19 de julho de 2020

Pequeno ensaio sobre a palavra fim

Edna Bueno
Os passos do tio escada acima ecoavam. O barulho da sola dos sapatos nos degraus, estalando, fazia a casa inchar, crescer até arrebentar. Tapei os ouvidos, sabia o que vinha me dizer. Sentia uma água empedrada desde o estômago, guardada para chorar em silêncio, em paz.
Era domingo. Se não era domingo, um dia de céu  e vento, carros na rua, horas passando. De manhã, na visita no hospital, vi que se soltavam as amarras. A respiração roncava. Quando vem a calmaria, espera-se. Um bom velejador espera. Que o vento volte, que aponte no mar encrespando sua superfície. Sabe-se que ele vem, não a hora.
Quando meu pai me levava no barco à vela, eu prestava uma atenção descuidada aos movimentos. Nas manobras, a vela saía da linha do vento e ficava panejando até se alinhar novamente. Manobras mais lentas, maior o tempo do panejar. 
Éramos pequenos, eu e o irmão do meio. O pai amarrava uma corda na popa e nos puxava pelas águas da baía. O barco se arrastava com nosso peso e alegria. Porque era muito movimento, braços, pernas, mergulhar a cabeça, risadas. Um modo da alegria de se colocar no caminho, diminuindo a velocidade, querendo se demorar. Fomos pequenos um dia, eu, o irmão do meio e o caçula nos braços da mãe.
Meu tio despontou na porta do quarto:
            – Seu pai…
            Já não era pequena. E me afligia com o escuro que levava pessoa tão amada, o rosto, as mãos:
– Vou precisar de você.
Por que? Sempre eu a precisar dele. 
O vazio era de se pegar, apalpar. Eu aprendia a palavra fim.
***
"Regata" (2008), Mário Signorini
            Sábado, com certeza um sábado. Sol e vento, calçadão da Praia do Leme, o bebê de um mês no carrinho. Uma alegria cuidadosa, de gestos pequenos, de pegar o bebê e deixar no colo do pai. Então sigo em direção ao mar, ainda me viro para ver os dois e guardar a imagem daquela manhã. Quero molhar os pés, sentir a areia.
            Uma separação breve, meu filho sob cuidados paternos. Ele conheceria o avô pelas histórias, um dia aprenderia que o mar nunca acaba, que vai andando e empurrando o horizonte adiante. Que viver é algo desarrazoado e pulsa.
            A palavra fim me paralisa. Pressinto que serão separações e encontros, no nascimento corta-se o cordão. Pela vida, muitas vezes mais o cordão será cortado. Morte do pai e nascimento do filho se traduzem em sentimento semelhante, o mesmo vazio espesso, de se pegar. Fim e começo. O bebê chegou por meio de uma cirurgia, faca que corta pele e carne. Da sala de parto para o quarto sem ele. Rodeada de pessoas felizes e notícias do berçário. Tudo rodando. Vazio. Não se separa assim duas pessoas tão uma da outra. E por que se quer tanto um filho se a vida comporta a dor? Minhas mãos têm o formato das de meu pai.
            Penso outras palavras: porto, âncora, deriva. Os barcos nunca deixam de singrar as águas, velas brancas na linha do horizonte. Meu pai dizia que, quando se entra em um barco à vela, não se vai a lugar algum: já se chegou. Olho para trás, para meu rastro, para a frente. O fim não decifro. Um bom velejador espera, sereno na deriva da vida. Tem o controle do barco, o vento desenha os caminhos.
            O filho pela primeira vez à beira do mar. Um passeio banal, em família. As velas brancas no horizonte, a palavra fim mergulhada nas águas, ondas, vento, as calmarias.
            Volto para o calçadão. No inverno, as manhãs de sol são especialmente bonitas.
fevereiro 2019
Edna Bueno nasceu no Rio de Janeiro. E passa longas temporadas em Praia Seca. Pelo livro Entre os bambus, recebeu em 2000 o Prêmio França-Brasil de Literatura para crianças. Com A Ingrid veio ver o mar, ganhou em 2002 o Prêmio Adolfo Aizen, de literatura infantojuvenil. Mais informações AQUI na página da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil. 

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