9 de agosto de 2011

História e ficção (reconto)

A NOITE DE PILATOS (extraído de Histórias Apócrifas)
Karel Tchápek
          Naquela noite, Pilatos jantava com o seu ajudante de ordens e com Susa, um jovem tenente oriundo de Cirenaica. Susa mal percebera que, então, de forma pouco habitual, o governante estava muito calado. E Susa tagarelava alegremente, fazendo anedotas a respeito do primeiro terremoto que presenciara em sua vida.
          — Foi uma comédia excelente — berrava entre dois bocados. — Quando escureceu, após o almoço, corri para a rua para ver o que afinal de contas estava acontecendo. Na escadaria, tive uma sensação de que as minhas pernas estavam adormecendo ou escorregando. Posso afirmar que foi muito engraçado. Palavra, Excelência, desde que me dou por gente jamais poderia imaginar que um terremoto é assim. Antes que eu pudesse chegar à esquina, os civis já estavam correndo em minha direção, olhos esbugalhados, gritando como tresloucados: “As sepulturas vão se abrir, os rochedos vão rebentar!” Com os diabos, pensei, vai ver que é um terremoto! Rapaz, disse a mim mesmo, você tem uma sorte danada! Um fenômeno tão raro da natureza, não é mesmo? 
          Pilatos meneou a cabeça.
          — Já presenciei um terremoto na Cilícia, lá se vão uns dezessete anos. Mas a coisa, então, foi bem maior.
          — Bem, então podemos dizer que nem aconteceu coisa alguma — exclamou Susa, de maneira impensada. — No caminho que conduz a Hakeldamá rompeu-se um pedaço de rochedo. Sim, e alguns túmulos abriram-se dentro do cemitério. Admira-me muito que, neste país, eles cavem sepulturas tão rasas; não chegam a ter um côvado. No verão, deve ser uma fedentina...
          — É o hábito — resmungou Pilatos. — Na Pérsia, por exemplo, eles simplesmente não enterram os mortos: colocam o cadáver debaixo do sol, e pronto.
          — Meu senhor, isso deveria ser proibido! — objetou Susa. — Por razões de saúde pública, etecétera.
          — Proibir! — murmurou Pilatos. — Nesse caso, você não poderia fazer outra coisa a não ser ficar dando ordens e proibir-lhes alguma coisa, o tempo todo. Essa é uma política ruim, Susa. Não devemos imiscuir-nos nos negócios deles; pelo menos, nesse caso eles ficam quietos. Se vocês desejam viver como selvagens, bem, seja feita a vontade de vocês. E olhe, Susa, que eu já andei por muitos países...
          — Gostaria de saber como é que surge um terremoto destes — voltou Susa ao objeto de sua curiosidade momentânea. — Digamos que existem buracos debaixo da terra e eles, assim, sem mais nem menos, desabam. Está certo; isso eu consigo entender. Mas por que o céu fica encoberto? Não tenho inteligência suficiente para compreender. Pela manhã, o céu ainda estava limpo...
          — Peço-vos perdão — manifestou-se o velho Papadokitis, um grego do Dodecaneso que servia à mesa. — Já ontem à noite era possível ver que alguma coisa estava se preparando. O pôr-do-sol estava extraordinariamente rubro. Eu havia dito à minha cozinheira: “Miriam, amanhã teremos tempestade ou ciclone”. E Miriam respondeu: “E eu tenho dores nas costas”. Já se podia esperar que o tempo ficasse ruim. Peço-vos que me perdoem, novamente.
          — Já se podia esperar — repetiu Pilatos, cismado. — Sabe, Susa, eu também esperava que algo acontecesse hoje. Aliás, desde a manhã de hoje, quando entreguei para eles aquele homem de Nazaré; precisei entregá-lo, porque, segundo o conceito romano de política, não nos devemos imiscuir nos assuntos internos dos nativos. Guarde bem isso, Susa; quanto menos relações as pessoas tiverem com o poder do Estado, mais facilmente serão eles capazes de suportá-lo... Por Júpiter! onde foi que eu parei?
          — Naquele nazareno — auxiliou Susa.
          — Sim, o nazareno! Sabe, Susa, interessei-me um pouco por ele. Nasceu em Belém. Eu creio que os nativos efetivamente cometeram um crime contra ele. Mas, afinal de contas, isso é um assunto deles. Se não lhes entregasse aquele nazareno, iriam crucificá-lo da mesma forma; e, nesse caso, apenas a autoridade romana acabaria sendo prejudicada. Mas, espere: isso não tem nada a ver com o resto. Ananias disse que ele era um homem perigoso; quando nasceu, os pastores de Belém acorreram para junto dele e renderam-lhe homenagens, como se fosse um rei! Há pouco tempo, receberam-no, nesta cidade, como se fosse um comandante vitorioso. Isso não entra na minha cabeça, Susa. Em verdade, eu esperava que...
          — Esperava o quê? — observou Susa, após um longo silêncio.
          — Que os habitantes de Belém viessem para cá. Que eles não o deixassem cair nas garras destes intrigantes daqui. Que eles se apresentassem a mim e dissessem: “Senhor, ele é um dos nossos e, portanto, zelamos por ele; viemos dizer-vos que estamos com ele, e não permitiremos que se cometa uma injustiça contra ele”. Susa, realmente eu teria ficado contente com aqueles montanheses. Eu já estou por aqui com estes insolentes e rábulas... Eu teria dito a eles: “Que Deus esteja convosco, homens de Belém; esperava-vos. Por causa dele — e por causa de vosso país também. Não se pode governar marionetes; somente é possível governar homens, mas não esses linguarudos... Homens como vós serão os soldados que não se rendem; homens da vossa espécie é que constituem os povos e as nações. Ouvi dizer que esse vosso patrício ressuscita os mortos. Mas, por favor, o que faríamos nós com os mortos? Mas vós estais aqui, e vejo que esse homem é capaz de ressuscitar os vivos também; que ele conseguiu inocular-vos alguma coisa que se assemelha à lealdade e à honra. A isso, nós, romanos, chamamos virtus; nem sei como se diz isso em vossa língua, homens de Belém, mas isso está dentro de vós. Creio que esse vosso homem ainda será capaz de fazer algo. Seria uma pena por ele.
          Pilatos calou-se e limpou, metodicamente, as migalhas da mesa.
          — Mas não vieram — resmungou. — Ó, Susa, que coisa mais estéril é governar!

***
EM ALGUM LUGAR
Ruth Liftschits
          — Acho que você deve dar uma olhadinha nisso aqui  — Guidobaldo estendeu o jornal para o amigo.
          — Não, deixa pra lá, Guido. Não quero me aborrecer mais. Nada vai mudar coisa alguma. E não importa, na verdade não importa. O que é já é, vai ser e sempre será.
          — Mas Gali, é o Papa, ele falou para um público enorme lá na Terra.
          — Há sempre um Papa falando para um público enorme de ignorantes...
          — Mas é diferente, é importante. É o Papa João Paulo II se retratando em público. Ouça, preste atenção: “1992, Ano dedicado à Astronomia. 31 de outubro de 1992, a Igreja revê suas posições no confronto com Galileu.” É a Igreja reconhecendo que errou!  Até Urbano VIII esteve atento à cada palavra.
          — Urbano, aquele maledeto. Não me fale desse traidor. Insistiu para que eu publicasse meu trabalho. Dediquei O Analisador a ele, pensando estar homenageando um progressista, um amante da ciência, mas qual...fui julgado, proibido de dar aulas, preso e confinado aos limites de minha casa.
          — Galileu, poderia ter sido muito pior. Giordano Bruno foi para a fogueira.
          — Tem razão, mas há males que perduram, reverberam pela eternidade. Veja nosso querido mestre Copérnico, deprimido e triste até hoje.  Alcançou fama imortal, mas foi ridicularizado e vaiado por uma multidão infinita. O número de idiotas é e sempre vai ser incomensurável. Urbano era o Papa e não fez nada para me defender. Autoridade máxima que não moveu uma palha em meu favor; deixou que me anarquizassem. Todos duvidaram do meu conhecimento, minhas palavras foram deturpadas.
          — Você exagera tudo, Galileu. Até suas descobertas são exageradas.
          — Volte para sua matemática, Guidobaldo. Há mais certezas nela e muito mais satisfação. Não quero saber de retratações, seja em que século for. A Igreja muda de opinião como quem troca de roupa. O heliocentrismo se impôs. É uma verdade agora. Quiseram nos convencer que um sol imóvel é uma heresia, que a Terra se mover seria algo teologicamente errado. Bando de ignorantes. Naquela época, eu apontava os erros do método aristotélico, não queria atacar a fé. Sou religioso, acredito em Deus, sempre fui assim.

          Por mais que se esforçasse, Guidobaldo del Monte não conseguiu convencer seu amigo a ler e aceitar a retratação. Galileo Galilei afastou-se, novamente tomado por suas idéias, decidido a resolver de uma vez por todas se Plutão é um planeta anão  ou um simples plutóide do Sistema Solar.
          Solitária, a figura recolheu seus objetos e preparou-se para mais uma profunda observação da região do cinturão de Kuiper.

Um comentário:

  1. Fernando Antonio Candeias22 de agosto de 2011 às 21:55

    O site é muito interessante.
    O texto sobre Pilatos ilustra o tipo de política externa que Roma passou a praticar com sucesso: a vassalagem. A nação vassalo pagava um tributo amplamente compensado pela segurança que ganhava quanto a ataques de vizinhos. E Roma não interferia em seus assuntos internos, notadamente religião e costumes. E  também sugere certa angústia do cônsul romano, no caso específico do Cristo,  influência da esposa, ao  que parece.
    Modelo semelhante de colonização só foi empregado pela Inglaterra, séculos depois, e suas ex-colônias são todas prósperas, muitas delas, talvez a maioria, integrando o Commonwealth. Mesmo quando houve plebiscito  local, como em Gibraltar e nas Malvinas.
    Se compararmos isso com o padrão  cruz e espada adotados por espanhóis e portugueses, a diferença é chocante. O que eles fizeram com as civilizações locais, especialmente os espanhóis, foi um crime imperdoável. No Brasil, um pouco menos, mas somente  a partir da vinda da corte para cá.


    O conto sobre Galileu está ótimo. Ruth Lifschits  tem o dom da síntese. Lembro de um outro conto dela, em que descreve as angústias de uma patroa ao ver a calcinha da empregada pendurada no varal... Mas na verdade Galileu teria dado  umas cutucadas no papa, seu amigo e protetor em Florença, retratando-o como Simplício, o personagem pouco dotado intelectualmente em seus “Diálogos”. Pelo menos Urbano foi induzido a acreditar nisso.
    A conversa descrita por Ruth reflete muito bem o espírito dele, deve ser exatamente o que teria resmungado.  Questionador e polêmico, derrubou as ingênuas idéias de Aristóteles, no que diz respeito à Física.  
    Foi uma grande época aquela. Descartes unindo álgebra e geometria, Galileu estabelecendo de maneira sólida que a observação e não a mera especulação, é  o sólido fundamento do conhecimento humano. E Newton, a grande síntese. Como disse :” Vejo mais longe porque subi nos ombros de gigantes”.

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