28 de maio de 2012

Este mundo em que vivemos 2

Gainsborough, um detalhe
          Maria Tereza Albernaz
          Entrando no grande apartamento, logo percebi que não havia nada fora do lugar, nada fora de ordem. Salas sóbrias, cores neutras e perfeita arrumação dos móveis, quadros e objetos decorativos. Não era necessário ser conhecedora de reformas e decoração para saber que boa qualidade era uma exigência da dona da casa. 
          No apartamento, dez mulheres se encontravam para festejar o aniversário de M. 
      Os janelões abertos refrescavam o ambiente e mostravam a linda paisagem do mar e das montanhas que acolhiam o Alto Leblon. Brancas flores delicadas, combinando com a toalha, enfeitavam a mesa. Três empregadas uniformizadas, entre uma e outra convidada, ofereciam canapés e sucos naturais. No almoço, a comida frugal e sofisticada descansava sobre os aparadores. Um vinho leve foi oferecido. Bolo, velinhas, nem pensar. Depois do café, servido em frágeis xicrinhas de porcelana, algumas amigas, tranquilamente, foram fumar em uma das salas. 
        Todas nós, mulheres, tínhamos aproximadamente a mesma idade – um pouco mais, um pouco menos de 60 anos. Jóias discretas, roupas clássicas, básicas, pouco coloridas, algumas rejuvenescidas por uma peça ou um detalhe mais moderno. Extravagante, original, sexy? Nenhuma. Vulgar, muito feia ou muito gorda? Também ninguém. Todas bem cuidadas, tratadas. 
         A conversa girava sobre temas gerais. Quando o assunto referia-se à família, o foco estava nos filhos, seguidos por noras e netos. Sobre os genros, pouco se comentava. Muito se falava sobre viagens, países visitados, férias. Bons restaurantes contrapunham-se a dietas e atividades físicas praticadas pela maioria. Depois da troca de recomendação de filmes e livros, debatemos planos de fim de semana. Nada de temas polêmicos, discussão. Nada de exposição de problemas ou demonstração de excitação. 
      Eu era parte do conjunto. Monótonas, umas parecíamos com as outras. A falta de ardor exasperava. Tive de sair.
Gainsborough, outro detalhe (do blog da Duquesa Devonshire)

17 de maio de 2012

Meta (1913)

Robert Walser
                                                                                                                 (in Histórias de amor, trad. de Isabel Castro Silva)

Aconteceu certa noite, lembro-me apenas vagamente da cena, tão breve quanto comovente, regressava eu atordoado e trôpego de uma incursão selvagem aos botequins, quando numa das ruas monótonas da grande cidade encontrei uma mulher que me convidou a acompanhá-la até casa. Não era uma mulher bonita e, no entanto, sim, era bonita. Muito de acordo com o estado em que me encontrava, dirigi à criatura nocturna toda a espécie de chistes, pelo menos aos meus ouvidos bastante cómicos e tontos, mas ainda assim espirituosos, notando ao mesmo tempo, com aquele talento próprio de quem está embriagado, que ela me achava deveras divertido. Mais ainda: eu agradava-lhe, e fiquei com a impressão de que ela começava a sentir uma gentil afeição por mim. Fiz menção de me afastar, mas ela não me largava, e disse: "Oh, não fujas de mim. Vem comigo, querido amigo. Queres agora ser cruel e nada sentir por mim? Mas não. Bebeste demasiado, rapazinho. E, no entanto, quem para ti olha sabe que és amável. Queres agora ser maldoso e enjeitar-me vergonhosamente, a mim, que tão de repente me afeiçoei a ti? Mas não. Oh, se tu soubesses… mas não podemos incomodar os homens com os nossos sentimentos, senão apenas nos desprezam e escarnecem. Se tu soubesses quanto sofro com a frieza, com o vazio desta sensualidade que é o meu ofício, um ofício que desperta terror como uma tragédia. Até hoje sempre me vi a mim própria como um monstro que merece ser espezinhado. O meu ânimo é agora sereno, doce e casto, graças a ti, meu querido, e tu, tu queres agora atirar-me de volta para o monstruoso abismo? Mas não. Fica, fica, e vem comigo. Passaremos a noite inteira um com o outro. Ah, saberei entreter-te, logo verás. Quem sente alegria não é quem melhor entretém? E eu agora, depois de tanto, tanto tempo, sinto-me outra vez alegre. Sabes o que isso significa para mim, a inumana, sabes? Sorris? Sorris com muita graça, e eu amo o teu sorriso. E tu queres agora, distante e insensível a todos os encantos da amizade, roubar-me a alegria que sinto ao olhar para ti? Queres agora destruir e aniquilar tudo o que me faz feliz, tudo o que, depois de tanto, tanto tempo, me faz de novo feliz? Gentil amigo! Eu, que sempre fui forçada a conviver com a crueldade, com o peso de chumbo da atrocidade, não terei eu também o direito a por uma vez conhecer o prazer verdadeiro? Não sejas cruel. Peço-te, peço-te. Não, não te arrependerás. As horas que passares com a desprezada, com a desonrada, ser-te-ão bem-vindas e abençoadas. Sê gentil e vem comigo. Não sejas gentil comigo em nenhuma outra ocasião, mas agora, agora sê gentil e acompanha confiadamente a injuriada. Vê como as lágrimas me sobem aos olhos e ouve as minhas súplicas. Se partires sem que sejas meu amigo, tudo diante dos meus olhos será negro; mas basta que sejas amável para que o sol claro ilumine a noite. Sê esta noite uma estrela amiga e benfazeja no meu céu. Comoves-te? Dás-me a mão? Virás comigo? Amar-me-ás?"…

Epílogo: Não poderia esta mulher ser Circe, que pede ao nobre grego que cruzou os mares para que fique com ela? Ele quer regressar a casa, mas ela, ela suplica-lhe que não a abandone. É uma feiticeira má que transforma aqueles para quem olha em porcos grunhidores. É verdade que ela o nega; diz que não é uma feiticeira má, que ela própria é vítima do feiticeiro mau. É bem possível. É mulher, de resto, de uma beleza comovente. Tem uma voz branda e murmurada, e dos olhos, de um azul e verde marinho como muitas vezes se vê em gatos estrangeiros, irrompe um formidável clarão, amável e orgulhoso. não é infeliz mas também não é feliz. Procura e encontra no nobre grego a sua felicidade, e ele agora quer deixá-la para regressar à esposa que o espera. Oh, delicada tragédia. Entre outras coisas, diz ela que os seus companheiros de viagem se metamorfosearam por si próprios em porcos. Que a culpa e a vergonha é deles, não dela. São porcos porque queria ser porcos. Ela sorri, e pelo sorriso esgueira-se uma lágrima. É irónica e ao mesmo tempo de uma seriedade absoluta, frívola e ao mesmo tempo melancólica. "Não vês", diz ela, segurando a mão dele, "não vês que agora não sou eu a feiticeira, que o feiticeiro és tu? Oh, sê meu amigo, meu protector, meu querido e supremo feiticeiro. Protege-me de Circe. Se tu ficares comigo, eu não serei Circe. Ela vai-se embora se tu não te fores embora." Assim fala ela, cobrindo-o de ternas carícias, mas ele, ele… parte. Deixa-a entregue a Circe, entregue a si própria, deixa-a entregue à crueldade que tem no peito, entregue à ignomínia de que é escrava. Conseguirá ele partir? Será assim tão empedernido?

***
Na contracapa
Robert Walser revela um amplo amore mundi, que envolve as raparigas e os pássaros, as nuvens e as mulheres distantes, as flores e os campos e os enamorados que nele passeiam.
[...]
Em 1929 ingressou voluntariamente num manicómio. Foi encontrado morto, na neve, por um grupo de crianças no dia de Natal de 1956, quando dava um dos seus habituais passeios.

4 de maio de 2012

Saudades de Circe


Circe transforma os homens de Odisseu em porcos (1889) -
fotogravura de pintura por L. Chalon

No poema Endimião, do poeta John Keats, encontram-se versos de um rei transformado em elefante pela deusa, em tradução de autoria não identificada, captada no site wikipédia:
Não lamento a coroa que perdi,
A falange que outrora comandei
E a esposa, ou viúva, que deixei
Não lamento, saudoso, minha vida
Filhos e filhas, na mansão querida
Tudo isso esqueci, as alegrias
Terrenas dos velhos dias olvidei
Outro desejo vem, muito mais forte
Só aspiro, só peço a própria morte
Livrai-me deste corpo abominável
Libertai-me da vida miserável
Piedade, Circe! Morrer e tão-somente!
Sede, deusa gentil, sede clemente!

Uma versão canastrona de Circe, extraída da série televisiva The Odyssey, 1997, com direção de Andrei Konchalovsky. O ator Armand Assante interpreta Odisseu; Bernadette Peters é Circe.