Robert Walser
(in Histórias de amor, trad. de Isabel Castro Silva)Aconteceu certa noite, lembro-me apenas vagamente da cena, tão breve quanto comovente, regressava eu atordoado e trôpego de uma incursão selvagem aos botequins, quando numa das ruas monótonas da grande cidade encontrei uma mulher que me convidou a acompanhá-la até casa. Não era uma mulher bonita e, no entanto, sim, era bonita. Muito de acordo com o estado em que me encontrava, dirigi à criatura nocturna toda a espécie de chistes, pelo menos aos meus ouvidos bastante cómicos e tontos, mas ainda assim espirituosos, notando ao mesmo tempo, com aquele talento próprio de quem está embriagado, que ela me achava deveras divertido. Mais ainda: eu agradava-lhe, e fiquei com a impressão de que ela começava a sentir uma gentil afeição por mim. Fiz menção de me afastar, mas ela não me largava, e disse: "Oh, não fujas de mim. Vem comigo, querido amigo. Queres agora ser cruel e nada sentir por mim? Mas não. Bebeste demasiado, rapazinho. E, no entanto, quem para ti olha sabe que és amável. Queres agora ser maldoso e enjeitar-me vergonhosamente, a mim, que tão de repente me afeiçoei a ti? Mas não. Oh, se tu soubesses… mas não podemos incomodar os homens com os nossos sentimentos, senão apenas nos desprezam e escarnecem. Se tu soubesses quanto sofro com a frieza, com o vazio desta sensualidade que é o meu ofício, um ofício que desperta terror como uma tragédia. Até hoje sempre me vi a mim própria como um monstro que merece ser espezinhado. O meu ânimo é agora sereno, doce e casto, graças a ti, meu querido, e tu, tu queres agora atirar-me de volta para o monstruoso abismo? Mas não. Fica, fica, e vem comigo. Passaremos a noite inteira um com o outro. Ah, saberei entreter-te, logo verás. Quem sente alegria não é quem melhor entretém? E eu agora, depois de tanto, tanto tempo, sinto-me outra vez alegre. Sabes o que isso significa para mim, a inumana, sabes? Sorris? Sorris com muita graça, e eu amo o teu sorriso. E tu queres agora, distante e insensível a todos os encantos da amizade, roubar-me a alegria que sinto ao olhar para ti? Queres agora destruir e aniquilar tudo o que me faz feliz, tudo o que, depois de tanto, tanto tempo, me faz de novo feliz? Gentil amigo! Eu, que sempre fui forçada a conviver com a crueldade, com o peso de chumbo da atrocidade, não terei eu também o direito a por uma vez conhecer o prazer verdadeiro? Não sejas cruel. Peço-te, peço-te. Não, não te arrependerás. As horas que passares com a desprezada, com a desonrada, ser-te-ão bem-vindas e abençoadas. Sê gentil e vem comigo. Não sejas gentil comigo em nenhuma outra ocasião, mas agora, agora sê gentil e acompanha confiadamente a injuriada. Vê como as lágrimas me sobem aos olhos e ouve as minhas súplicas. Se partires sem que sejas meu amigo, tudo diante dos meus olhos será negro; mas basta que sejas amável para que o sol claro ilumine a noite. Sê esta noite uma estrela amiga e benfazeja no meu céu. Comoves-te? Dás-me a mão? Virás comigo? Amar-me-ás?"…
Epílogo: Não poderia esta mulher ser Circe, que pede ao nobre grego que cruzou os mares para que fique com ela? Ele quer regressar a casa, mas ela, ela suplica-lhe que não a abandone. É uma feiticeira má que transforma aqueles para quem olha em porcos grunhidores. É verdade que ela o nega; diz que não é uma feiticeira má, que ela própria é vítima do feiticeiro mau. É bem possível. É mulher, de resto, de uma beleza comovente. Tem uma voz branda e murmurada, e dos olhos, de um azul e verde marinho como muitas vezes se vê em gatos estrangeiros, irrompe um formidável clarão, amável e orgulhoso. não é infeliz mas também não é feliz. Procura e encontra no nobre grego a sua felicidade, e ele agora quer deixá-la para regressar à esposa que o espera. Oh, delicada tragédia. Entre outras coisas, diz ela que os seus companheiros de viagem se metamorfosearam por si próprios em porcos. Que a culpa e a vergonha é deles, não dela. São porcos porque queria ser porcos. Ela sorri, e pelo sorriso esgueira-se uma lágrima. É irónica e ao mesmo tempo de uma seriedade absoluta, frívola e ao mesmo tempo melancólica. "Não vês", diz ela, segurando a mão dele, "não vês que agora não sou eu a feiticeira, que o feiticeiro és tu? Oh, sê meu amigo, meu protector, meu querido e supremo feiticeiro. Protege-me de Circe. Se tu ficares comigo, eu não serei Circe. Ela vai-se embora se tu não te fores embora." Assim fala ela, cobrindo-o de ternas carícias, mas ele, ele… parte. Deixa-a entregue a Circe, entregue a si própria, deixa-a entregue à crueldade que tem no peito, entregue à ignomínia de que é escrava. Conseguirá ele partir? Será assim tão empedernido?
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Na contracapa
Robert Walser revela um amplo amore mundi, que envolve as raparigas e os pássaros, as nuvens e as mulheres distantes, as flores e os campos e os enamorados que nele passeiam.
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Em 1929 ingressou voluntariamente num manicómio. Foi encontrado morto, na neve, por um grupo de crianças no dia de Natal de 1956, quando dava um dos seus habituais passeios.
Em 1929 ingressou voluntariamente num manicómio. Foi encontrado morto, na neve, por um grupo de crianças no dia de Natal de 1956, quando dava um dos seus habituais passeios.
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