11 de abril de 2020

SAÍ, de Fernando Bueno Guimarães - leitura de um poema

Saí 
Tudo é viagem de volta.
Guimarães Rosa 
Hoje ninguém nada me pergunta,
a solidão é que me responde.

Não sei a quem pedir desculpas,
não sei de quem me despeço,
falar eu comigo mesmo
de morte?

Estamos sempre esperando,
mas não foi isso que vim fazer aqui.
O sol e seus raios,
a lua em pedaços nunca me disseram uma palavra
sobre esse encontro impossível:
viver e a vida.

Não quis jogar mal,
não parar de perder.
Saí voando pela janela do dia deserto e imóvel.
Meu cavalinho de vidro tomava conta de tudo,
nos seus lampejos meu desamparo.
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Fernando Bueno Guimarães
Rio, 11 de abril de 2020 
***
Leitura
Pela versificação
Os dois primeiros versos sintetizam o sentimento motivador: a solidão é muita, mas também é quem responde. Ela indica uma saída possível de si?
Na segunda estrofe, vem a pergunta do Eu para um outro indefinido, ausente. A morte, carregada pela necessidade de pedir desculpas e de se despedir, é a pergunta. Sem destinatário, a pergunta cai no vazio, e ganha status de afirmação.
Na terceira estrofe, a primeira pessoa aparece no plural, identificada com os outros ocultos pela sujeição à espera, mas a revolta individual vem logo em seguida. O Eu desviado de seu destino, imprevisto mesmo pelos astros, é impossível de se realizar? “Viver e a vida” são postos como duas instâncias diferentes. “A vida” é esperar, mas viver não.
Na quarta estrofe, vem a confissão do fracasso mas mesmo assim o desejo de persistir no jogo, que ressurge pela metáfora: sobrevoar “o deserto e imóvel dia”.  O jogo ressurge também pela memória, quando o Eu ainda possuía um “cavalinho de vidro” (lembrei de um cavalinho azul de porcelana que uma vez dei de presente ao poeta). E ressurge ainda pela ilusão de que no passado “tomava conta de tudo”. O jogo (a poesia) é o lampejo da linguagem que realiza o impossível, que recorda, presentifica, mas também temporaliza. A consciência intermitente do tempo que passa e que passou é o que provoca o desamparo?
Pela pontuação 
Depois da pergunta, basta uma breve respiração, a resposta vem. O silêncio. Três suspiros curtos de lamento ante a presença da morte, que paira soberana e interrogativa. Silêncio.
A presença de um “nós” enseja uma respiração mais forte e possibilita em seguida a afirmação de um ponto pelo “Eu”. Uma afirmação, ainda que pela negação. A respiração se amplia com a presença do sol radiante e da lua em pedaços, como costumam vir, mas a negação novamente se impõe pela mudez sempiterna da natureza “sobre esse encontro impossível”. Paira porém uma afirmação, uma síntese ou conclusão: a de que há um viver, mesmo que a vida não dê conta dessa existência. “A vida” é uma invenção, não?
A negativa insistente, cadenciada, ecoada, transforma-se em ritmo e abre a porta da fantasia. O passado é um brinquedo? É impossível se amparar na vida em claro, mas também no escuro? Silêncio.

Pelas margens
Um traço introduz a assinatura do poeta numa margem, e a data em margem oposta. O poeta e tempo se confrontam? A poesia fica na terceira margem? O poema faz parte de um conjunto. Ao repetir-se como um ritual demonstra-se como manifestação de um viver, e ao mesmo tempo passa a propiciar encontros ou jogos possíveis (como este), ainda que em lampejos, ainda que “jogando mal” e fadados a se perderem. 
Ressoa aqui a epígrafe como uma chave para a leitura, quem sabe uma inspiração para a escrita do poema, cuja motivação afinal talvez não resida no sentimento de solidão, mas na “viagem de volta”. A saída é voltar-se para o viver, com seus jogos e apesar de suas perdas?  
Bia Albernaz
***
Nota final do poetaA frase do GR é de Tutaméia de onde garimpei várias, e o poema veio daí. Viver nos conduz, mas a vida não conduzimos, pelo menos sinto que não consegui essa proeza, joguei mal. A gente volta para a solidão, sempre.
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Fernando Bueno Guimarães nasceu no Rio de Janeiro, em 1945 e é advogado. Publicou Águas emendadas (coletânea), 1978; Passada a palavra, 1980; O que podemos concluir, 1984; Galo na porteira, 1987; Idade de barro; 1995; e Região natural, 2010. 

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