I
A partir de textos de Manuel Antonio de Castro
O que é techné
Estudar e aprofundar a questão da arte, isto é techné.
Palavra que, em grego, diz conhecimento.
*
Quando técnica se torna tecnologia?
Ao se tornar instrumento de autoafirmação, massificação, destruição e mediocrização.
Quando não mais sabe lidar com as coisas.
Quando não é mais movido e orientado pelas coisas,
de um modo nem idealista, nem realista,
mas compreensivo.
*
Na cultura contemporânea, aconteceu a reunião impensável:
techné + logos = tecnologia.
Tecnologia não é o conjunto do aparato técnico produzido pela ciência;
tecnologia implica em uma visão técnica do mundo, onde vigora a eficácia e a utilidade.
***
II
Que fazer quando a criação do mundo, segundo a nossa vontade,
furtivamente toma conta da terra?
O que um homem faz então?
Essa pergunta também se fez Martim, em A maçã no escuro, de Clarice Lispector, quando lhe chegou o duro tempo da explicação. Também para ele, a arte se manifestou. Entenda-se aqui, arte no sentido de busca de um saber que supera as limitações da época, aberto pela techné, dô, na tradição japonesa, caminho de auto-perfeiçoamento pela aprendizagem de uma arte.
Martim, à custa de um controle de arte [...] se apegou a uma verdade apenas. O caminho de auto-aperfeiçoamento o levou à compreensão da verdade singular das coisas. E à estranheza, pois rompeu com a busca na direção da universalização, da verdade abstrata e polivalente.
A arte de Martim aproxima-se daquela desenvolvida por Lucrécia, a arte de ver. Com olhos de contra-Medusa, ela permitia a livre movimentação e ao mesmo tempo o emolduramento de cada coisa como uma obra.
***
III
Normalmente, vemos as coisas como matéria e forma,
interpretando-as como instrumentos,
em função da sua utilidade ou do seu conteúdo.
Quando deu o exemplo dos sapatos da camponesa no quadro de Van Gogh, em A origem da obra de arte, Heidegger observou bem que a utilidade dos sapatos dependia de um outro item por ele chamado solidez. Se quisermos chegar ao que é essencial nos sapatos, não basta descrevê-los, nem relatar o processo de sua fabricação, nem mesmo mostrar o modo como são utilizados.
Coloquemo-nos diante do quadro de Van Gogh. Aproximando-nos da obra, nos colocaremos num lugar que habitualmente não é aquele que costumamos estar. Não se trata de importar subjetividade aos sapatos. Trata-se de deixar que a obra nos desvele os sapatos em sua existência. Na obra está em obra um acontecer da verdade, aquela solidez, para além da utilidade dos sapatos.
Nesse pensamento acerca da obra de arte, não é possível separar Verdade e Beleza. A imagem de uma pequena igreja cuja arquitetura modesta se erguera no antigo silêncio, encontrada na S. Geraldo de Lucrécia, em “A cidade sitiada”, de Clarice Lispector, é bela. Além de bela (ou porque é bela), a imagem nos abre para um antigo silêncio, para uma terra onde se ergue uma pequena igreja. Sem ele, a igreja é apenas um monumento. Esse silêncio é concreto. É ele que sustenta o habitar dessa igreja.
No poético, se sustenta o habitar dos lugares. O poético confere às coisas o seu caráter de obra a ser criada. Para ver as coisas em sua poesia, é preciso ser também uma coisa a se obrar, na busca pela aproximação da verdade de um outro. O poeta é um ente-que-vê-com-arte.
Lucrécia atentava para os movimentos dos cavalos em S. Geraldo. Eles eram seus guias. A moça via a cidade como eles. Com a cabeça a dominar o subúrbio, lançando o longo relincho, cascos secos avançando até estacarem no ponto mais alto da colina, mesmo com medo. Nas trevas do quarto, o terror de um rei, a mocinha queria responder com as gengivas à mostra. Mal saía do quarto, sua forma se avolumava e apurava-se, e quando chegava à rua já galopava com patas sensíveis, os cascos escorregando nos últimos degraus. Da calçada deserta, ela olhava e via as coisas como um cavalo. Porque não havia tempo a perder: mesmo de noite a cidade trabalhava fortificando-se e de manhã novas trincheiras estariam de pé.
No momento em que os cavalos foram banidos da cidade, Lucrécia abandonou a cidade.
A tarefa de ver requer grandeza de alma. Requer entrega para fazer da cidade, no movimento para além da sua época, uma obra de arte. Arte é não explodir a cidade, nem é levá-la a se dissipar em redundância. Não é preciso perfumar as flores, nem poetizar a poesia. É preciso ter domínio das forças, ver as coisas como um cavalo. É preciso conhecer a contenção, saber domar a explosão e ignorar a tentação da dissipação. Ser o lugar desse olhar exige trabalho.
A partir de "Claricidade – a cidade segundo Clarice", de Bia Albernaz
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