21 de agosto de 2013

Crônica civilista

Bia Albernaz
para Iloni Seibel, in memoriam
          Tudo começou em Santa Teresa. Esperei cerca de 40 minutos no ponto. Assim que cheguei, notei o gatinho. Estava na soleira da porta de uma mulher que ali, todos os dias, lhe deixava o que comer. Era uma gata quase preta como a minha, também da rua. Essa estava triste, aproximou-se de mim e disse uma mulher com uma trança escura pendente de um dos lados. De brincos dourados e fala solta, ela me contou: se fosse meu marido, ele apanhava o gato. A conversa estendeu-se e os olhos também. Cadê esse ônibus que não vem? Consegui um lugar mas no Guimarães me levantei: uma fila de cabeças brancas subia, degrau a degrau. E, a cada um, o motorista cobrava, esperava, cobrava, esperava, cobrava.
          Fui para a parte de trás no recuo do ônibus com a mochila pesada num ombro só. Pensei na mulher que se gabava de dançar "pole dance" enquanto me equilibrava com um bráço no alto, seguro na haste de metal. Depois mudei de posição e passei a me equilibrar com o corpo encostado na haste vertical e, junto com todo mundo, desci a sacudir pelos paralelepípedos ladeira abaixo até o largo da Carioca. Ali o motorista impacientou-se: para ele o ponto final devia ser antes do ponto final e quando eu pedi para ele parar... no ponto final, me olhou com cara de nojo. Fui saltar, mas uma velhinha se aproveitou: vou saltar também. Deixei que fosse no seu passo lento à minha frente e, antes que eu colocasse inteiramente os meus dois pés no asfalto, o ônibus já se mexia, partia.
          Ufa, agora o metrô, sempre mais civilizado, mesmo que primeiro em pé, depois sentada. No caminho até o Estácio deu para puxar um livro - gatilho para se distrair no gozo de um assento vago. E foi até o Estácio porque a estação da Prefeitura, para onde eu ia - a Cidade Nova - ficava na linha 2. E descobri, com cem anos de atraso: há uma linha 2 no metrô!
          Então, a surpresa - a Cidade Nova também existe. E como! Para se ter uma ideia do cenário com prédios de convenções, vidros nas janelas, capacetes, operários, cheiro de poeira misturado ao pó de cimento, o nome da rua onde passei é Beatriz Lucas Goidorotti (ou algo assim), pessoa que morreu em 2004, e era, explicava a placa, um empresário do ramo dos seguros. Grande mistério, um homem chamado Beatriz Lucas e, ainda por cima, homenageado com o batismo de uma rua. Ao fundo vi. Era um prédio azul-prata com vidros cegantes onde, em letras descomunais, reinava o nome de uma grande companhia de seguros, e pressenti o conluio.
          Na Prefeitura, a cidade vira uma espécie de circo ou de feira, uma gincana sem graça em todo o caso, até se acertar a fila em que se devia estar. E ali ficar a ruminar uma raiva cidadã. Mas a indignação era pouca, muda. Ainda bem que eu tinha ali o meu gatilho logo devidamente disparado. Ah, os assuntos do século XIX, iguaizinhos aos nossos. Só que agora o ócio da discussão pela manhã entrega-se às apresentadoras no monitor de uma tevê ao fundo, ai que monotonia!
          Sua vez! Um guarda na porta indica que agora cabe a mim a vez de mostrar meus metais para  passar a roleta e entrar na agência do banco e esperar lá dentro, ainda que sem lugar para sentar. Depois de deixar ali um pouco do meu sangue, do meu suor e da dureza do meu dever em forma de imposto, fiz o caminho de volta.
          À frente da Prefeitura, um protesto de guardas municipais, que gritavam vergonha, vergonha, salário de fome e o prefeito que só negocia com o povo nas ruas mas com eles não. Ai, ai! Passo pela Beatriz Lucas e desço novamente na estação das catacumbas do Estácio mas nada aqui parece sagrado ou histórico ou pitoresco por isso espero poder sentar e poder ler mais um pouco.
          Mas esqueci de dizer: o céu nesse dia estava azul. Muito. Desci na São Clemente e entrei no jardim do Rui Barbosa. É um espaço mais republicano. Aqui estamos, aqui nos deixamos ficar em um banco de madeira, entre bebês, aposentados e babás.
          Estamos fazendo a digestão, nós, os do ócio. As babás e as mamães, não. Essas sumiram enquanto eu revia meus passos e as caras das pessoas, antes delas se afastarem para sempre. Os bebês se foram. É hora dos que tem casa e comida ou dos que têm de se arranjar sem um ou outro. Então, boa tarde, digo eu. Falo para dentro mas miro o meu olhar ao redor - funcionários contratados divertem-se nessa meia-hora entre um ir e um vir. Como não se fura a fila nem se adianta a hora, cada um, a seu modo, espera, se esprai ou se espanta, que a vida é de se espantar.

2 comentários:

  1. As formigas saem das tocas em suas filas aparentemente diretas, mas quando atentos as estudamos, vemos que os caminhos se bifurcam, são caóticas. Igual aos pensamentos.
    As aspas faltantes que nos levam a compreensões várias de histórias de mulheres de tranças e gatos negros e sem dono. Como nós diante do poder das autoridades.
    A habitual falta de respeito, no ônibus, metrô, na fila para a prefeitura. Pagamos de um jeito ou de outro, quer um imposto absurdo, quer uma rua construída com nosso capital para homenagear o indevido. Acho mesmo que o que nos resta é sentar numa praça, mais pública porém privada, lamber os dedos, olhar os bebês, e cogitar se o futuro aqui será diferente do hábito arraigado de séculos.

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  2. Que lindo o seu comentário, Unknown.

    Gostei do alento final.

    Te envio um mantra do Otávio Paz:

    Que nesse momento me seja concedido abrir a possibilidade de ser que todo nascer contém.

    Volte sempre, desconhecido.

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