22 de setembro de 2020

[A] Mulher [não existe]

Casaco de pele, de Siron Franco (1984)

Mas eu sou um homem ainda.

Clarice Lispector

O espelho se virou, e de moça magra e bela, de chapéu, fluida e enamorável, me tornei o homem de corpo pesado, cenho fechado, punhos comprimidos. Nele descubro meu semblante, e a figura feminina se esvai, incapaz de competir com aquele mistério agonizante, em absurda compressão de dor, aprisionado no jorro vermelho, destituído de azul. Uma lava rubra, muito escura, ferve no peito e exige mais sangue, goles de vinho e nacos de carne. 


Publico minha força e minha potência. Meu olhar vazio, meu corpo endurecido, meus gestos contidos refletem a ausência do que possa eu me reconhecer. Sou único e individual. Minha presença toma todo o espaço. Domino e subordino o que me rodeia. Não ouço nada além de ruídos sem importância. Nada me surpreende, desconheço o encontro – alienado de memória, amor, esperança, fé. Ando por sobre a vida. 


Sou um homem, o que basta.

Ana Maria Albernaz

Pele de onça, de Siron Franco (1983)