Naquela manhã acordei com a percepção de que algo
falhava em meu pensamento: sentia uma lacuna, um esvaziamento na cabeça. Como
se um empuxo se opusesse à força da gravidade, me reduzisse o peso e entorpecesse
os sentidos. No início não me dei conta das perdas. Mas no decorrer do dia
notei que me escaparam da memória os adjetivos, impedindo-me de qualificar, medir,
comparar, criticar ou enaltecer as sensações, ideias, pessoas e coisas.
Percebi que um apagão fulminou os domínios da escrita
e da fala. Conseguiu me desadjetivar sem, em contrapartida, agregar substantivos
ou verbos no meu repertório de palavras. Restaram-me substantivos sem
substância. Um despojamento que me doía.
O diabo é que na época eu trabalhava numa empresa de
publicidade e para complementar o salário escrevia discursos para o deputado X.
Sem a exuberância dos adjetivos, perdi musculatura e eficiência nas peças que rascunhava.
O discurso debilitou-se, exauriu-se com a escassez de meu vocabulário.
Minha mulher estranhou a secura de minhas palavras, interpretou
como desinteresse, ou mesmo desprezo. E o esforço para compensar a deficiência
causava mais estragos.
Consultei médicos e terapeutas. Ninguém pôde me
ajudar. Houve quem sugerisse consultar um gramático; um professor de português;
experimentar um método para expandir o vocabulário. Tudo em vão.
Pedi uma licença no trabalho. Inventei que precisava
de tempo para recuperar da afasia, voltar a enfeitar as ideias, ornar as
coisas, colorir as imagens. A benevolência do meu chefe felizmente superou a
sua perplexidade – acabou concordando.
Peguei uma passagem para visitar minha filha em Montreal
e ao conversar com o funcionário da migração percebi que os adjetivos fluíam em
francês sem dificuldade. Aí abusei dos superlativos, exaltei a beleza do dia e
as qualidades de Quebec, numa tentativa de extravasar os adjetivos que se
represavam num esconderijo da mente.
Com a filha tentei diálogos em inglês e espanhol, e
arranhar algumas conversas em ídiche que recordava. Os adjetivos brotavam,
abundavam a fala.
Que síndrome seria essa que não atravessava os idiomas
e somente atingia aquele com o qual cresci?
Ao retornar ao Brasil, recorri ao recurso de rechear a
conversa com expressões em inglês e francês: What wonderful day! You are so pretty! Mon cher
amour! Travail parfait! Ce trafic est irritant!
Minhas falas passaram a irritar ainda mais as pessoas,
e eu passei a conversar cada vez menos. As pessoas fugiam de mim. Fiquei sem
adjetivos e amigos.
Hoje pela manhã senti a deficiência agravar-se. Durante o sonho esvaiu-se o reservatório de
conjunções. Todas foram para o esgoto. A desconexão das orações agravou-me
ainda mais a capacidade de comunicação. Não há mais coordenação entre as
ideias. Não consigo mais externar o pensamento. Não adianta consultar
especialistas. A inépcia deles me expôs a essa penúria. Penso em partir, emigrar.
Deixarei aqui idioma, família, amigos, trabalho. Na bagagem meu inglês, meu
francês, minhas esperanças. Adieu!
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Literatura = contenção