Li a primeira estrofe do poema “Incorrigível”, no
recém-publicado livro Tempo de Delação (Íbis Libris, 2019), de Margarida
Patriota, e uma lembrança me invadiu, pedindo para se tornar memória, exigindo
que eu refletisse minha experiência, a partir desse fragmento de poema, que
dizia assim: “Pago o preço / De expiar com o cilício / As mortes que consumei”.
Margarida falava por mim. Ao menos eu entendia a que
ela se referia. Ou pelo menos achava que sim. Também expiei com um cilício, que
conscientemente passei a usar depois de uma breve amizade com Antônio Fraga, escritor
da interessante novela, Desabrigo, publicada pela primeira vez em 1942. Na
época em que o conheci, nos anos 1980, eu estava num limbo sentimental. Tinha
em torno de 30 e, mais ou menos separada, vivia uma onda juvenil. Ele na faixa
dos 70, era um cara cheio de auto-estima. Uma vez me disse que, se a mulher
dele não tivesse me conhecido, se tornaria meu amante. Era um princípio ético
seu. Dele, que era amante de um montão de mulheres, conforme me contou.
Quando, numa conversa, Fraga mencionou a palavra
“cilício”, não sabia o que era. Não me lembro se na hora fiz cara de entendida
ou se fui depois olhar o dicionário para saber do que se tratava. Na época, o que
descobri, em termos gerais, foi que designava um instrumento de contenção feito
de ferro, usado por mulheres durante as Cruzadas em vários feudos da Europa Católica
Apostólica Romana. Era um cinto de castidade, pois. Mais recentemente, porém, soube que essa história não passava de lenda e que o termo dizia respeito a um dispositivo ainda hoje usado por católicos penitentes, como os papas Paulo VI e João Paulo II; uma corrente de metal dentada que envolve a coxa, braço ou cintura, feita para provocar desconforto contínuo.
Cílicio |
Conheci Fraga não me lembro através de quem, mas o
contato se deu a fim de convidá-lo para a tradução do livro Erewhon, de Samuel
Butler. Ele aceitou e foi contratado, por mim e Rubinho, meu sócio numa das
minhas breves aventuras como editora. Fez uma boa tradução, consistente, mas um
pouco dura. Ele era bom de poesia, principalmente poemas eróticos, conhecia bem
o inglês e estudava matemática, principalmente problemas lógicos. Era um
erudito que morava em Queimados, periferia do Rio de Janeiro. Chegamos a fazer uma visita à casa dele,
ocasião em que conheci a sua mulher, ex-atriz, de quem infelizmente não me
lembro o nome. Mas dos álbuns de recortes que ela mostrou muito orgulhosa,
lembro-me bem. Entre críticas publicadas
em jornais, destacava-se um programa da peça “Vestido de noiva", de Nelson
Rodrigues, acho que em sua primeira temporada. Quando lhe perguntei por que
tinha interrompido sua carreira, ela me disse que preferiu se dedicar ao Fraga.
Por um tempo, não longo, apesar do fim (momentâneo) do
projeto da editora, mantive contato com Fraga, agora por conta da amizade em
comum com Luís Carlos, no antigo bar e restaurante “Vermelhinho”. Lembro que
ele nos hipnotizava com seus casos (que às vezes se repetiam) do tempo em que
perambulava pela “zona” e que foi adotado pelas putas, na antiga Vila Mimosa, e
também com o relato do seu encontro histórico (esse sim repetido muitas vezes)
com Oswald de Andrade, que o chamou de James Joyce dos trópicos.[1]
Eu andava bem perdida na época, mas não a ponto de fazer
Fraga ferir os seus princípios, e assim nos divertíamos inocentemente entre
flertes e camaradagens. Éramos ambos sedutores. Ele, com suas histórias e lábia,
e eu com a minha saia de algodão fino, de pregas largas, soltas, com estampas
de borboletas ou algo assim. Uma saia esvoaçante e azul clara, disso me lembro.
Quando ele me contou um sonho, em que eu era personagem importante, acho que
estava com essa saia. Foi nessa conversa que ele me disse, em referência ao meu
modo de escrever, que eu devia usar um cilício.
Eu tinha acabado de publicar a plaqueta das edições
dos Ladrões do Fogo, Ponta do mistério, e talvez ele estivesse se referindo
aos oito poemas da pequena coletânea. Ou então, mais provavelmente, estivesse
tratando dos manuscritos do meu primeiro livro, Do coração e do tempo.
“Pra fazer poesia”, me disse Fraga, “é preciso usar um cilício”. “E você”, me
apontou com o seu dedo encurvado, “foi muito influenciada por Rimbaud e toda essa
história de que o poeta é um ladrão do fogo”.
Terá sido a partir daí que tentei me conter ao
escrever poesia? Pela primeira vez, faço essa correlação. De qualquer maneira,
não o culpo pela minha interpretação do seu conselho. É que, no meu caso, o
cilício fez com que a minha escrita se tornasse econômica demais. Para evitar
derramamentos, acabei tendendo para o hermetismo, e tornei-me elíptica, a ponto
de quase ninguém entender o que escrevo. Uma catástrofe. Mesmo assim acho que
consegui manter certa cadência e, às vezes, do ininteligível brota um ritmo
que, por sua conta, diz alguma coisa, do mesmo jeito que acontece com a música.
Por outro lado, sinto que, em meu processo de escrever poesia, na maioria das
vezes, quando acho que estou esculpindo uma pedra, chego à matéria bruta, um
balbucio. Aliás, essa imagem exemplifica bem a linguagem e o tipo de imagens e
sentimentos que me rondam. Não tente entender...
Agora, no entanto, depois de ler aquela primeira
estrofe do poema de Margarida Patriota, pensando de novo no sonho do Antônio
Fraga, não me parece justa a sua conclusão (a de que eu deveria usar um
cilício). Em resumo, em seu sonho, ele
estava numa estrada de terra e, tendo passado por mim, sentada na beira, em
cima de um gramado, voltou para me entregar um envelope pardo onde provavelmente
estavam os meus manuscritos. Quando eu o abri, saíram pirilampos.
Naquela época, eu estava lendo ensaios e entrevistas
de Pasolini. Tinha então fresca na memória a correlação que o poeta-cineasta
fazia entre o desaparecimento dos vagalumes nos arredores de Roma com a destruição
de valores agrários pré-industriais e a submissão do proletariado a valores
pequeno-burgueses. Se, no sonho do Fraga, os meus poemas tinham se tornado
pirilampos, por que deveria eu usar um cilício? Não seria melhor ir atrás desses
pequenos seres piscantes do que ficar olhando para o envelope agora vazio e
passar a economizar cada palavra como se tratasse de água no deserto? Não
saberia dizer. Ouvi Fraga e acreditei nele. “Você precisa se refrear se quiser
ser uma poeta”.
Por ter ouvido tal
conselho, pago o preço até hoje, como você, Margarida.
Além disso, nessa mesma
estrofe, você menciona mortes que consumou. Digerir mortes, será isso? Será esquecê-las,
ou refazê-las, sublimando a dor das perdas? Mortes morridas e matadas
significam muitas vezes vidas abortadas, e obviamente envolvem perdas. Toda
perda aliás implica em uma pequena morte. A ação de consumir mortes evoca um
princípio existencial de agir sobre ela. Teríamos, Margarida e eu, nos
sujeitado a usar um cilício para assim consumir ou digerir mais e mais mortes?
O que senti ao terminar de ler o poema, de relê-lo várias vezes, é que – no meu
caso – a penitência sofrida para poder digerir as mortes tinha sido dura
demais.
Na última estrofe do poema,
contudo, diz a poeta: “A penitência não inibe / Meu afã de matar / Saudades
importunas”. Ao que parece, o cilício é falho. O meu, posso afirmar, perdeu o
prazo de validade. Talvez o tenha usado para minimizar perdas que, ao serem
inibidas, voltaram fantasmagorizadas. Aos poucos, meu cilício tornou-se um
objeto esdrúxulo, como uma chaleira que ao mesmo tempo que apita, pisca luzes. Por
essa razão, os meus poemas enguiçam, bufam, lampejam e se apagam. Ou apenas
sussurram, resmungam. Assim, como Margarida Patriota que, nesse mesmo poema, diz
não ter mudado com o tempo, percebo agora que serei sempre a mesma. Ladra do
fogo, vagaluminescente. Sentimentos de perda não mais me importunam. Chegam até
a ser bem-vindos. São queridos. Tornaram-se memória.
Do absurdo cilício,
procuro agora me desfazer. Gosto de provocar faíscas com palavras, frases, verbos. Em
minha língua, ressurgem chamas que roubei de mim mesma. Digo isso porque amei
demais e além da conta a ideia de ser poeta. A ilusão é uma luz que a gente
cria, imagina, visualiza a partir de dentro. E a quimera materializa-se como
uma esfinge que infringe penalidades. Eu convivi intensamente com ela e, por
ela, obriguei-me a me conter. Devo dizer que efeitos interessantes e
transformações realmente passam a acontecer. Mas nesse momento me dou conta que
os sentimentos represados apenas se revolviam. E, mesmo com toda minha devoção,
as condenações persistiam. Desmaiei inúmeras vezes na rua a caminho de igrejas.
Adoeci, passei por cirurgias. E tudo isso também em meu poder de poesia, de
ouvir vozes, de entoar palavras. Poder de canto e de dança. Como não percebi
antes? Sempre preferi Alegria à Felicidade.
A mim, os vagalumes!
Já há algum tempo, almejo
que minha poesia force ao contrário os dentes do meu cilício. Dou-me conta agora.
Aposto na ação do tempo e na constância. Acredito no colapso do aparelho
contentor. Ilusão ou ingenuidade? Esse é o risco do otimismo. Mas me parece
natural. Tudo o que, por séculos e séculos, geração após geração, tiver sido
preso, um dia desagua. Penar não é preciso, reclama minh’alma. Nesse momento, sinto-me
inclusive à vontade para fazer um trocadilho e declarar-me compatriota da Poeta.
Só lamento que só agora, depois de tanto tempo, tenha me vindo essa
interpretação para o conselho do Mestre.
Bia Albernaz
***
Incorrigível
Margarida Patriota
Pago o preço
De expiar com o cilício
As mortes que consumei
Esfolei, conjurei
Entreguei à força
Amores desavindos
Fraturei medulas
Em lutas de caserna
Nas quais me excedi
Silêncios me inculpam
Gritos nas catacumbas
Dos que enterrei vivos
Invoco clemência
Por prerrogativa
Não porque mudei
A penitência não inibe
Meu afã de matar
Saudades importunas
[1] Na
contracapa de “Desabrigo e outros trecos”, pela Relume Dumará, em 4ª.ed., de
1999, lê-se a seguinte citação de Oswald de Andrade: “O que há, não é
post-modernismo e sim a nova literatura do Brasil. Veja: na prosa a maturidade
está aí, em Clarice Lispector, em Guimarães Rosa, em Antônio Fraga.”