Bia Albernaz
para Iloni Seibel, in memoriam
Tudo começou em Santa Teresa. Esperei cerca de 40 minutos no ponto.
Assim que cheguei, notei o gatinho. Estava na soleira da porta de uma
mulher que ali, todos os dias, lhe deixava o que comer. Era uma gata quase preta como a minha, também da rua. Essa estava triste, aproximou-se de mim e disse uma mulher com uma trança escura
pendente de um dos lados. De brincos dourados e fala solta, ela me
contou: se fosse meu marido, ele apanhava o gato. A conversa estendeu-se
e os olhos também. Cadê esse ônibus que não vem? Consegui um lugar mas
no Guimarães me levantei: uma fila de cabeças brancas subia, degrau a
degrau. E, a cada um, o motorista cobrava, esperava, cobrava, esperava,
cobrava.
Fui para a parte
de trás no recuo do ônibus com a mochila pesada num ombro só. Pensei na
mulher que se gabava de dançar "pole dance" enquanto me equilibrava com
um bráço no alto, seguro na haste de metal. Depois mudei de posição e
passei a me equilibrar com o corpo encostado na haste vertical e, junto
com todo mundo, desci a sacudir pelos paralelepípedos ladeira abaixo até
o largo da Carioca. Ali o motorista impacientou-se: para ele o ponto
final devia ser antes do ponto final e quando eu pedi para ele parar...
no ponto final, me olhou com cara de nojo. Fui saltar, mas uma velhinha
se aproveitou: vou saltar também. Deixei que fosse no seu passo lento à
minha frente e, antes que eu colocasse inteiramente os meus dois pés no
asfalto, o ônibus já se mexia, partia.
Ufa, agora o metrô, sempre mais civilizado, mesmo que primeiro em pé,
depois sentada. No caminho até o Estácio deu para puxar um livro -
gatilho para se distrair no gozo de um assento vago. E foi até o Estácio
porque a estação da Prefeitura, para onde eu ia - a Cidade Nova - ficava
na linha 2. E descobri, com cem anos de atraso: há uma linha 2 no metrô!
Então, a surpresa - a Cidade Nova também existe. E como! Para se ter
uma ideia do cenário com prédios de convenções, vidros nas janelas,
capacetes, operários, cheiro de poeira misturado ao pó de cimento, o
nome da rua onde passei é Beatriz Lucas Goidorotti (ou algo assim),
pessoa que morreu em 2004, e era, explicava a placa, um empresário do
ramo dos seguros. Grande mistério, um homem chamado Beatriz Lucas e,
ainda por cima, homenageado com o batismo de uma rua. Ao fundo vi. Era um
prédio azul-prata com vidros cegantes onde, em letras descomunais, reinava o nome
de uma grande companhia de seguros, e pressenti o conluio.
Na Prefeitura, a cidade vira uma espécie de circo ou de feira, uma
gincana sem graça em todo o caso, até se acertar a fila em que se devia
estar. E ali ficar a ruminar uma raiva cidadã. Mas a indignação era
pouca, muda. Ainda bem que eu tinha ali o meu gatilho logo devidamente
disparado. Ah, os assuntos do século XIX, iguaizinhos aos nossos. Só que
agora o ócio da discussão pela manhã entrega-se às apresentadoras no
monitor de uma tevê ao fundo, ai que monotonia!
Sua vez! Um guarda na porta indica que agora cabe a mim a vez
de mostrar meus metais para passar a roleta e entrar na agência do
banco e esperar lá dentro, ainda que sem lugar para sentar. Depois de
deixar ali um pouco do meu sangue, do meu suor e da dureza do meu dever em forma
de imposto, fiz o caminho de volta.
À frente da Prefeitura, um protesto de guardas municipais, que gritavam
vergonha, vergonha, salário de fome e o prefeito que só negocia com o
povo nas ruas mas com eles não. Ai, ai! Passo pela Beatriz Lucas e desço
novamente na estação das catacumbas do Estácio mas nada aqui parece
sagrado ou histórico ou pitoresco por isso espero poder sentar e poder
ler mais um pouco.
Mas esqueci de dizer: o céu nesse dia estava azul. Muito. Desci na São Clemente e entrei no jardim do Rui Barbosa. É um espaço mais republicano. Aqui estamos, aqui nos deixamos ficar em um banco de madeira, entre bebês, aposentados e babás.
Mas esqueci de dizer: o céu nesse dia estava azul. Muito. Desci na São Clemente e entrei no jardim do Rui Barbosa. É um espaço mais republicano. Aqui estamos, aqui nos deixamos ficar em um banco de madeira, entre bebês, aposentados e babás.
Estamos fazendo a digestão, nós, os do ócio. As babás e as mamães, não.
Essas sumiram enquanto eu revia meus passos e as caras das pessoas,
antes delas se afastarem para sempre. Os bebês se foram. É hora dos que
tem casa e comida ou dos que têm de se arranjar sem um ou outro. Então, boa
tarde, digo eu. Falo para dentro mas miro o meu olhar ao redor -
funcionários contratados divertem-se nessa meia-hora entre um ir e um
vir. Como não se fura a fila nem se adianta a hora, cada um, a seu modo,
espera, se esprai ou se espanta, que a vida é de se espantar.