Mix Baudelaire
Onde encontrar o livro
de “Pequenos poemas em prosa” em português
tradução de Aurélio
Buarque
http://pequenospoemasemprosa.blogspot.com.br/2011/01/o-estrangeiro.html
Questionamentos
durante a maturidade literária de Baudelaire
sobre a necessidade de uma renovação formal mais de acordo com a imaginação e a
sensibilidade urbana da modernidade, levaram-no a intensificar a sua atenção para
flagrantes e temas inspirados no cotidiano da cidade. Os “Pequenos poemas em
prosa” foram escritos ao mesmo tempo que os poemas de Tableaux parisiens, seção incluída na segunda edição de Les fleurs du mal.
Enquanto aparecia de modo fragmentário em
diversas revistas e jornais, vários foram os títulos para essa obra:
- 1857, seis textos, na revista Le Présent: “Poèmes nocturnes”;
-
1861,
nove textos, na Revue Fantaisiste: “Poèmes
en prose”;
-
1861/1862,
vinte textos, proposta ao editor da revista La
Presse, seu amigo Arsène Houssaye: “Lueur de la fume / poème, en prose”
(com a virgula, ainda demarcando um hiato, um limiar entre os gêneros.
-
1863 na Revue Nationale et Étrangère e também em
L’Artiste, no ano seguinte: mesmo
título
-
1864, seis
textos, no jornal Le Figaro e na La Revue de Paris: “Spleen de Paris”
-
1866,
dois poemas, na Revue du XIXème Siècle:
“Petits poèmes lycanthropes”
-
1869, nas
obras completas (póstumas) editadas por Calmann-Lévy, o quarto volume: “Petits
poèmes en prose”
- na edição seguinte, pela editora Garnier,
o mesmo conjunto passou a chamar-se “Spleen de Paris”
***
Prosa poética
Do dicionário
de termos literários[1]
- Autor do verbete: Alberto Pimenta
Discurso em prosa (“discurso que avança”)
X
discurso em verso, e não a poesia (“discurso que avança e retrocede”)
Prosa e verso são dois princípios de segmentação do discurso (há outros,
como a lista, em que a linearidade é substituída pela sequencialidade vertical,
ou como a constelação da Poesia Concreta).
A primeira forma de expressão literária é o discurso metrificado. Aristóteles se referia a livros científicos em discurso metrificado, não os considerando poesia.
A prosa aparece em escritos filosóficos e, depois, no romance helenístico, passando o princípio da referencialidade narrativa a se sobrepor ao princípio rítmico na elaboração do discurso literário.
Na Idade-Média, verso e prosa alternam-se com facilidade e frequência, havendo inclusive um exercício de escola que consistia em transformar o discurso metrificado em prosa livre e a versificação do discurso em prosa também não era rara.
A primeira forma de expressão literária é o discurso metrificado. Aristóteles se referia a livros científicos em discurso metrificado, não os considerando poesia.
A prosa aparece em escritos filosóficos e, depois, no romance helenístico, passando o princípio da referencialidade narrativa a se sobrepor ao princípio rítmico na elaboração do discurso literário.
Na Idade-Média, verso e prosa alternam-se com facilidade e frequência, havendo inclusive um exercício de escola que consistia em transformar o discurso metrificado em prosa livre e a versificação do discurso em prosa também não era rara.
Cisão entre os discursos em verso e prosa
X
Regência dos princípios gerais da Retórica
(“prosa de estilo” = clausula ritmada = conclusão
do período dentro de regras de vocalismo e de acentuação)
Em vernáculo medieval, a clausula foi reduzida a três tipos de
acentuação rítmica finalizante ao cursus
(planus, tardus, velox). Mas intuitivamente todo o bom prosador narrativo
encontra um ritmo adequado para os seus fechos de período.
Na Renascença, a prosa narrativa se livra de imposições rítmicas rígidas; humaniza-se; avessa a requintes, requebros e enigmas discursivos.
A Prosa poética mantém o compromisso com os dois elementos formantes do discurso: o semântico e o formal, mas o princípio rítmico prevalece em detrimento do semântico narrativo; a função referencial da narração perde importância.
Um crescente número de livros que se proclamam como romances recusa-se a contar uma história, a ser lido como uma história, como discurso que avança, tendente a um desfecho, a um fim.
O leitor de Molloy, de Beckett, por exemplo, espera não tanto pelo que vai acontecer mas pelo que será dito, algo que pode passar como um evento na página.[2] Em Joyce ou nos poetas do Oulipo[3], mesmo que se priorize a importância da mensagem que se queira passar (quer dizer aquilo que têm em comum o texto e a tradução), o escritor não pode ser insensível às estruturas que emprega e não é por acaso que ele adota uma forma e não outra.
O começo da descrição da serra, na chegada dos amigos de Paris, n’A cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, é dado no enunciado seguinte: “A grandeza igualava a graça”, o que pode ritmicamente reduzir-se à equação (gr=gr), configura-se como uma realização pontual de poesia numa obra de prosa narrativa, acentuando-se a sua motivação rítmica.
Essa motivação do ritmo, revelada pela subjetividade, realiza-se como um enigma decorrente duma “necessidade interna”, não semanticamente mediada. Desvinculadas da sua racionalidade utilitária, as coisas do mundo – até as mais insignificantes ou primitivas – têm a possibilidade de se mostrarem belas.[4]
Quando ainda é rígida a diferença entre prosa e poesia, a prosa lança mão das palavras apenas para “significar” e nada mais. É o que Coleridge chama de Table Talk.
Na Prosa poética, não há temas em si poéticos ou não; busca-se uma perda das arestas objetivas e utilitárias, da “ética da narrativa”, que caminha em direção a um fim exemplar; há uma fruição das unidades semióticas e, especificamente, de pronúncia, com marcação de pausas e atenção especial à articulação, à entoação e à criação de melodia, considerando-se que a Linguagem quer dizer (função semântica), mas também é (organização com concretude própria) e que no discurso narrativo pragmático, a segunda dimensão fica apenas latente.
O limite da exacerbação do processo que inverte a função semântica do discurso e apresenta-se como puro processo da linguagem como uma substância gerada pela enunciação de estruturas verbais, num apelo sobretudo a sua função sugestiva, é o “self-generating text”.
O conceito remete para o Romantismo, com a sua desagregação dos gêneros, e assunção do fragmentário e da mistura.
A bem da correção do discurso com intenção poetizante, Alexandre Herculano substituiu, na versão definitiva do seu livro Eurico:
Na Renascença, a prosa narrativa se livra de imposições rítmicas rígidas; humaniza-se; avessa a requintes, requebros e enigmas discursivos.
A Prosa poética mantém o compromisso com os dois elementos formantes do discurso: o semântico e o formal, mas o princípio rítmico prevalece em detrimento do semântico narrativo; a função referencial da narração perde importância.
Um crescente número de livros que se proclamam como romances recusa-se a contar uma história, a ser lido como uma história, como discurso que avança, tendente a um desfecho, a um fim.
O leitor de Molloy, de Beckett, por exemplo, espera não tanto pelo que vai acontecer mas pelo que será dito, algo que pode passar como um evento na página.[2] Em Joyce ou nos poetas do Oulipo[3], mesmo que se priorize a importância da mensagem que se queira passar (quer dizer aquilo que têm em comum o texto e a tradução), o escritor não pode ser insensível às estruturas que emprega e não é por acaso que ele adota uma forma e não outra.
O começo da descrição da serra, na chegada dos amigos de Paris, n’A cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, é dado no enunciado seguinte: “A grandeza igualava a graça”, o que pode ritmicamente reduzir-se à equação (gr=gr), configura-se como uma realização pontual de poesia numa obra de prosa narrativa, acentuando-se a sua motivação rítmica.
Essa motivação do ritmo, revelada pela subjetividade, realiza-se como um enigma decorrente duma “necessidade interna”, não semanticamente mediada. Desvinculadas da sua racionalidade utilitária, as coisas do mundo – até as mais insignificantes ou primitivas – têm a possibilidade de se mostrarem belas.[4]
Quando ainda é rígida a diferença entre prosa e poesia, a prosa lança mão das palavras apenas para “significar” e nada mais. É o que Coleridge chama de Table Talk.
Na Prosa poética, não há temas em si poéticos ou não; busca-se uma perda das arestas objetivas e utilitárias, da “ética da narrativa”, que caminha em direção a um fim exemplar; há uma fruição das unidades semióticas e, especificamente, de pronúncia, com marcação de pausas e atenção especial à articulação, à entoação e à criação de melodia, considerando-se que a Linguagem quer dizer (função semântica), mas também é (organização com concretude própria) e que no discurso narrativo pragmático, a segunda dimensão fica apenas latente.
O limite da exacerbação do processo que inverte a função semântica do discurso e apresenta-se como puro processo da linguagem como uma substância gerada pela enunciação de estruturas verbais, num apelo sobretudo a sua função sugestiva, é o “self-generating text”.
O conceito remete para o Romantismo, com a sua desagregação dos gêneros, e assunção do fragmentário e da mistura.
A bem da correção do discurso com intenção poetizante, Alexandre Herculano substituiu, na versão definitiva do seu livro Eurico:
do bramido do mar e do rugido das ventanias
por
do bramido do mar e do rugido dos ventos
Na substituição de ventanias por ventos, evidentemente, a ênfase rítmica
atuou como motivo da modificação.
Dito isso, qual a diferença entre Prosa poética
e Verso livre?
A visilegibilidade do texto,
isto é,
o efeito visual do texto no papel; a “intenção de efeito” em oposição à “intenção de comunicação.
o efeito visual do texto no papel; a “intenção de efeito” em oposição à “intenção de comunicação.
***
Note-se a diferença entre o prosaico:
O agente olhou à sua volta e sentiu uma imensa
tristeza.
E o poético:
O agente olhou à volta/recordou a filha morta.
Na Prosa poética, o orador assume uma atitude lírica, mesmo sem rima, nem
métrica; não tem a narração dos fatos como objetivo único; transmite sensações.
Tal como acontece nos microrrelatos,
cuja intenção estética predomina sobre o desejo de narrar (cf. Antonin Artaud e
Julio Cortázar). Na linguagem coloquial, “prosa” refere-se a um excesso de palavras usadas
para dizer coisas de pouco relevo; assemelha-se a “lábia”. Por ex.: “O Dr.
Fausto é um político de prosas acesas, mas de poucas ideias”, “Chega de prosas:
por favor, limita-te a dizer os principais pontos do teu projeto”.
Leia mais: Conceito de
prosa - O que é, Definição e Significado http://conceito.de/prosa#ixzz3gAkhxH3H
***
Fernando Paixão (Poemas em prosa: poética da pequena reflexão)
Simbiose entre gêneros tradicionais:
nem poesia, nem prosa, mas uma terceira via; tensão comum aos modelos;
um texto que se propõe a ser poema, mas também prosa, como alternativa à
repetição.
Por pequena reflexão entenda-se não o
conteúdo filosófico, de articulação racional, e sim a perspectiva de guardar
distanciamento diante dos fatos e sensações percebidas. Mas, a atitude
meditativa que prevalece em boa parte dos textos dessa natureza não provoca
necessariamente uma depreciação do efeito poético. Ao contrário, pois essa
mesma visão crítica recusa os mecanismos sociais que banalizam a linguagem e
continua desejosa de uma expressão outra, em que seja possível uma linguagem
pessoal e comprometida com a experiência vivida.
Acionado pela
força do detalhe ou do objeto, por um ângulo ou por um gesto fortuito, o
procedimento reflexivo costuma recorrer aos valores elementares – sensações,
sentimentos, percepções –, com o propósito de expressar determinada condição.
Uma concha, o café e o leite da manhã ou o pássaro sobre a pedra, qualquer
coisa ou ser, tem o poder de estimular os sentidos e produzir entrelace de
imagens.
Por
conseguinte, o ato de refletir implica alguma complexidade; engendra-se a
partir de operações entrecruzadas, envolvendo ao mesmo tempo as capacidades de
perceber, duvidar, julgar, raciocinar – mistura que se resolve na singularidade
do poema. Essa perspectiva permite ao sujeito lírico ocupar a centralidade do
texto e despertar as associações que lhe interessam ou cativam. E, como se
trata de uma escolha “pessoal”, dispensa o vínculo lógico das relações e testemunha
em palavras o pensamento (e as emoções) em ação.
Faz parte dessa
atitude não enfatizar os ornamentos de estilo ou mesmo a melopeia das frases. A
ênfase do aspecto formal acabaria por perder em naturalidade. Para o espírito
reflexivo, por sua vez, interessam mais as ambiguidades e torções de sentido; são
mais adequadas as palavras da ironia, do jogo de contrastes ou da liberdade
associativa. Desvios que a linguagem poética produz para se afastar do
imaginário comum.
De Thomas Christensen, a partir das fotos de Nadar e Etienne Carjat |
Dedicada ao
assunto, a crítica Suzanne Bernard – que em 1959 publicou um amplo estudo sobre
o gênero –, ao concluir suas mais de setecentas páginas, salienta [...]: “é
justamente em razão de sua plasticidade e da infinita variedade de meios que o
poema em prosa aparece como o gênero em que melhor se pode exprimir a liberdade
humana” (BERNARD, S. Le poème en prose:
de Baudelaire jusqu’à nos jours. Paris: A.-G. Nizet, 1994, p.772).
Em contrapartida, Bernard adverte que tamanho grau de experimentalismo pode levar a uma desorganização total da frase e do plano semântico, sob o risco de cair no informe e no balbucio mental, com o agravante de perder a comunicação com o leitor. O mesmo gesto libertário, que amplia o repertório da imaginação, oferece o perigo de adentrar por uma vertigem ensimesmada e oca. Em seu livro, Bernard deixa a questão em aberto.
Em contrapartida, Bernard adverte que tamanho grau de experimentalismo pode levar a uma desorganização total da frase e do plano semântico, sob o risco de cair no informe e no balbucio mental, com o agravante de perder a comunicação com o leitor. O mesmo gesto libertário, que amplia o repertório da imaginação, oferece o perigo de adentrar por uma vertigem ensimesmada e oca. Em seu livro, Bernard deixa a questão em aberto.
***
Prosa poética em três tempos
O estrangeiro[5]
Ele vivia de
desejo e tinta. Ele detestava as frases feitas, de jargão, tanto quanto as reuniões
– em particular as de família que lhe encheram os olhos da infância –, os livros
de ouro e os diários. Ignorava-se a sua origem; o que permitia aos curiosos
criar inúmeras especulações a respeito: se ele era um estrangeiro – mesmo sem
nunca ter se traído pelo sotaque – ou um cidadão deste país – e nesse caso ao
menos seria conhecido algum parentesco. Diziam alguns que ele se desinteressava
da condição das palavras, que era um incurável egoísta; outros, ao contrário,
sustentavam que, se ele mantinha distância dos outros homens, era por estar
infeliz. Algumas relações com mulheres lhe eram atribuídas, mas sempre com
misteriosas viajantes que desembarcavam por um dia e nunca mais apareciam. Os filósofos
confessavam sua importância para incorporá-lo em seus tratados. Ele surgia com
sua pena de surpresa, atraído, pode-se dizer, pelo rosto ou pela voz de um
vocábulo em que ninguém havia percebido o poder de sedução, para se tornar um
dos enigmas da poesia.
***
Uma concha de ostra[6]
A concha está
riscada, como se fosse uma pedra polida no leito de um rio agitado, levada
pelos grandes troncos de árvore que seguem abaixo. Algumas vezes o cálcio
cinzento se enruga quase por completo, como quando a lava se esfria, e temos
então alguma coisa ainda raivosa.
Quando a
viramos, percebemos que a concha no seu interior é mais cheia de segredos, mais
acabada, mais humana. Nossos dedos sentem a lisura interna e lembram
blueberries.
***
Café da manhã[7]
Lá se vão os
anos e ele já não toma as manchetes do matutino pela realidade.
Não cancela a
assinatura por hábito de ter o jornal pelas manhãs – junto ao pão francês, o
café turco e o leite puro de rebanho holandês.
As páginas
abertas farfalham em breves e sacudidos movimentos de um ginasta e leitor
simultâneos, agitam-se as cortinas.
– Sossega
coração –
Na sala, o
francês, o turco e o holandês alinham-se, sentinelas solitárias assegurando,
pelo pão, o café e o leite, a permanência do matutino que por certo tempo ele
pensou falar do distante mundo – e ainda lhe acenar com as novas a manhã,
próximas ao peitoril da janela.
Mas, para além
das cortinas, a paisagem não se move. O mar perdura uniforme em confronto com a
cidade. A linha dos prédios e o maciço de montanhas não se alteram ao olhar.
Nenhum transeunte passa. Nenhuma palma se inclina.
Nenhuma força moral
pesada como a tempestade.
[1]
Carlos Ceia: s.v. "Abjecção", E-Dicionário
de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia, ISBN: 989-20-0088-9,
, consultado em dd-mm-20aa
http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&link_id=399:prosa-poetica&task=viewlink
[2] HAYMAN, D. Re-forming
the narrative: toward a mechanics of modernist fiction, Ithaca: Cornell
University Press, 1987.
[3] Ouvroir de Littérature
Potentielle, criada em 1960
por Raymond Queneau, Ítalo Calvino, Georges Pérec, entre outros.
[5] “L’étranger”, de Edmond
Jabès, poema do conjunto “Petites incursions dans le monde des masques et des
mots” [1956], tradução de Fernando Paixão.
[6] “An oyster shell”,
de Robert W.Bly. Tradução de Fernando Paixão. In: JOHNSON, P. (Org.) The best of prose poem: an international journal. New York: White
Pine Press, 2000.