Ruth Lifschits
“De quem é isso?”, balbuciou Heloísa, parando de repente, hipnotizada pelo que via no secador de roupas. Uma minúscula peça solitária dominava o ambiente ascético da área de serviço – uma tanga de renda vermelha.
Se não era dela, só podia ser da empregada. A cabeça de Heloísa entrou num rodopio acelerado, com milhares de pensamentos se sucedendo, ilógicos e incoerentes: “Cida tem uma bunda enorme, é barriguda, uma eterna grávida, uma fodida que mora longe, cria três filhos sem marido, não tem grana para luxos, não tem tempo pra essas coisas, não pensa – PÁRA, PÁRA, PÁRA! Cida tem lingerie sexy, transa legal o seu corpo quarentão, e faz coisas que nem imagino”.
A calcinha secando, embalada pelo vento que entrava pela janela, parecia uma bandeira demarcando os limites dos territórios. Um apartamento, duas mulheres, dois mundos diametralmente opostos.
Heloísa voltou correndo para o quarto. Precisava ficar quieta. Felizmente, não trabalhava às sextas-feiras. Enfiou-se na cama e ficou imóvel, de olhos fechados, toda contraída. Desejou poder desligar seus pensamentos e parar de sentir. Impossível. A calcinha vermelha lhe mostrara, em segundos, tudo que havia de errado em sua vida. Acontecimentos recentes afloraram: o filho que saíra de casa para estudar no exterior, a casa vazia que o casal não conseguira encher de alegria, a descoberta da traição, a separação.
E lhe veio à mente o dia em que, por engano, saíra para o consultório com o celular do marido, Rogério. Ao verificar suas mensagens, ainda na garagem do seu prédio, identificara a voz de Sandra, sua melhor amiga. Sacanagem, sensualidade e sexo quase pornográfico a atingiram, como um direto na boca do estômago. Tonta, a respiração curta e difícil, viu-se no papel de voyeur das proezas de Rogério & Sandra durante infindáveis segundos. As intimidades obscenas da dupla, com promessas de mais e melhor pro final da tarde, queimavam-lhe mente, coração e retinas. “Sandra sabia das minhas dificuldades, me dizia pra ser paciente, que as coisas iam melhorar. Melhorar pra ela, cretina, falsa, filha da puta!”, praguejava Heloísa, dando meia volta, decidida a confrontar o marido. Jogou tudo na cara dele, junto com o celular. Rogério se assustou, mas ouviu tudo calado. Heloísa falou, falou, falou, desesperada. Depois de um longo silêncio, ele disse: “Não tenho o que te explicar. Aconteceu. Como você quer fazer?”. Naquela mesma noite, Rogério saiu para não mais voltar. Já fazia mais de um ano que os direitos tinham sido respeitados e os bens divididos. Falavam-se de vez em quando, trocando notícias sobre o filho distante.
Depois de uma hora em posição fetal, Heloísa se levantou, tomou um banho e foi se vestir no closet, como de costume. Assustou-se ao ver sua imagem no espelho da parede ao fundo. “Que cara horrível”, murmurou, enquanto deixava a toalha cair. Baixou o olhar para seu corpo refletido, examinando-o minuciosamente. Aprovou os braços firmes, o busto pequeno, os quadris estreitos e as pernas longas e musculosas. Gostava de ser magra – “Viva minha avó, que me deu isso tudo. Pena que não me ensinou como se usa”. Heloísa não tinha vaidades. Suas roupas eram práticas, confortáveis e discretas. Funcionais. Claro que poderia usar uma tanga igual à da Cida, só que nunca tinha querido. Sem pensar, abriu sua gaveta de calcinhas e foi jogando uma por uma no chão. “Iguais, grandonas, broxantes. Por que faço isso comigo, por quê?”, pensava, de olhos presos naquelas peças sem graça. Foi então que partiu para o ataque. Pegou uma tesoura na escrivaninha e, entregando-se a uma raiva avassaladora, picotou todas as calcinhas. Cortava, retalhava, rasgava e xingava: Sandra, Rogério e, depois de um tempo, ela mesma. Vários minutos depois, tinha feito um estrago enorme, pois também atingira mortalmente outros setores de seu vestuário, mas não tudo – não estava tão desvairada assim. Queria ferir, destruir seus objetos neutros e conservadores. Não repetiria o que já tinha feito outras vezes – recolocar tudo de volta em seus lugares uma vez passada a raiva. Deu por terminada a batalha pisoteando os destroços, numa dança de guerra furiosa. Sentiu um grande alívio, muita fome e um certo cansaço. “Preciso sair daqui. É, é isso. Vou sair por aí, andar pelo calçadão, olhar gente bonita. Sem rumo certo, sem hora pra voltar. Hoje vou fazer o que me der na telha”, pensava enquanto esticava a mão para pegar uma calcinha. Mas, lembrando-se do que acabara de fazer, caiu na gargalhada. Um riso nervoso, descontrolado, que terminou num choro sentido, silencioso, doído. “Olha o que eu fui arrumar – não tenho calcinha pra sair! Eu quero sair. Sem calcinha? Sentar na cadeira do bar da esquina, o frio do metal no meu traseiro pelado, e pedir um capuccino pro Zé? Ah, não dá, não dá mesmo”, concluiu.
Cobrindo-se com um quimono, foi procurar sua empregada, na esperança de conseguir uma calcinha limpa no armário das roupas lavadas.
“Dona Helô, só tem essa aqui”, respondeu Cida, com a tanga de renda vermelha nas mãos.
Heloísa, espantada e confusa, exclamou: “Mas essa é sua, mulher!”.
“MINHAAAAAAAAAA! A senhora tá brincando. Essa não passa dos meus joelhos”, respondeu Cida, rindo, meio sem jeito. “Tava aqui, embolada no tanque quando cheguei. Pensei que fosse da senhora. Deve ter caído lá de cima. Vai ver que é da Tina, do 804. Isso é capetagem desse vento danado que joga de tudo aqui dentro. É só abrir a janela que entra coisa. E faço o que com isso?”
“Sei lá. Joga fora, leva pra você”, respondeu Heloísa, já voltando leve e saltitante para o quarto, esforçando-se para pôr ordem em seus pensamentos. “A suíte vai ficar trancada, enfrento a bagunça mais tarde”.
Meia hora depois, lá estava Heloísa no café da esquina, mordiscando um croissant de chocolate enquanto o segundo capuccino era preparado pelo Zé, o garçom que atendia as mesas da calçada. O jornal do dia continuava dobrado e esquecido sobre a mesa.
Heloísa, de olhar perdido na distância, um sorriso maroto nos lábios entreabertos, acariciava sua saia de seda estampada e se deixava invadir por sensações novas e muito agradáveis - o frio do metal da cadeira não era desagradável ao contato. A sensação de frescor provocada pelo ar que lhe subia pelas pernas cruzadas, que ela balançava sem parar, era de um prazer indescritível.