Sua especial preferência por este gênero dentro da prosa marcha paralelamente à que demonstrava pelos poemas breves, e pelas mesmas razões: "Pronuncio-me sem vacilar pelo conto em prosa... Refiro-me à narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia a uma ou duas horas. Dada sua extensão, o romance comum é criticável... Como não pode ser lido de uma só vez, se vê privado da imensa força que deriva da totalidade. Os acontecimentos do mundo exterior que intervêm nas pausas da leitura modificam, anulam ou rebatem, em maior ou menor grau, as impressões do livro... O conto breve, ao contrário, permite ao autor desenvolver plenamente seu propósito... Durante a hora da leitura, a alma do leitor permanece submissa à vontade daquele...". Esta última frase é reveladora. Poe escreverá seus contos para dominar, para submeter o leitor no plano imaginativo e espiritual.
Tecnicamente, sua teoria do conto segue de perto a doutrina poética: também um conto deve partir da intenção de obter certo efeito, para o qual o autor "inventará os incidentes, combinando-os da maneira que melhor o ajude a conseguir o efeito preconcebido..."
Outro também importante ponto da doutrina de Poe sobre o conto é a liquidação de todo propósito estético do conto. Os contos-poema, os contos "artísticos" não são para Poe verdadeiros contos. A beleza é o território do poema. Mas, em compensação, a poesia não pode fazer um uso tão eficaz "do terror, da paixão, do horror ou de uma multidão de outros elementos". Poe defende linha após linha os "contos de efeito" [...].
Em 1953, Julio Cortázar foi para a Italia por nove meses, quando traduziu contos e ensaios de Poe (quase duas mil páginas!) |
A coisa que ocorre deve ser intensa. Aqui Poe não se colocou estéreis questões de fundo e forma; era lúcido demais para não perceber que um conto é um organismo, um ser que respira e palpita, e que sua vida consiste - como a nossa - em um núcleo animado inseparável das suas manifestações. Coração e palpitação não são duas coisas, mas duas palavras. Um coração vivo palpita, um palpitar é um coração que vive. A intensidade do conto é esse palpitar da sua substância, que só se explica pela substância, assim como esta só é o que é pela palpitação. Por isso, ao se falar de intensidade não se deve entender a obrigação de que o conto contenha acontecimentos exageradamente intensos num sentido factual.
Que ocorre em O demônio da perversidade? Um homem cede à necessidade de confessar seu crime, e confessa; casos assim se dão com frequência. Mas só os Poe e os Dostoiévski conseguem situar suas narrativas no plano essencial e, portanto, efetivo. Se um tema como esse não nasce ou não se apóia na estrutura mais profunda do homem, não terá intensidade e sua concretização literária será sem efeito. […] Não há talento verbal nem engenho técnico que salve da mediania um conto sem intensidade. Poe é o primeiro a aplicar sistematicamente (e não só ao acaso da intuição, como os contistas do seu tempo) este critério que no fundo é critério de economia, de estrutura funcional. No conto vai ocorrer algo, e esse algo será intenso. Todo rodeio é desnecessário sempre· que não seja um falso rodeio, ou seja, uma apárente digressão por meio da qual o contista nos agarra desde a primeira frase e nos predispõe para recebermos em cheio o impacto do acontecimento. Assim, O demônio da perversidade começa discursivamente, mas após duas frases já sentimos a garra de Poe, não podemos interromper a aproximação inevitável do drama. Em outros contos (O poço e o pêndulo, O coração delator) a entrada no assunto é fulminante, brutal. Sua economia é a das que surpreendem em tempos de literatura difusa, quando o Neoclassicismo convidava a espraiar ideias e engenho sob pretexto de qualquer tema, multiplicando as digressões, e a influência romântica induzia a efusões incontroladas e carentes de toda vertebração. Os contistas da época não tinham outro mestre senão o romance, que é péssimo fora do âmbito que lhe é próprio.
Cortázar dizia que Baudelaire era um duplo de Poe. De 1848 a 1857, profundamente impactado por sua obra, o francês traduziu as obras do americano. Ilustração: Tenllado Studio |
Muito se tem elogiado Poe pela criação de "ambientes". Deve-se pensar em outros altos mestres do gênero - Tchecov, Villiers de l'Isle Adam, Henry James, Kipling, Kafka - para encontrar seus pares na elaboração dessa propriedade como que magnética dos grandes contos. A aptidão de Poe para nos introduzir num conto como se entra numa casa, sentindo imediatamente as múltiplas influências de suas formas, cores, móveis, janelas, objetos, sons e cheiros, nasce da concepção que acabamos de mostrar. A economia não é ali somente uma questão de tema, de ajustar o episódio ao seu miolo, mas de fazê-Io coincidir com a sua expressão verbal, ajustando-a ao mesmo tempo para que não ultrapasse os seus limites. Poe procura fazer com que o que ele diz seja presença da coisa dita e não discurso sobre a coisa. Nos seus melhores contos o método é francamente poético: fundo e forma deixam de ter sentido como tais. Em O tonel de amontillado, O coração delator, Berenice, Hop-Frog e tantos mais, o ambiente resulta da eliminação quase absoluta de pontes, apresentações e retratos; somos colocados no drama, somos obrigados a ler o conto como se estivéssemos dentro.
Poe não é nunca um cronista; seus melhores contos são janelas, aberturas de palavras. Para ele, um ambiente não constitui como que um halo do que acontece, mas forma corpo com o próprio acontecimento e, às vezes, é o acontecimento. Em outros contos - Ligéia, William Wilson, O escaravelho de ouro - o desenvolvimento temático se repete na moldura tonal, no cenário. William Wilson é um conto relativamente extenso, pois compreende uma vida desde a infância até a virilidade; contudo, o tom dos primeiros parágrafos é tal que provoca no leitor um sentimento de aceleração (criando o desejo de saber a verdade) e o faz ler o conto num tempo mental inferior ao tempo físico que a leitura consome. Quanto a O escaravelho de ouro, todo leitor recordará como o leu na ocasião. O ritmo das narrativas é tão adequado ao ritmo dos acontecimentos, que a sua economia não é uma questão de obrigatória brevidade (embora tenda para isso), mas, sim, de perfeita coerência entre duração e intensidade. Ali nunca há perigo de um anticlímax por desajuste técnico.
Mas imediatamente se nos abre um terreno muito mais amplo e complexo, terra incógnita, onde se deve mover entre intuições e conjeturas, onde se acham os elementos profundos que, muito mais que tudo já visto, dão a certos contos de Poe a sua inconfundível tonalidade, ressonância e prestígio. Deixando de lado as narrativas secundárias (muitos contos foram escritos para encher colunas de uma revista, para ganhar uns dólares em momentos de terrível miséria) e atendo-nos aos relatos principais, que, aliás, são a ampla maioria, é fácil perceber que os temas poeanos nascem das tendências peculiares da sua natureza, e que em todos eles a imaginação e a fantasia criadoras trabalham sobre a matéria primordial, um produto inconsciente. Este material, que se impõe irresistivelmente a Poe e lhe dá o conto, proporcionando-lhe num só ato a necessidade de escrevê-lo e a raiz do tema, se apresentará para ele sob a forma de sonhos, alucinações, ideias obsessivas; a influência do álcool e, sobretudo, a do ópio, facilitarão sua irrupção no plano consciente, assim como sua aparência (para ele, em quem se percebe uma vontade desesperada de se enganar) de achados imaginativos, de produtos da idealidade ou faculdade criadora.
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Sobre a tradução da obra de Poe para o espanhol por Cortázar, em matéria no "El país" |
Poe é pop
Na capa do disco Sgt. Pepper, dos Beatles |
Filme de 1968 com três episódios baseados em Metzengerstein (dir. Roger Vadim); William Wilson (Louis Malle); e Never bet the devil your head (Federico Fellini) |
Aqui um cartoon que mostra a sua influência sobre Jules Verne. |
Cartoon de Alberto Breccia, adaptação de William Wilson. Para ver mais clique AQUI |