13 de março de 2017

O Duplo2: Esaú e Jacó: romance histórico?



Sobre romance histórico
Surgiu no início do século XIX (cf. Lukács, O romance histórico, 1936-37), na efervescência das revoluções sociais, e com o surgimento de um novo tipo de consciência: um novo sentido de história e uma nova experiência de historicidade.
Dentre as personagens, encontram-se e interagem entre si figuras históricas e protagonistas típicos, que seguem os padrões da época tratada, podendo eles estar no centro ou à margem dos acontecimentos, revelando sempre as forças sociais em disputa.
De modo geral, a perspectiva nesse tipo de romance é a do cotidiano, no qual indivíduos das camadas médias da população encarnam os conflitos em curso em suas vidas práticas, sendo o herói um sujeito fortemente vinculado ao seu grupo social. Importante ainda que a ação ocorra em um período anterior ao do escritor; esteja resolvida, por assim dizer; e que paralelamente se desenvolva uma trama amorosa, muitas vezes finalizada de forma trágica.
Considere-se os três planos ontológicos indicados por Ricoeur (cf.Tempo e narrativa, 1983), a saber: o existencial, da vida individual; o histórico, de caráter transindividual; e o dos momentos axiais, quando determinados eventos funcionam como uma espécie de marco zero, a partir do qual um novo tempo se inaugura. O romance histórico se definiria sobretudo por ser uma narrativa desse evento primordial, na qualidade de uma irrupção coletiva (cf. Jameson,"O romance histórico ainda é possível?", 2007).
Em um contexto romântico, dentre os primeiros romances do gênero, estão: Waverley (1814) e Ivanhoé (1819), de Walter Scott; I promessi sposi (1825-27), de Alessandri Manzoni; O último dos moicanos (1826), de James Cooper; Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas; Eurico, o presbítero (1844), de Alexandre Herculano. Gradativamente, porém, o romance histórico assume uma dicção condizente com os movimentos naturalista e realista, como se nota em Salambó (1862), de Gustave Flaubert; e Guerra e Paz (1865-69), de Leon Tolstói.[1]

Homem de seu tempo, das múltiplas perspectivas
Em Esaú e Jacó, os acontecimentos externos tornam-se internos e necessários para o desenvolvimento da trama. Para Machado de Assis, um escritor deve ser um homem de seu tempo, “ainda quando se trate de assuntos remotos no tempo” (cf. “Notícia atual da literatura brasileira, Instinto de Nacionalidade”, 1873). Mas suas obras já vivenciam a expressão do romance histórico, num momento em que o recuo da perspectiva a um passado distante, tal como fora modelado pelo romantismo, entrava em declínio. Sua ficção procura romper com o isolamento entre presente e passado.
Miguel Real (escritor português, pseudônimo literário de Luís Martins [1953]) um decálogo do Romance Histórico, sendo possível compreender a construção da narrativa em Esaú e Jacó à luz de um dos seus estatutos:
O romance histórico não reinterpreta ou reconstrói a história segundo um ditame de verdade [...]. A sua função consiste em abrir um horizonte estético e lúdico às possibilidades contidas na História, fazendo eco das múltiplas verdades e das múltiplas perspectivas por que se desenrolam os fatos históricos, algumas delas nunca acontecidas.
Várias capas desde a 1a. edição_diversas perspectivas do romance
Sobre a historicidade do romance
Luiz Costa Lima chama atenção para um outro dado importante no que se refere ao distanciamento, por Machado de Assis, da tradição do romance. No artigo Sob a face de um bruxo (escrito em 1980, revisto em 2009), Lima discorre sobre a recepção de Tristam Shandy no romance machadiano em sua maturidade, e a recepção de Machado entre seus contemporâneos e na contemporaneidade.
"Obra prima" (Luiz Rufatto)
Ainda vivo, o escritor viu-se alvo de críticos que sublinhavam a repetitividade de temas e a esqualidez em seus enredos e na atuação de certos personagens seus. Entre os críticos, ainda muito se debate sobre o envolvimento de Machado nas questões políticas de sua época. Lima afirma que pensar sobre o mundo que o envolvia não era mesmo uma especificidade do autor. Sua singularidade (não exclusiva) era criar ficcionalmente a partir dessa reflexão. E que ele não devia ser consciente desse jogo, nem tampouco sabia onde ele daria.
A linguagem ficcional supõe que nem sempre as coisas do mundo tem uma finalidade ou ordem. Mesmo sendo mimética, não se cria pela ficção um objeto equivalente à parcela do mundo mimetizado, já que em seu trabalho o autor combina proximidades e diferenças com esse mesmo mundo.
Temporalizar Machado significa, pois, mostrar como as características de sua ficção resultam do esforço reflexivo sobre a sociedade que conheceu. Apreender essa temporalidade significa, por outro lado, que já temos certa distância quanto a seu tempo, mas que essa distância ainda não se converteu em pura diferença. Quando há absoluta coincidência temporal entre o autor e o analista, a apreciação desse tende basicamente a importar como testemunho da recepção de certa obra, i. e., do tipo de expectativa, de resistência e de valores que, positiva ou negativamente, a obra ajudava a verbalmente se atualizar. Quando a episteme do analista é absolutamente outra, o seu esforço se confunde com o do antropólogo, que procura entender com suas categorias um objeto social governado por outras. Quando, por fim, uma nota de diferença se intercala na semelhança que continua a haver entre os tempos do escritor e do analista, temos a possibilidade de entender o que já não somos e uma parcela do que continuamos a ser.
***
Nem romântico, nem realista

(dois trechos essenciais de Luiz Costa Lima, em Sob as faces de um bruxo)

Machado se deparava com duas poéticas: a romântica e a realista. O rumo que estabelece para si se contrapunha a ambas. O caminho real da poética romântica era o elogio da subjetividade criadora. Ela punha o autor, mormente em um país sem tradição intelectual, em uma posição de gozosa passividade diante de seu contexto e de suas vivências. Dentro destas condições, tal poética no máximo permitia a consciência do material linguístico, constatável em Gonçalves Dias ou José de Alencar. Por via diversa, o mesmo limite afetava a poética do realismo. Sua palavra-chave, estar atento à observação, punha o autor na prisão do mundo perceptualmente tematizado. Com isso, ele tendia a confundir a “consciência imaginante” (SARTRE, O imaginário, 1940) com o mero exercício da fantasia compensatória. Por certo, hoje sabemos que não basta ter acesso ao mundo da imaginação, tematizar imaginariamente o mundo, para ter-se acesso ao mundo da ficção. De qualquer modo, o fato é que fechar-se no campo dos percepta impõe um encargo negativo ao ficcionista.

Ao descartar-se das duas poéticas vigentes no Brasil de sua época, Machado libertou-se de localizar sua empresa ficcional fosse sob o ângulo do eu que se conta a si mesmo, fosse sob o do eu que conta seus arredores. Nem seu umbigo, nem seu contorno, nem a nem a fantasia, nem a percepção é o termo privilegiado. A reflexão mimética que pratica não lhe permite a fantasia compensatória porque o próprio dessa é efetuar um deslocamento no espaço para que se afaste a consciência de seu agora. Controlada pela reflexão, a fantasia se transforma em ficção – um pensar sobre o tempo histórico sem a procura de dominá-lo conceitualmente. Ampliada pela reflexão, a observação assume em Machado o tom alegórico. Exemplo do primeiro processo é apresentado no capítulo “O Delírio” das Memórias póstumas; exemplo do segundo, o “Tabuleta velha” do Esaú e Jacó. Pretendemos, em suma, que a originalidade machadiana resulta de haver fundado sua produção da maturidade na reflexão ficcional de sua sociedade. Não se pretende que essa seja a regra geral para todo grande criador, pois desde logo se objetaria estar-se indevidamente empregando o termo “criador” como se fosse uma entidade sempre igual. A melhor maneira de escaparmos de generalizações impróprias consiste, no momento, em mostrar-se como uma determinada influência é acolhida e como as modificações a que se sujeita decorrem do reajuste a que ela é submetido, para dar conta do outro solo social a que agora visa.

[1] Há ainda um outro tipo de designação, o “romance de época”, comumente considerado como um subgênero do romance histórico. Sem preocupação em precisar datas ou eventos axiais, o foco em um romance de época estaria voltado para a realização de um painel no qual se perceba o modo de vida em uma determinada fase da história de um país. A relação com a história por parte do escritor, nesse caso, é menos comprometida, embora possa advir da leitura do romance um certo interesse e curiosidade acerca da época em questão.

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