A presente listagem resulta de consulta à internet em vários sites, mas sobretudo da bibliografia que consta do livro de Otto Rank – O duplo; e das referências no Dicionário de mitos literários, de Pierre Brunel.
- Pedro Almodóvar – A cerimônia do espelho (Folha de SP)
- Hans-Christian Andersen – A sombra (Coletânea de contos fantásticos, de Ítalo Calvino)
- Jean Anouihl – O viajante sem bagagem
- Guillaume Apollinaire – A separação da sombra / O passeio da sombra (O rei lua)
- Amílcar Bettega Barbosa – O rosto / Cara a cara (Deixe o quarto como está)
- Samuel Beckett – Textos a troco de nada // Molloy
- Saul Bellow – A vítima
- Wilfred Bion – O gêmeo imaginário
- Jorge Luís Borges – El sur / As ruínas circulares / A forma da espada / A morte e a bússola (Ficções) // O outro (O livro de areia) // Abenjacan... (O Aleph) // Borges e eu (O fazedor)
- André Breton – Nadja
- Adalberto von Chamisso – A maravilhosa história de Pedro Schlemihl
- Joseph Conrad – O parceiro secreto
- Julio Cortázar – Relato sobre fundo de água / Distante (Bestiário) // Uma flor amarela (Final de jogo) // À noite, olhando pro céu (As armas secretas)
- Fiódor Dostoievski - O duplo
- Rubens Figueiredo – Nos olhos do intruso (As palavras secretas)
- Carlos Fuentes – Zona sagrada // Todos os gatos são pardos // Terra nostra // Um parentesco distante
- Téophile Gauthier – A morte enamorada / O cavaleiro duplo (Contos fantásticos, SP: Primeira linha, 1999)
- Julien Green – Se eu fosse você // O viajante sobre a terra // O visionário
- Nikolai Gogol – O retrato (O capote&O retrato – LPM)
- João Guimarães Rosa - O espelho (Primeiras estórias)
- Herman Hesse – O lobo da estepe / Demian
- ETA Hoffmann – O homem de areia / Os elixires do diabo / O gato Murr (Contos fantásticos, trad. Fernando Sabino, RJ: Imago, 1993)
- Jack London – A sombra e o brilho
- Dyonélio Machado – Os ratos
- Machado de Assis – Esaú e Jacó // O espelho / Identidade (Relíquias da velha casa)
- Guy de Maupassant – O horla (1ª e 2ª versão) / Ele
- Thomas Mann – As cabeças trocadas (Nova Fronteira, 87)
- Robert Musil – O homem sem qualidades (que poderia ter se chamado "A irmã gêmea")
- Vladimir Nabokov – Desespero (Lisboa: Teorema, 2010)
- Nelson Rodrigues – As gêmeas (A vida como ela é)
- Luigi Pirandello – A desdita de Pitágoras (O velho Deus - Novelas para um ano) // O falecido Mattia Pascal
- Edgar Allan Poe – Wiliam Wilson (Histórias fantásticas) // O retrato oval // A queda da casa de Usher
- Ricardo Piglia – A cidade ausente
- Shakespeare – Comédia de erros / Noite de reis
- Robert Stevenson – Dr. Jeckyl e Mr. Hide
- Scott Turrow – Idênticos
- Oscar Wilde - O retrato de Dorian Gray
Duplo Rembrandt com degraus (1987-88), de Mike e Doug Starn |
O mito literário
O mito do duplo remonta a tempos imemoriais e está presente na mitologia greco-romana (ex.:Rômulo e Remo), judaico-cristã (ex.:Caim e Abel) e pré-colombiana (ex.:Popol Vuh). O mito literário atualiza a crença; transforma-a. Na literatura, o mito das tradições religiosas, da memória e das enciclopédias, se reflete em inúmeras histórias e se desdobra em outras tantas. Nelas, a formação de um par ou de uma dupla desempenha papel fundamental na trama, e a apreensão da identidade dos personagens se reforça pela transparente relação de alteridade que estabelecem entre si (ex.:Dom Quixote e Sancho Pança).
A diferença entre o Duplo e a dupla é que o primeiro termo diz respeito à função que a relação entre certas duplas exerce nas histórias. Desde o romantismo, o duplo (Doppelgänger) se converteu em uma questão, uma temática. Traduzindo literalmente a palavra quer dizer “aquele que caminha do lado”; “companheiro de estrada”. Nas palavras de Jean-Paul Richter (1796), “assim designamos as pessoas que se veem a si mesmas”. Trata-se portanto de uma experiência de intersubjetividade, isto é, que depende da subjetividade e que acontece sobretudo nesse nível.
A diferença entre o Duplo e a dupla é que o primeiro termo diz respeito à função que a relação entre certas duplas exerce nas histórias. Desde o romantismo, o duplo (Doppelgänger) se converteu em uma questão, uma temática. Traduzindo literalmente a palavra quer dizer “aquele que caminha do lado”; “companheiro de estrada”. Nas palavras de Jean-Paul Richter (1796), “assim designamos as pessoas que se veem a si mesmas”. Trata-se portanto de uma experiência de intersubjetividade, isto é, que depende da subjetividade e que acontece sobretudo nesse nível.
Partindo dessa compreensão, muitas situações apresentadas literariamente discutem ou simplesmente mostram o quanto a nossa identidade é falha e como é necessário que nos reflitamos em um outro, a fim de afirmá-la, lembrando que duplos podem ser constituídos por pares nada evidentes.
O poeta Rimbaud (Je est um autre.), assim como Borges e sua visão do el otro, são exemplos de autores que absorveram com muita intensidade a questão do Duplo, revirando-a de modo que a fragilidade e a força do eu se tornassem inseparáveis.
Mas essa atração que a questão exerce vem de longa data. Sófocles em “Édipo rei” põe em dúvida a noção que já então se pronunciava – a de que o homem é o motor absoluto de suas ações – reiterando a sua dualidade. Homem não é só o “que está aqui”, mas também o que “está fora daqui”.
Há textos literários em que o duplo aparece explicitamente, de forma linguística, quando se faz menção ao eu/ o outro/ ele; ou ao eu/ dois em um; ou ainda ao eu/ o mesmo, ou seja, a significantes que mostram claramente a proximidade de um estranho, ou então de um estranhamento da identidade.
A crescente absorção desse mito pela literatura tornou-o parte indissociável de um gênero – a ficção fantástica, e também a científica. Se nos ativermos ao que diz Goethe sobre a novela como “a narração de uma perturbação por um acontecimento estranho”, entenderemos porque esse tipo de texto literário (a novela) é o preferido para o desenvolvimento do tema. Mas também na poesia lírica, pela qual se expressa o eu-lírico e se canta os problemas do eu, o Duplo está presente, sendo porém pouco frequente no romance.
Todo homem tem natureza dupla: é masculino e feminino. Por isso, a cisão do ser andrógino enfraqueceu-o. A estrutura interior do homem pressupõe a união de elementos diferentes.
A dualidade intrínseca da pessoa cria a necessidade de um constante processo de metamorfose, reforçando a ideia do homem como responsável pelo seu destino, o que sugere uma associação entre o Duplo com o romance de formação ou Bildungsroman.
A dicotomia induz a separação dos entes em maléficos e benéficos. Exemplos dessa experiência são o diabo e o anjo; o homem e o animal; o espírito e a carne; a vida e a morte; e, no ocultismo, a morte e o renascimento.
De acordo com Otto Rank, autor de O duplo, heróis que se desdobram apresentam uma disposição amorosa voltada para o próprio ego e sofrem de uma incapacidade de amar (cf. mito de Narciso). O conflito psíquico cria o duplo como projeção de uma desordem íntima. O Duplo indica a parte não apreendida ou excluída pela imagem de si que tem o eu.
Mas, além dessa possibilidade de visão psicológica da experiência do Duplo, existe uma outra, de cunho mais existencial ou metafísico, que o relaciona ao problema da morte e ao desejo de sobreviver-lhe. Trata-se de uma nostalgia do infinito, do tempo imemorial em que tudo era uno e um só ser. O amor próprio e a angústia da morte seriam portanto sentimentos muito próximos, talvez indissociáveis.
A nostalgia do infinito nos leva a realizar ritos de passagem, pelo desejo de se tornar habitantes de dois mundos.
Pelo Duplo, personifica-se a alma imortal, mas também o assustador mensageiro da morte. Por isso, os componentes do duplo ao mesmo tempo se atraem e se repelem. Há uma ambivalência de sentimentos: interesse apaixonado e terror; a relação tem um caráter ao mesmo tempo de proximidade e antagonismo; e em geral o encontro ocorre num momento de vulnerabilidade do eu original.
Subsiste também um certo sentimento de culpabilidade por conta do eu desejar a morte de si para renascer num outro ser.
Enfim, o desdobramento pode ser objetivo, gerando-se duplos por multiplicação; ou subjetivos, dividindo-se o self. O Duplo é idêntico e diferente; interior e exterior; está aqui e lá; é oposto e complementar.
Até o final do século XVI, o Duplo apresenta sobretudo o homogêneo, o idêntico, o substituível, o usurpador de identidade; cada um tem sua identidade própria; podem ser gêmeos ou um só personagem desempenhar dois papéis. Nesse caso, a tendência é buscar a unidade, sabendo-se que o homem é feito à imagem e semelhança de Deus.
A partir do século XVI até o XIX, o Duplo representa o heterogêneo; a divisão do eu; a quebra da unidade até o fracionamento infinito (século XX). Ego e Deus se separam; é a morte de Deus; o sujeito hipertrofiado torna-se centro do mundo, o que pode também gerar sentimentos de alienação, niilismo ou impotência.
A partir do século XX, o Duplo veio a ser eminentemente o Outro; alguém que leva uma vida em um mundo paralelo, mas correlato e interdependente. Baseia-se essa noção na teoria do caos ou de eventos ou elementos associados em cadeias não lineares. Socialmente, os componentes desses pares ao infinito são indissociáveis, embora em geral não tenham consciência disso (ex. Mrs.Dalloway e Septimus).
Segundo Carl F. Keppler (The literature of the second self, University of Arizona, Press Tucson, 1972), há sete modalidades de duplos: o perseguidor / o gêmeo / o(a) bem-amado(a) / o tentador / a visão de horror / o salvador / o duplo no tempo.
OBS.: Não esquecer que o duplo pode ser um animal.
Cavalos (1985-86), de Mike e Doug Starn |