7 de abril de 2014

Menina, cão, quintal, família feliz

     O que dizer desta fotografia? Vejo crianças, um cachorro, e casas. Uma menina, bem à vontade junto ao cão, cuida de conter o animal. Toca-o como que pedindo que obedeça e colabore para que sua agonia acabe e ele possa sair do lugar da obediência e da submissão. E ele procura sinais de agrado no dono, o fotógrafo, que o posicionou e ordenou que ficasse sentado naquele lugar. Só meu pai tinha voz de comando sobre o cão. Sou a menina solícita.

         Me acostumei a ver desde muito cedo as imagens colecionadas por minha mãe em um álbum intitulado My Book Treasure. É um grande álbum marrom de capa dura com o desenho de um baú de piratas cheio de moedas de ouro e muitas páginas negras repletas de fotos coladas.  Álbum com várias anotações em nanquim branco, letra de minha mãe, com as datas e locais do nosso passado.  Quando ela me deixava folhear o álbum, narrativas  eram acrescentadas.  As circunstâncias desse ou daquele momento se esclareciam com as histórias que entrelaçavam acontecimentos corriqueiros ou grandes celebrações, sempre como vivido e lembrado por ela. E tudo passava a existir para mim. Viajava no tempo e construía minhas lembranças. Eu adorava esses momentos em que as imagens ganhavam vida e significados. E sempre a voz dela pois meu pai morreu muito cedo. Ele também ganhava vida e vinha para junto de mim. Nesses relatos eu e meus irmãos éramos personagens, com papéis marcantes. Eu, única filha, era muito observada, mimada e acariciada pelo olhar do fotógrafo. 
          Durante muitos anos tivemos como certo que essa função tinha sido exercida unicamente pelo nosso pai. Afinal, a câmera era dele e mamãe nunca assumiu autoria de nada e nem mostrou interesse por fotografia. Agora, ao folhear com cuidado o álbum que se esfarela ao mais delicado toque, vejo em muitas cenas a sombra de mamãe dentro do quadro.  É seu corpo entrando no tempo a ser lembrado, não deixando dúvidas sobre quem também criara vários momentos daquele álbum. 
           Eu me reconheço no rosto da menina e sei quando e onde estava. O cenário é familiar, presente nas inúmeras vezes em que as fotografias foram visitadas. De tanto conviver com estas imagens, consegui não me esquecer das casas onde morei. 
          Esta certamente foi tirada em um dia fora do comum, em hora de estar bem vestida, com capricho não destinado a brincadeiras no quintal. O laço de fita que enfeita os cabelos sempre aponta para momentos especiais. Laços duravam pouco tempo em meus cabelos lisos e muito finos.  Meu irmão mais velho, ao fundo, se afasta do recorte escolhido para a minha pose. Também está bem vestido, num terninho escuro de mangas compridas, de sapato e meias pretas – não é traje para folguedos nos fundos da casa e na companhia do cão da família. As longas sombras na grama me dizem que o sol estava baixo no horizonte. Começo ou final de dia? Estamos ainda limpos e bem arrumados, mas não me lembro de nada, nem de explicações dadas por minha mãe.
               E porque a pose no quintal e não no jardim de frente para a rua? De certo para que o cão-personagem pudesse interagir sem possibilidade de fuga.
          As roupas da menina e do menino são as de exibir, do reino do parecer, e destinadas às páginas de um elegante álbum que eternizarão cenas de tempos idealizados do passado, e esquecidos pelos personagens dessas breves histórias. Adultos tecem fios condutores da memória, empenhados que estão em classificar e registrar os muitos minutos mágicos proporcionados à sua prole. Constroem cenas para provar a todos que houve infância, vida em família, alegrias e felicidade    e que as crianças foram o centro das atenções e dedicações cegas dos pais.
           Rip, o cão de papai caçador nas horas vagas, completa o quadro que fala da família perfeita: filhos sadios e bem vestidos, animal de estimação de raça e casa nos Estados Unidos, o que dá ao nosso núcleo familiar uma posição social privilegiada.
            Minha mãe devia estar dentro de casa, ocupada com meu outro irmão. Naquela época éramos três o filho caçula chegaria anos depois.
             Papai, quase sempre atrás da câmera, nos legou os registros de seu olhar atento e cuidadoso presentes na maior parte da coleção de fotos de infância do álbum tesouro. 
             Esta fotografia é profética. Nela só há dois dos quatro filhos do casal, os dois que restam vivos nos dias de hoje.
Brejal, 5 de março de 2014
Ruth Lifschits

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