Na semana passada, fui chamada para falar sobre a obra infantil de Clarice Lispector na Biblioteca Municipal de Botafogo. Uma das pessoas que convidei para me dar uma força na platéia foi uma aluna, agora uma amiga. Mas infelizmente ela não pôde comparecer. No dia seguinte, justificando-se, me enviou a seguinte mensagem: “não consegui ir. Fui atropelada na ciclovia por um menininho de skate. Caí da minha bicicleta e fiquei toda machucada. Uma pena... Espero que tenha sido ótimo.”
Na mesma hora, respondi a ela. Precisava responder a ela:
Puxa, que susto! Espero que tudo esteja bem agora. Lá na biblioteca deu tudo certo. Mas também fui "atropelada" por uma menininha na praça, enquanto esperava para falar. Cheguei cedo. Dava tempo de descansar sentada num banco do lado de fora, tranquilamente tomando um suco de laranja. Foi então que se aproximou uma menininha pretinha de cabelos cortados rentes como os de um menino, blusa cor de rosa com estampa prateada e calças azul celeste. Ela era um vulto sujinho, sorridente e aberto. Chegou, sentou ao meu lado e de imediato pediu o meu suco de laranja, praticamente o meu último gole. Olhei pra ela, já sentada do meu lado: "você quer meu último gole de suco de laranja?" "Quero. Eu tô com sede." Então começamos a conversar aquela conversa que nós, "seres civilizados", conversamos quando encontramos um serzinho encardido e belo como o de Andreia.
Perguntei-lhe onde ela morava. Ela disse que na rua. Olhei-a bem, sem acreditar totalmente e perguntei: “aqui?” “Não, em Copacabana. Estou com meu pai.” E apontou um homem dormindo num banco mais adiante. Quis saber seu nome e, como ela percebeu o meu bloquinho e os meus rabiscos, disse que iria escrevê-lo para mim. Tirei meu estojo da bolsa. Dei-lhe um lápis e, junto, um pequeno chocolate. Abri o bloco numa página em branco. Eu queria dar à menina o máximo que podia no pouco tempo que teríamos juntas. Com extremo cuidado, Andreia pegou no lápis. Antes de começar a escrever, afastou um pouco o bloquinho, analisando o espaço da folha em branco e o lugar onde depositaria o seu nome. Escolheu um canto muito à direita. Tentei lhe mostrar que deveria começar a escrever pela outra margem. Não adiantou. Ela voltou ao canto que havia escolhido e ali escreveu seu nome como Leonardo da Vinci o faria: espelhado. Depois me disse o seu nome todo, que eu não me lembro porque era muito grande. Sei que o segundo nome era "Joy". Andreia Joy. Depois, arranquei três folhinhas para ela desenhar. Em seguida, atendi outro pedido seu. Entreguei-lhe uma borracha, escolhendo a melhor das duas que tinha.
Esqueci de dizer. Também dei o suco a ela, que o bebericou, deixando-o logo de lado. Empolgada com outras coisas que saíam da minha bolsa, esbarrou no copo e o derramou.
Em nossa conversa, também falamos sobre o imprescindível assunto: escola. Ela não ia. Disse que estava esperando uma cirurgia no umbigo. Então levantou a blusinha e me mostrou a protuberância em sua barriga no lugar onde temos o umbigo. E me contou que a professora não queria que ela fosse à escola porque o seu umbigo podia estourar. Contestei: "mas você me disse que nasceu com ele desse jeito, não foi? Não vai estourar de um dia pro outro."
Andreia olhou pra mim: "ela (a professora) disse que o que eu tenho aí dentro pode pegar nos outros. Pode ser uma doença que 'pega'."
O que a gente faz com nossa indignação nesse caso? Fiquei ali detestando a tal professora. Mas logo em seguida, vieram me chamar. Estava na hora da palestra. Perguntei a Andreia se queria entrar na Biblioteca. Disse que lá havia um bocado de livros. Mas já era noite. Ela não podia entrar.
Enquanto isso, o pai de Andreia dormia. Eu havia dito a ela para lhe pedir permissão para me acompanhar. Não sei se perguntou porque foi até o pai e voltou muito rápido, com um sorrisão, dizendo que ele tinha deixado. Na verdade, não sabia bem o que fazer. Estava preparada para contar uma história infantil da Clarice Lispector para um público de adultos. Antes de iniciar a palestra, compartilhei com algumas pessoas da platéia a minha sensação de inutilidade. Uma delas se ofereceu para tomar conta de Andreia enquanto eu falava, mas mesmo assim acharam melhor ela ficar lá na praça junto ao pai que dormia. Foi muito estranho e inesquecível ver Andreia, do outro lado da porta de vidro do auditório, me encarando com o seu corpo todo, como se ela fosse uma lagartixa pregada fora da janela. Eu falava um monte de coisas e me consolava, dizendo a mim mesma que talvez assistir uma palestra fosse uma coisa muito chata para a menina. Não sei.
Havíamos brincado com nossos dedos. Não me lembro se chegamos a nos dar as mãos. Mesmo sabendo que ela não podia entrar, levei-a para uma área descoberta, do lado de dentro dos muros da biblioteca. Ela quis dar a volta em torno do prédio mas não havia passagem e já não dava mais tempo.
Na verdade, a conversa com a platéia estava muito simpática e seguia divertida. Enquanto eu falava, a noite caía. Quando saí não encontrei mais Andreia. Eu tinha dito a ela que, no final, lhe daria um livro. Lembro-me agora de seu rosto, com as palminhas das mãos abertas acima dos olhos, buscando-me, cada vez mais distante. Ela estava se despedindo. Andreia Joy, que a vida não lhe machuque, que o mundo não lhe machuque. Obrigada, Andreia. Desculpe-me, Andreia.
E a você também, querida amiga. Obrigada, por ler este meu relato até o fim. Este registro estava precisando ser feito. Beijo, e se cuide com a bicicleta, hein? Não se distraia, muito. Aproveito para desejar um feliz natal, com muitos sorrisos inocentes de Andreia Joy pela frente – um verdadeiro atropelamento de borboleta. Reze por Andreia Joy, mesmo que você não costume fazer isso. Ela é um bom motivo pra gente se lembrar de querer um mundo melhor.
Com o carinho, da Bia