filipe marinheiro
Gritarei: absurda, suicida, sobre as matérias e substâncias desta obra tão
excepcional. Inacabada. Aonde encontro carências e algumas náuseas. De resto
uma obra fenomenal. Obra de carácter filosoficamente complexa aonde o paradoxo
aparentemente pessimista enquanto entendimento do pensar absoluto é uma outra
coisa absurda, ténue ou liquefeita que não aquela que o leitor retirará
enquanto estética e ou inutilidade doutro pensamento como um sentido oculto nas
palavras entre as palavras submersas nas ideias simples.
Como perceber, navegar dentro desta obra sem as traves mestras filosóficas
que suportam todos os níveis e desníveis do Mito?
Sísifo na mitologia grega era considerado o mais astuto de todos os mortais.
Mestre da malícia e da felicidade, era considerado um dos maiores ofensores dos
deuses, tendo conseguido enganar a morte por duas vezes, fintando os deuses
Thanatos e Hades.
Ao morrer, Sísifo foi considerado um grande rebelde e foi condenado pelos
deuses a empurrar, por toda a eternidade, uma grande pedra até o cume de uma
montanha só para ela rolar montanha abaixo sempre que estava prestes a alcançar
o topo, começando o processo maquinal, intelectual de novo. Por este motivo, a
tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada Trabalho de Sísifo. Os deuses tinham pensado, com as suas razões,
que não existe punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança
ou devoção pela tortura daquele que fragmenta o pensamento.
Sísifo é o herói absurdo tanto pelas suas paixões como pelos seus
tormentos. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a Paixão pela Vida lhe
valeram esse suplício indescritível em que todo o ser se ocupa em não completar
nada. Absolutamente: Nada. E o que é o Nada neste contexto? No final desse
esforço imenso, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, o
objectivo é atingido. Sísifo, então, vê a pedra desmoronar-se em alguns
instantes para esse mundo inferior de onde será preciso reerguê-la até os
cimos. E desce de novo para a planície. Ei-lo o pretexto sentido, possessivo,
primitivo. Pois é concretamente durante esse retorno, nessa preciosa pausa, que
Sísifo nos deverá interessar. Um rosto por dentro das inúmeras máscaras
evidentes e não tão-só nada evidentes [escondidas
das verdades, não da verdade absoluta] a trespassarem de rostos em rostos
as camadas que envergam, examinam, planeiam, plagiam os fundamentos de todo
aquele esforço. Uma angustiante empreitada levada a cabo por uma figura
mitológica desenhada a desenhos de músculos a saltarem da carne suja deste Ser
tão límpido. Tão Puro. Condenado a reencontrar sempre o seu fardo.
Terrível tal rosto assim tão perto das pedras como um espelho de pedra, é
já ele próprio uma pedra. Vê-se esse homem a redescer, com o passo pesado, mas
igual, para o tormento sem escapatória imagética ou transcendente, cuja
finalidade, jamais conhecerá. Nessa hora é com uma respiração útil que Sísifo
ressurge tão certamente quanto a sua infelicidade. É nessa hora portanto que
toma a consciência [alguma pelo menos].
A cada um desses momentos, deslizes, movimentos em que ele deixa os cimos e se
afunda pouco a pouco no covil dos deuses, se torna um superior ao seu destino.
É mais forte que seu rochedo: a sua jura. A Fidelidade. Quem saberá destas
coisas? Um fotógrafo da Alma ou um Pensador da Alma ou um próprio Ser? A eterna busca do homem por um
sentido para a vida: eis aí um esforço talvez inútil e talvez útil. Peca aqui a
filosofia do fundamento desiludindo-me.
Parece que a humanidade está até ainda hoje a pagar pela rebeldia de
Sísifo. Será isto um facto ou subterfúgio? Todavia o “absurdo” para Albert
Camus nasce das nossas infinitas tentativas de dar sentido a um mundo sem
sentido, e a sua obra evidencia as angústias e conflitos daquela época em que
mergulhou a tinta da caneta sobre o tecido do papel ou viveu heroicamente, mas
que nos continuam e continuarão a desafiar na actualidade. Defronte o dilema da
futilidade do esforço e da certeza da extinção do homem e do universo, o que
nos restaria então? Por que nós, humanidade, não deveríamos cometer suicídio?
Nesta matéria ambivalente o autor acaba, por um lado, a condenar, estrangular o
sentido da liberdade individual, blasfemando-a como um massacre. Ou, por outro,
a anunciar uma leveza da sustentabilidade da vida que se deve viver numa
liberdade tangível, orgânica: eis um pecado capital que este ensaio empurra [Camus suicida-se absurdamente – contexto
situacional, enquadramento histórico-social e omissão ou mesmo diria
esquecimento da abordagem do paradigma transcendental da beleza – e pior não
seduz à lucidez] transpondo a vida exclusivamente com as sementes e raízes
da lógica “metafórica” até esbater num sentimentalismo carinhoso, amoroso. O
que lhe não ocorreu foi que, girando-a com uma completa força invisível que a
administra desesperada para o inferno da liberdade intangível, inorgânica. a
liberdade também exige os seus tentáculos horríveis, mutantes, disformes, tresloucados.
Liberdade terrivelmente fascinante quanto bizarra.
Contudo, para Albert Camus, o suicídio não é a solução finita para o
absurdo, é antes ao contrário, nessa que é a sua negação, a negação da própria
existência humana. Não podemos resolver o problema do absurdo, negando toda a
sua existência. Precária ou Odiosa ou Prodigiosa. Perante o absurdo, devemos
dalguma maneira alegórica, revoltar-nos –
instigando os outros para que se meditem nas mortes às derivas entre as suas
mãos contra as forças vertiginosas da cabeça à cabeça, batendo com o sangue na
tal pedra que sobe e desce em rotação alquímica. Por que essa revolta? Talvez
seja a consciência da nossa condição, mas sem a resignação que deveria
acompanhá-la. Aceitar o absurdo é aceitar a morte. Recusá-lo é aceitar uma vida
no precipício a resvalar escarpas abaixo até rebentar com o corpo todo:
destruí-lo.
Nenhuma meditação absurda, alienante nesta matéria é enunciada ao longo do
ensaio. Nessa derradeira destruição, camada por camada, não se pode encontrar o
conforto, somente “viver num vertiginoso cume – isso é integridade, o resto é
subterfúgio.” O “cume vertiginoso” para A. Camus é a experiência inteiramente
consciente de estar vivo condenado à eterna repetição. Consciente dela,
descobre-se que “a lucidez que devia constituir sua tortura ao mesmo tempo
coroa sua vitória”. Camus diz que devemos imaginar Sísifo feliz, pois “ser
consciente da própria vida num grau máximo, é viver num grau máximo”.
O filósofo Albert Camus considera que autores da filosofia existencialista
como Kierkegaard e Sartre fracassaram em tentar resolver o conflito para as
consequências do encontro entre um ser humano racional e um mundo irracional,
porque ele é insolúvel justamente por pertencer à existência humana. Ter, por
exemplo, a consciência de que liberdade e justiça são relativas é na verdade a
condição para não desistir delas, e não o contrário. Também ele se desintegra,
fracassa. Desaponta. Sem embargo, «o Mito de Sísifo» deverá ser para os
leitores um mero apoio de vida. Ele não arrasta ilusões porém incentiva a
coragem humana. Ressuscita aceitável a crença na existência sem os paradigmas
religiosos. Até nessa reflexão torna-se condescendente, ao não perscrutar o
desconhecido, o da ilusão, se quisermos.
O segredo sagrado que se esconde por sob as camadas do covil referido
anteriormente e justifica, autoriza o lugar prioritário deste ensaio filosófico
[onde o autor põe-repõe: escuridão e
iluminação não revestindo todas essas camadas sobrepostas numa catadupa
catártica de contradições – as máscaras dos rostos e os rostos das máscaras]
é que do raciocínio absurdo desagua uma criação do tempo e das memórias, criações
palpáveis ou não palpáveis que existem, afectam e metamorfoseiam o universo e a
constelação da humanidade. Para perceber e descobrir todo esse grandioso
segredo como um oráculo que o autor propõe, é que sorrateiramente vai navegando
a nossa mente para esses lugares nada comuns, disfarçando-os doutras coisas
mais superficiais. É possível. Atravessando toda esta obra num estado de
aparente profunda morosidade, o autor não nos aponta esse trilho, pensará o leitor.
Erro crasso. Embora em nada se trata de aparência, pelo contrário, é profunda
morosidade que o autor nos apela sem nos dizê-lo directa ou indirectamente. Mas
Camus falha, “arruína” o ensaio ao não prever que, através dessa profunda morosidade,
o homem pensante deverá atravessar os flagelos da indiferença irrompendo todo
um novo sistema de pensamentos; acção que nos leva à criação divina para quem
crê e à criação não divina para quem não crê e para quem é agnóstico ou busca a
criação no desregulamento dos sentidos sem recorrer a paraísos artificiais. Ao
rejeitar a transcendência da fé, abandonando a ambivalência do ascetismo,
deixando-o igualmente a flutuar no vácuo das águas por onde velejamos, o
sistema de pensamento fortalece-se, reforça-se e enrobustece-se Camus alerta-nos
unicamente. Nada mais do que isso. Escorrega-se na lama deste pântano
existencial. Flanqueado como Apertado. Não ultrapassa essa barreira sonora, saborosa,
emotiva, sensitiva, colorida, ouvida ou vista para uma outra dimensão da
percepção humana: imprevista.
Como ele poderia ter previsto estas carências? Devia ter prestado mais
atenção à psicanálise da época. Albert Camus não calculou: em Eros e Thanatos –
que significam, entre os gregos, o Amor e a Morte personificados – identificam-se
dois princípios vitais: Vida e Morte. Freud utilizou-as para identificar duas
categorias de pulsões humanas: instinto de vida (eros) e instinto de morte
(thanatos). Estas duas pulsões geram entre si um conflito que dinamiza o
psiquismo humano. Neste sentido, a estrutura freudiana do psiquismo humano é
atravessada por um conflito que dinamiza o aparelho psíquico. Este conflito tem
origem nos obstáculos que o indivíduo encontra na realização das pulsões e
reflecte a luta entre várias instâncias no psiquismo humano.
Mas não interessa agora. Já passou. O ensaio já foi escrito no ano de graça
de 1941.Torna então o absurdo, enquanto o dogma do suicídio, incompleto. Por
isso mesmo, fazer o certo é mais quantitativo, menos qualitativo e prova essa
incompreensão do autor ao não contemplar, exercitar a metafísica, alquímicas ou
as forças cósmicas que não se localizam a olho nu. Porém, dessa viagem – que é
este curioso ensaio filosófico –, o alerta não é mais do que também por si
mesmo baseado, sustentado por um conjunto de contradições e repetições que o
autor igualmente rejeita. A viagem não é nem certa ou errada. Mais uma vez o
autor coloca uma tónica invisível sobre a existência da causa na própria causa.
Que causa, perguntais? Respondo: redesenhando o que faltou a Albert Camus focar
neste ensaio, ou seja, o que faltou preencher, penetrar, furando no centro, no
cerne, no eixo primacial das forças introspectivas onde tudo é uma outra coisa
do que o autor disserta, critica e reflecte: a imprevisibilidade das
trincheiras. Mediante uma firme tentativa de conquistar o universo ateu,
agnóstico ou não, teve o horizonte do holocausto da segunda grande guerra como
labaredas de fundo. Diante dessa tentativa também temos de considerar o
desterro longínquo que deveras se manifesta e se propaga, e nele, algures, se
encontrará um buraco estreito. Lá no fundo surge-nos o conflito entre o Bem
[eros] e o Mal [thanatos] enquanto reflexo um do outro. Jamais se separarão.
Amam-se tal como um indivíduo suicida determinado a terminar com a vida da
morte ou a morte da vida?
Essa outra tentativa deverá ser espontânea, genuína. Ela leva-nos e
traz-nos ao ponto de partida como ao regresso dessa partida, da experiência
universal, e vice-versa. Isto é, ao AQUI. Aqui mesmo. O agora é o ponto-caramelo:
o da Descoberta. A Descoberta e a Indiferença ocultamente nos agarram pelo
corpo inteiro, sempre como tomada de consciência de cada pessoa. Particular.
Divergente. Absurda. Única: Suicida.
Por que mesmo não cometer o suicídio físico ou psíquico? Por que não abraçar a
vida como ele se nos apresenta, aceitando-a, como Camus coloca neste ensaio. Um
tanto ou pouco erróneo é não dar escolhas aos seres humanos. Estancá-los como
se estanca um rasgo no meio da cabeça rachada. O sangue poderá esvair-se ou
não. Quem tomará a decisão última? Nós. Cada um de nós lidera a liberdade ou
quem sabe sem ela também!
A deformação dos sentimentos e dos desenhos e imagens estão ali, ao virar
da esquina côncava, num beco sem saída ou num túnel de esgoto. Seja onde for.
Temos todo o direito às escolhas e decisões escuras, mansas, mesmo aquelas incompreensíveis
à razão. Camus não previu esse direito inigualável. Expugnável. Suspensa
dúvida. Ele resignou-se a mostrar a resistência, o que limita o pensamento, ao
entender a vida doutros ângulos de visão mais amplos. Pega-se num machado
afiado rodopiando os braços para o ar escaldante e quebram-se cabeças contra o
chão torto e íngreme. A asfixiar-se de tanto sangue dos membros cortados. Mortos
porque assim o quiseram ou mereciam. Porque sim, porque podiam e poderão. Ou se
preferirem, enterrar-se-ão os machados do suicídio debaixo da terra compacta. Não
mais se vê desgraças [sarcasmo]. E o
que se interpreta desta loucura, delírio, devaneio ou razão? Camus desconfiou
da razão mas não nos passa os outros testemunhos anotados, fixados.
Diria, por fim, que as forças gravitacionais desta obra subdividida em
diversas partes permanecem esquecidas num recanto qualquer cheio da poeira do
tempo e de memórias, onde o amor e o absurdo existem sim se reinventados,
redesenhados dia após dia. Para isso é necessário escavar-se até as profundezas
da caverna onírica e real, e revolver o processo completando-o, compreendendo o
invencível e o absurdo porque somos nós os causadores do nosso próprio medo. Os
acasos deformam tudo o que Camus nos apresenta. Somos demasiado estúpidos
inseguros, por isso magoamo-nos, magoamos os próximos, fazemos sofrer e
sofremos, temos dor mas também a infligimos. Matamo-nos e matamos tudo o que
nos rodeia sem nos apercebermos dessa repetição. Somos criminosos, necessitamos
disso para nos procurar e procurar a liberdade. Desperdiçamos a vida absurda
num suicídio como um secreto beijo a nós dado pelo autor, mas também como sucessores
de nós próprios.
Os detalhes desfiguram o que Camus nos pede e oferece. A consciência tem
tanto de pura como de impura, encharcando-se de sujeira e não pode ser mantida
como Camus pretende ou diz ser. De outro modo a transcendência existe e tem um
sentido de liberdade nada absurda. Absurdo é um ensaio desta magnitude,
potência, escrita pelas mãos deste grandioso filósofo francês, cair frouxo,
redondo com o rosto na vertical contra o chão cravejado de cavilhas velhas, e
morrer esquecendo-se de evocar as forças/fraquezas, ameaças/oportunidades numa
clareza sem traição: o Lázaro, a Libido, o Limbo e a Penitência da beleza
Cosmológica. Acrescento: O impossível é que nada é impossível. Arthur Rimbaud avisou-nos:
Que vida!
A autêntica vida está ausente. Não estamos no mundo.
A moral é a debilidade do cérebro.
A nossa pálida razão esconde-nos o infinito.
A vida é uma farsa que toda a gente se vê obrigada a representar.
Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.
O ar e o mundo deixado sem procura. A vida. - Era então isto?
Quando somos muito fortes – quem recua? muito alegres – quem cai no
ridículo? Quando somos muito maus – que farão de nós?
***
Digo-vos:
esta é uma perplexa obra que nem é estéril, nem fútil.
Adeus Camus, vou-me
embora para o constante desconhecido.
um saco, por exemplo
sei de teres um saco
que fala sobre o sono ainda misturado
num copo em brasas
curioso por bater
com a minha sombra
diante à criatividade desse saco
nele intercepto
mensagens alheias das noites cheias de fins
ou acasos
todos nos dizem para
cantar sob o carreiro gélido
onde verdes árvores lá
fora se revelam na voz de silicone
por trás das portas a
despenhar-se sobre cadeiras retiradas
contra os buracos
negros
enquanto mesas se
entrançam no ar às voltas
como respiro e
interrompo
trepando o fumo trôpego
dos garfos e talheres confusos
a romperem os sóbrios
guardanapos de tecido diamante
derretendo-se na luz
que flutua leve
talheres no princípio
garfos no cume
empoleirados no pano rústico preso à jarra
que toca a melodia
desaparecida
que esmaga as mesas
que torce a voz contra
as portas
que toca a própria mão
alastrando o saco
e se bebe na loucura
nocturna
o soalho de madeira
rubi ressente-se entre os rolos de árvores
e baloiços de folhas
afrodisíacas
a amolecerem
espantadíssimas nas sobrancelhas queimadas
com imagens panorâmicas
do saco
como a rodar nos
rodapés que explodem dentro dos vernizes
a espalharem-se p’la
poeira das vidraças terríveis
os relógios fumam os
céus indignados aceitando-se corajosos
e reles vistos à lupa
o sol de aço corta a
vista como os seus raios de fogo cortam
as mãos
o fogo cresce
aumenta o sangue largo
enquanto labareda a
roçar no coração
e o coração insufla e
inflama o corpo que se ergue
e estanca o lume
manuscritos voam em
cima dos pratos
os pratos compostos por
tintas em escada finalizam-se à vista
sombrios e tristes
desde a força profunda
das mesas
até se coserem às
secretas portas
que fervem o trilhado
coração do saco aos pedaços
de fibras entranhadas
escorrendo à volta dos
corpos
desenhos de luvas
peúgas originais
retratos folhas plantas
gaiolas por baixo de
alcatifas submersas
cigarros dentro uns nos
outros onde a água trabalha
e escalda esse
pressagioso ofício
um castanho cavalo gira
perto do iminente sofá
e o cavalo cavalga
dentro das paredes
a estoirar a ventania
obscura
e engole
uma almofada de acre
vinho
e no próprio relinchar
como desabrocha!
tapeçarias de névoas
esvoaçam entre fragilidade e angústias
vi o saco a inundar-se
no arame farpado
com que o ergo
até sufocar o amanhecer
fusiforme
a saltitar nos nós de
sangue
uma breve leveza de
ofício
e rasgam-se fissuras na
carne como outra carne funda
e ensanguentada
em estado de choque
assim irei aprender
também trigonometria astrofísica
dos cometas às galáxias
inundadas de gravidade
enquanto o saco é
elevado
nós somos elevados
e arrastamos as imagens
de uma ponta à outra
devoramo-nos
na engrenagem atómica
em frente aos
vertiginosos olhos anda o saco a pensar nas coisas
o saco desmancha a
doçura do pescoço
sangra-o nas mãos
vagarosamente
à raiva tão veloz
canta nas fracturas da
terra na cabeça movida por circunferências
saco chato dorme a
alumiar a escuridão
uma chatice mortal!...
mexe-se aquele saco com
pensamentos inquietantes
sei-o inquietante
é mestre e eu o
aprendiz
com a cabeça no fundo
dos meus joelhos a estilhaçar
devassa os astros
explodindo-os de
encontro às estrelas
e todas as altas
estrelas bailam na ponta dos dedos pretos prata
a deslizar na coxa
dissolvida
contra espirais
cadentes os astros são a sonoridade
cantam flores e jarras
e as estrelas o ritmo
maldito feito de cera luminosa
em que as trevas
vagabundam
nos espelhos rápidos
dentro da penumbra
pendidas nos aromas megalíticos
que vão de sabor para
sabor
pela aragem abaixo
a levitar na sua
matéria enlouquecida
e morde a luz
porque os perfumes celestes
se despedem e diluem o
espaço e o tempo
como num avanço e recuo
doce
estremecendo as
distâncias em tempo irreal
deixo-me cair anterior
a esse saco entrançado nas veias adentro
e racho as mãos à
velocidade de um galho precioso
na dúvida
alastram-se as abas que
dançam
enquanto o saco sufoca
numa janela contorcida
deambulo
na opacidade dos
espelhos e vidros
que nunca mas nunca
falam dele ou de mim
– o saco, por
exemplo...
23 de
fevereiro 2016.