50 anos. Bodas de Ouro que não foram comemoradas porque ele estava bem doente, terminal. Danilinho já tinha falecido, seus filhos pouco me visitavam. Raul, esposa e filhos há anos morando no exterior. Ele veio para o enterro do pai, cuidou dos nossos bens, me instalou nesse lar de idosos e administra minha vida lá de Portugal. Nos falamos por telefone.
Sim, distantes. Conveniente, não é?
Algo de curioso, não serve para nada mas acho interessante: Danilinho faleceu no dia do aniversário do padrasto e Jaime se foi no dia do nascimento de Danilinho.
Mereço perdão?
Brejal, 12/06/20
Trama interessante, possível de acontecer. Muitas pessoas cedem à vaidade, parecem ser uma coisa em detrimento de realmente ser. Sem julgar a personagem, escolhas são feitas, decisões tomadas, e a vida se define. Ela abandona sua religião, igreja e tal, mas no final da vida procura um padre - talvez para se garantir, para acalmar a consciência? Pode ser, quem sabe? Gostei do conto, a narrativa flui.
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