20 de novembro de 2010

Vocabulário de afetos II

Música e ritmo
Catarina Fonseca (jornalista e escritora)
Traquitana – Serve para basicamente tudo à face da Terra. Geralmente é uma coisa em grande que não se domina. Ai que mal que isto soou. Tipo máquina de lavar louça. Um batom, por exemplo, não é uma traquitana.
Chafarica – É aquelas palavras que só podem existir na língua portuguesa (embora depois vamos a ver e elas vêm todas do francês ou do galego ou do árabe) como calduço, e lamisgóia, e badameco, e patanisca.
Traulitada – Também poderia estar na categoria anterior, mas merece uma alínea só para ela. Parece uma dança. ‘Os trauliteiros de Miranda’.
Madrigal – É das poucas palavras que são foneticamente musicais e têm um significado a corresponder. Estranhamente, isso faz com que não dêem jeito nenhum. São demasiado-uni-qualquer-coisa. Não se pode usá-las, só pode abusá-las. São as louras burras do vocabulário.
Escaldadiço – Gosto muito do sufixo “iço”. Como em enfermiço. Gosto muito de palavras intraduzíveis.
Berbequim – Não merece aquilo que é. Como edil. E crinolina. E filial. E criminalidade. Para que foram gastar música com significados destes? Devia ser tudo expropriado e botado noutro significado, tipo a terra a quem a trabalha. Por exemplo, berbequim podia substituir “olho”, que tem tão pouca graça que até dói. ‘Tens uns lindos berbequins’ ou, teus berbequins castanhos de encantos tamanhos.
Lacaio – Faz parte da categoria ‘palavras que são exactamente aquilo que são’. Como pacato, maléfico, moinha, alguidar, farfalheira, bodega.
Crancelim – Parece um arreio de cavalos. “Mete aí um crancelim ao Pimpão.” Infelizmente, significa uma coroa de flores no meio de um escudo heráldico. São palavras que nunca se usam, o que é uma pena. Não seria lindo poder dizer de vez em quando, “passa-me aí o crancelim? Em vez de sei lá, piaçaba? “Já tens um crancelim na tua casa de banho?” Por outro lado, passava-se a diser-se: “meu brasão de família tem um piaçaba entre dois dragões.”
Breu – Gosto, pronto. É uma pena ser tão lugar-comum que já não se pode usá-la.
Pitencantropo – Isto sim, é uma palavra de jeito. Infelizmente, não há assim muita oportunidade para a usar.
Gosma – É transtornante a quantidade de magníficas palavras que a nossa língua usa para descrever substâncias vagamente nojentas. Além da imbatível gosma ainda há ranho, ranhoca, ranheta, escarreta, cuspo. E etc. Desvantagem: não é para todos os estômagos.
 Jornal das Letras, Artes e Idéias, Ano XXIV / n.889 (27 de outubro a 9 de novembro 2004), Portugal.
Berbequim.pt=Furadeira.br

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