30 de maio de 2017

Sobre a teoria do conto em Poe [excertos de "Poe: o poeta, o narrador e o crítico", por Julio Cortázar (em "Valise de Cronópio)]

Sobre a teoria do conto em Poe, comenta Cortázar: "a complexidade e intensidade de um conto derivam justamente do autor precisar aproveitar todos os mínimos detalhes possíveis do seu texto para que ele se torne denso o suficiente e não apenas um relato banal de um caso qualquer".
Entre a inspiração ("produtos poéticos nascidos de uma intuição pura") e a composição "a estrutura minuciosamente articulada de elementos escolhidos, inventados, preferidos", Poe dizia que: "Não há maior engano do que crer que uma autêntica originalidade é mera questão de impulso ou de inspiração. Originar consiste em combinar cuidadosa, paciente e compreensivamente".

Sua especial preferência por este gênero dentro da prosa marcha paralelamente à que demonstrava pelos poemas breves, e pelas mesmas razões: "Pronuncio-me sem vacilar pelo conto em prosa... Refiro-me à narrativa curta, cuja leitura atenta requer de meia a uma ou duas horas. Dada sua extensão, o romance comum é criticável... Como não pode ser lido de uma só vez, se vê privado da imensa força que deriva da totalidade. Os acontecimentos do mundo exterior que intervêm nas pausas da leitura modificam, anulam ou rebatem, em maior ou menor grau, as impressões do livro... O conto breve, ao contrário, permite ao autor desenvolver plenamente seu propósito... Durante a hora da leitura, a alma do leitor permanece submissa à vontade daquele...". Esta última frase é reveladora. Poe escreverá seus contos para dominar, para submeter o leitor no plano imaginativo e espiritual.

Tecnicamente, sua teoria do conto segue de perto a doutrina poética: também um conto deve partir da intenção de obter certo efeito, para o qual o autor "inventará os incidentes, combinando-os da maneira que melhor o ajude a conseguir o efeito preconcebido..."

Outro também importante ponto da doutrina de Poe sobre o conto é a liquidação de todo propósito estético do conto. Os contos-poema, os contos "artísticos" não são para Poe verdadeiros contos. A beleza é o território do poema. Mas, em compensação, a poesia não pode fazer um uso tão eficaz "do terror, da paixão, do horror ou de uma multidão de outros elementos". Poe defende linha após linha os "contos de efeito" [...].
Em 1953, Julio Cortázar foi para a Italia por nove meses, quando traduziu contos e ensaios de Poe (quase duas mil páginas!)
Afirmou-se que o período entre 1829 e 1832 vê nascer o conto como gênero autônomo. Na França surgem Mérimée e Balzac, e nos Estados Unidos, Hawthorne e Poe. Mas só este escreveria uma série tão extraordinária de narrativas a ponto de dar ao novo gênero o empurrão definitivo em seu país e no mundo, e de inventar ou aperfeiçoar formas que teriam vasta importância futura. Poe descobriu imediatamente a maneira de construir um conto, de diferenciá-lo de um capítulo de romance, dos relatos autobiográficos, das crônicas romanceadas do seu tempo. Compreendeu que a eficácia de um conto depende da sua intensidade como acontecimento puro, isto é, que todo comentário ao acontecimento em si […] deve ser radicalmente suprimido. Cada palavra deve confluir, concorrer para o acontecimento, para a coisa que ocorre e esta coisa que ocorre deve ser só acontecimento e não alegoria […] ou pretexto para generalizações psicológicas, éticas ou didáticas. Um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse. É absolutamente literário, e se deixa de o ser como, por exemplo, na literatura de tese, se converte em veículo literário de um efeito extraliterário, isto é, deixa de ser um conto no antiquíssimo sentido da palavra.

Nota: as três acepções da palavra "conto", segundo Julio Casares, são: relato de um acontecimento; narração oral ou escrita de um acontecimento falso; fábula que se conta às crianças para diverti-las. E Poe engloba os três sentidos: o acontecimento a relatar é o que importa; o acontecimento é falso; e o relato deve ter a finalidade de fruição.

A coisa que ocorre deve ser intensa. Aqui Poe não se colocou estéreis questões de fundo e forma; era lúcido demais para não perceber que um conto é um organismo, um ser que respira e palpita, e que sua vida consiste - como a nossa - em um núcleo animado inseparável das suas manifestações. Coração e palpitação não são duas coisas, mas duas palavras. Um coração vivo palpita, um palpitar é um coração que vive. A intensidade do conto é esse palpitar da sua substância, que só se explica pela substância, assim como esta só é o que é pela palpitação. Por isso, ao se falar de intensidade não se deve entender a obrigação de que o conto contenha acontecimentos exageradamente intensos num sentido factual.

Que ocorre em O demônio da perversidade? Um homem cede à necessidade de confessar seu crime, e confessa; casos assim se dão com frequência. Mas só os Poe e os Dostoiévski conseguem situar suas narrativas no plano essencial e, portanto, efetivo. Se um tema como esse não nasce ou não se apóia na estrutura mais profunda do homem, não terá intensidade e sua concretização literária será sem efeito. […] Não há talento verbal nem engenho técnico que salve da mediania um conto sem intensidade. Poe é o primeiro a aplicar sistematicamente (e não só ao acaso da intuição, como os contistas do seu tempo) este critério que no fundo é critério de economia, de estrutura funcional. No conto vai ocorrer algo, e esse algo será intenso. Todo rodeio é desnecessário sempre· que não seja um falso rodeio, ou seja, uma apárente digressão por meio da qual o contista nos agarra desde a primeira frase e nos predispõe para recebermos em cheio o impacto do acontecimento. Assim, O demônio da perversidade começa discursivamente, mas após duas frases já sentimos a garra de Poe, não podemos interromper a aproximação inevitável do drama. Em outros contos (O poço e o pêndulo, O coração delator) a entrada no assunto é fulminante, brutal. Sua economia é a das que surpreendem em tempos de literatura difusa, quando o Neoclassicismo convidava a espraiar ideias e engenho sob pretexto de qualquer tema, multiplicando as digressões, e a influência romântica induzia a efusões incontroladas e carentes de toda vertebração. Os contistas da época não tinham outro mestre senão o romance, que é péssimo fora do âmbito que lhe é próprio.
Cortázar dizia que Baudelaire era um duplo de Poe. De 1848 a 1857, profundamente impactado por sua obra, o francês traduziu as obras do americano. Ilustração:  Tenllado Studio

Muito se tem elogiado Poe pela criação de "ambientes". Deve-se pensar em outros altos mestres do gênero - Tchecov, Villiers de l'Isle Adam, Henry James, Kipling, Kafka - para encontrar seus pares na elaboração dessa propriedade como que magnética dos grandes contos. A aptidão de Poe para nos introduzir num conto como se entra numa casa, sentindo imediatamente as múltiplas influências de suas formas, cores, móveis, janelas, objetos, sons e cheiros, nasce da concepção que acabamos de mostrar. A economia não é ali somente uma questão de tema, de ajustar o episódio ao seu miolo, mas de fazê-Io coincidir com a sua expressão verbal, ajustando-a ao mesmo tempo para que não ultrapasse os seus limites. Poe procura fazer com que o que ele diz seja presença da coisa dita e não discurso sobre a coisa. Nos seus melhores contos o método é francamente poético: fundo e forma deixam de ter sentido como tais. Em O tonel de amontillado, O coração delator, Berenice, Hop-Frog e tantos mais, o ambiente resulta da eliminação quase absoluta de pontes, apresentações e retratos; somos colocados no drama, somos obrigados a ler o conto como se estivéssemos dentro.

Poe não é nunca um cronista; seus melhores contos são janelas, aberturas de palavras. Para ele, um ambiente não constitui como que um halo do que acontece, mas forma corpo com o próprio acontecimento e, às vezes, é o acontecimento. Em outros contos - Ligéia, William Wilson, O escaravelho de ouro - o desenvolvimento temático se repete na moldura tonal, no cenário. William Wilson é um conto relativamente extenso, pois compreende uma vida desde a infância até a virilidade; contudo, o tom dos primeiros parágrafos é tal que provoca no leitor um sentimento de aceleração (criando o desejo de saber a verdade) e o faz ler o conto num tempo mental inferior ao tempo físico que a leitura consome. Quanto a O escaravelho de ouro, todo leitor recordará como o leu na ocasião. O ritmo das narrativas é tão adequado ao ritmo dos acontecimentos, que a sua economia não é uma questão de obrigatória brevidade (embora tenda para isso), mas, sim, de perfeita coerência entre duração e intensidade. Ali nunca há perigo de um anticlímax por desajuste técnico.

Baseando-se nisto é fácil atribuir a Poe um método narrativo puramente técnico, onde a fantasia se limita a criar uma pseudo-realidade em cujo palco se cumpre o princípio. "Mas estas objeções ao método de Poe costumam ser feitas quando faz tempo que se leu. De fato, se cada conto começa por interessar a inteligência, termina apoderando-se da alma. No decorrer da leitura, não podemos evitar uma profunda experiência emocional... Dizer, pois, que a arte de Poe está afastada da experiência equivale a esquecer que ele sempre apóia os dedos sobre algum nervo sensível no espírito do leitor." E Robert Louis Stevenson, aludindo à nossa participação involuntária no drama, escreve: "Às vezes, em lugar de dizer: Sim, assim é que eu seria se estivesse um pouco mais louco do que sempre estive, podemos dizer francamente: Isto é o que sou". Talvez, com estas observações, se possa encerrar a parte doutrinária que Poe concebe e aplica nos seus contos.

Mas imediatamente se nos abre um terreno muito mais amplo e complexo, terra incógnita, onde se deve mover entre intuições e conjeturas, onde se acham os elementos profundos que, muito mais que tudo já visto, dão a certos contos de Poe a sua inconfundível tonalidade, ressonância e prestígio. Deixando de lado as narrativas secundárias (muitos contos foram escritos para encher colunas de uma revista, para ganhar uns dólares em momentos de terrível miséria) e atendo-nos aos relatos principais, que, aliás, são a ampla maioria, é fácil perceber que os temas poeanos nascem das tendências peculiares da sua natureza, e que em todos eles a imaginação e a fantasia criadoras trabalham sobre a matéria primordial, um produto inconsciente. Este material, que se impõe irresistivelmente a Poe e lhe dá o conto, proporcionando-lhe num só ato a necessidade de escrevê-lo e a raiz do tema, se apresentará para ele sob a forma de sonhos, alucinações, ideias obsessivas; a influência do álcool e, sobretudo, a do ópio, facilitarão sua irrupção no plano consciente, assim como sua aparência (para ele, em quem se percebe uma vontade desesperada de se enganar) de achados imaginativos, de produtos da idealidade ou faculdade criadora.
Para acessar o texto do livro na integra, clique AQUI
Sobre a tradução da obra de Poe para o espanhol por Cortázar, em matéria no "El país"
 Poe é pop
Na capa do disco Sgt. Pepper, dos Beatles
Filme de 1968 com três episódios baseados em Metzengerstein (dir. Roger Vadim); William Wilson (Louis Malle); e Never bet the devil your head (Federico Fellini)
Aqui um cartoon que mostra a sua influência sobre Jules Verne.
Cartoon de Alberto Breccia, adaptação de William Wilson. Para ver mais clique AQUI

14 de março de 2017

O Duplo3: Esaú e Jacó, de Machado de Assis - a costura pelas ruínas da literatura

               O romance fora-de-lugar de Machado de Assis, Esaú e Jacó, possui 121 capítulos e mais uma "Advertência", espécie de prefácio.
Sem pretensão de abarcar tudo, nos ateremos apenas a algumas dessas partes, em duas outras postagens, posteriores a esta.
Por ora, apresenta-se a seguir um resumo dos critérios que guiaram a escolha dos capítulos estudados.
          A escolha resultou de um levantamento dos capítulos citados em vários trabalhos acadêmicos e ensaísticos, mas sobretudo em um: Bem-aventurados os que leem: formas simples em Esaú e Jacó, de Machado de Assis, de Rodrigo Silva Trindade. Dissertação de Mestrado, USP, 2013, no qual o autor toma André Jolles como referência para a pesquisa da ocorrência das formas ditas simples na obra de Machado de Assis.
Texto integral do livro, em espanhol, aqui.
           Dentre os trabalhos consultados estão também: o artigo Dança de parâmetros, de Roberto Schwarz, sobre a "Advertência" do livro; a comunicação de Alexandre Eulálio sobre a relação entre o capítulo “Terpsícore” e um painel pictórico realizado por Aurélio Figueiredo, após a leitura da obra de Machado; e os artigos de Renato Oliveira Rocha, O jogo entre ficção e história em Esaú e Jacó; e de Sílvia Maria Azevedo, Esaú e Jacó: de rivalidades e progenitura.
           Nesses textos, faz-se referências a questões a serem abordadas nas postagens a seguir, com comentários aos capítulos selecionados: a figura do narrador; a presença do mito; o aproveitamento de “ruínas literárias”, pela expressão frequente de locuções proverbiais, aforismos, paródias, casos e anedotas; de apólogos e outras alegorias que transmitem a tensão entre atemporalidade e datamento na obra; de formas simples, jogos verbais, desenhos de cenas teatrais; e a mescla de reflexões morfológicas, estéticas e históricas ao longo do romance.
           Leve-se em consideração que, em Esaú e Jacó: 1) o tempo histórico não é o tempo da narração; e 2) a escrita é em mosaico, i.é, a linguagem é fragmentada, cabendo a costura ao narrador, por meio de comentários e interlocuções com o leitor.
           A lógica narrativa é eminentemente apologal; em vários capítulos, o narrador apresenta um conceito, e o ilustra. Em muitos capítulos, há resumos irônicos, satíricos e didáticos, pelos quais o narrador expõe uma tese ao leitor, junto a uma “demonstração”, uma pequena alegoria. Revelam-se assim explicitamente as emendas do texto, em detrimento de uma noção do romance como obra acabada, pela qual se apreende uma beleza também acabada. E intencionalmente o narrador projeta um ardil, uma quebra da unidade da obra, provocando o leitor, principalmente o típico ou a típica leitora de romances folhetinescos.

"Um apólogo" (Vários escritos), de Machado de Assis, contado por Graciela Simoni

13 de março de 2017

O Duplo2: Esaú e Jacó: romance histórico?



Sobre romance histórico
Surgiu no início do século XIX (cf. Lukács, O romance histórico, 1936-37), na efervescência das revoluções sociais, e com o surgimento de um novo tipo de consciência: um novo sentido de história e uma nova experiência de historicidade.
Dentre as personagens, encontram-se e interagem entre si figuras históricas e protagonistas típicos, que seguem os padrões da época tratada, podendo eles estar no centro ou à margem dos acontecimentos, revelando sempre as forças sociais em disputa.
De modo geral, a perspectiva nesse tipo de romance é a do cotidiano, no qual indivíduos das camadas médias da população encarnam os conflitos em curso em suas vidas práticas, sendo o herói um sujeito fortemente vinculado ao seu grupo social. Importante ainda que a ação ocorra em um período anterior ao do escritor; esteja resolvida, por assim dizer; e que paralelamente se desenvolva uma trama amorosa, muitas vezes finalizada de forma trágica.
Considere-se os três planos ontológicos indicados por Ricoeur (cf.Tempo e narrativa, 1983), a saber: o existencial, da vida individual; o histórico, de caráter transindividual; e o dos momentos axiais, quando determinados eventos funcionam como uma espécie de marco zero, a partir do qual um novo tempo se inaugura. O romance histórico se definiria sobretudo por ser uma narrativa desse evento primordial, na qualidade de uma irrupção coletiva (cf. Jameson,"O romance histórico ainda é possível?", 2007).
Em um contexto romântico, dentre os primeiros romances do gênero, estão: Waverley (1814) e Ivanhoé (1819), de Walter Scott; I promessi sposi (1825-27), de Alessandri Manzoni; O último dos moicanos (1826), de James Cooper; Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas; Eurico, o presbítero (1844), de Alexandre Herculano. Gradativamente, porém, o romance histórico assume uma dicção condizente com os movimentos naturalista e realista, como se nota em Salambó (1862), de Gustave Flaubert; e Guerra e Paz (1865-69), de Leon Tolstói.[1]

Homem de seu tempo, das múltiplas perspectivas
Em Esaú e Jacó, os acontecimentos externos tornam-se internos e necessários para o desenvolvimento da trama. Para Machado de Assis, um escritor deve ser um homem de seu tempo, “ainda quando se trate de assuntos remotos no tempo” (cf. “Notícia atual da literatura brasileira, Instinto de Nacionalidade”, 1873). Mas suas obras já vivenciam a expressão do romance histórico, num momento em que o recuo da perspectiva a um passado distante, tal como fora modelado pelo romantismo, entrava em declínio. Sua ficção procura romper com o isolamento entre presente e passado.
Miguel Real (escritor português, pseudônimo literário de Luís Martins [1953]) um decálogo do Romance Histórico, sendo possível compreender a construção da narrativa em Esaú e Jacó à luz de um dos seus estatutos:
O romance histórico não reinterpreta ou reconstrói a história segundo um ditame de verdade [...]. A sua função consiste em abrir um horizonte estético e lúdico às possibilidades contidas na História, fazendo eco das múltiplas verdades e das múltiplas perspectivas por que se desenrolam os fatos históricos, algumas delas nunca acontecidas.
Várias capas desde a 1a. edição_diversas perspectivas do romance
Sobre a historicidade do romance
Luiz Costa Lima chama atenção para um outro dado importante no que se refere ao distanciamento, por Machado de Assis, da tradição do romance. No artigo Sob a face de um bruxo (escrito em 1980, revisto em 2009), Lima discorre sobre a recepção de Tristam Shandy no romance machadiano em sua maturidade, e a recepção de Machado entre seus contemporâneos e na contemporaneidade.
"Obra prima" (Luiz Rufatto)
Ainda vivo, o escritor viu-se alvo de críticos que sublinhavam a repetitividade de temas e a esqualidez em seus enredos e na atuação de certos personagens seus. Entre os críticos, ainda muito se debate sobre o envolvimento de Machado nas questões políticas de sua época. Lima afirma que pensar sobre o mundo que o envolvia não era mesmo uma especificidade do autor. Sua singularidade (não exclusiva) era criar ficcionalmente a partir dessa reflexão. E que ele não devia ser consciente desse jogo, nem tampouco sabia onde ele daria.
A linguagem ficcional supõe que nem sempre as coisas do mundo tem uma finalidade ou ordem. Mesmo sendo mimética, não se cria pela ficção um objeto equivalente à parcela do mundo mimetizado, já que em seu trabalho o autor combina proximidades e diferenças com esse mesmo mundo.
Temporalizar Machado significa, pois, mostrar como as características de sua ficção resultam do esforço reflexivo sobre a sociedade que conheceu. Apreender essa temporalidade significa, por outro lado, que já temos certa distância quanto a seu tempo, mas que essa distância ainda não se converteu em pura diferença. Quando há absoluta coincidência temporal entre o autor e o analista, a apreciação desse tende basicamente a importar como testemunho da recepção de certa obra, i. e., do tipo de expectativa, de resistência e de valores que, positiva ou negativamente, a obra ajudava a verbalmente se atualizar. Quando a episteme do analista é absolutamente outra, o seu esforço se confunde com o do antropólogo, que procura entender com suas categorias um objeto social governado por outras. Quando, por fim, uma nota de diferença se intercala na semelhança que continua a haver entre os tempos do escritor e do analista, temos a possibilidade de entender o que já não somos e uma parcela do que continuamos a ser.
***
Nem romântico, nem realista

(dois trechos essenciais de Luiz Costa Lima, em Sob as faces de um bruxo)

Machado se deparava com duas poéticas: a romântica e a realista. O rumo que estabelece para si se contrapunha a ambas. O caminho real da poética romântica era o elogio da subjetividade criadora. Ela punha o autor, mormente em um país sem tradição intelectual, em uma posição de gozosa passividade diante de seu contexto e de suas vivências. Dentro destas condições, tal poética no máximo permitia a consciência do material linguístico, constatável em Gonçalves Dias ou José de Alencar. Por via diversa, o mesmo limite afetava a poética do realismo. Sua palavra-chave, estar atento à observação, punha o autor na prisão do mundo perceptualmente tematizado. Com isso, ele tendia a confundir a “consciência imaginante” (SARTRE, O imaginário, 1940) com o mero exercício da fantasia compensatória. Por certo, hoje sabemos que não basta ter acesso ao mundo da imaginação, tematizar imaginariamente o mundo, para ter-se acesso ao mundo da ficção. De qualquer modo, o fato é que fechar-se no campo dos percepta impõe um encargo negativo ao ficcionista.

Ao descartar-se das duas poéticas vigentes no Brasil de sua época, Machado libertou-se de localizar sua empresa ficcional fosse sob o ângulo do eu que se conta a si mesmo, fosse sob o do eu que conta seus arredores. Nem seu umbigo, nem seu contorno, nem a nem a fantasia, nem a percepção é o termo privilegiado. A reflexão mimética que pratica não lhe permite a fantasia compensatória porque o próprio dessa é efetuar um deslocamento no espaço para que se afaste a consciência de seu agora. Controlada pela reflexão, a fantasia se transforma em ficção – um pensar sobre o tempo histórico sem a procura de dominá-lo conceitualmente. Ampliada pela reflexão, a observação assume em Machado o tom alegórico. Exemplo do primeiro processo é apresentado no capítulo “O Delírio” das Memórias póstumas; exemplo do segundo, o “Tabuleta velha” do Esaú e Jacó. Pretendemos, em suma, que a originalidade machadiana resulta de haver fundado sua produção da maturidade na reflexão ficcional de sua sociedade. Não se pretende que essa seja a regra geral para todo grande criador, pois desde logo se objetaria estar-se indevidamente empregando o termo “criador” como se fosse uma entidade sempre igual. A melhor maneira de escaparmos de generalizações impróprias consiste, no momento, em mostrar-se como uma determinada influência é acolhida e como as modificações a que se sujeita decorrem do reajuste a que ela é submetido, para dar conta do outro solo social a que agora visa.

[1] Há ainda um outro tipo de designação, o “romance de época”, comumente considerado como um subgênero do romance histórico. Sem preocupação em precisar datas ou eventos axiais, o foco em um romance de época estaria voltado para a realização de um painel no qual se perceba o modo de vida em uma determinada fase da história de um país. A relação com a história por parte do escritor, nesse caso, é menos comprometida, embora possa advir da leitura do romance um certo interesse e curiosidade acerca da época em questão.

24 de fevereiro de 2017

O Duplo1 - inventário e notas

Inventário (pra lá de incompleto) de duplos na literatura
A presente listagem resulta de consulta à internet em vários sites, mas sobretudo da bibliografia que consta do livro de Otto Rank – O duplo; e das referências no Dicionário de mitos literários, de Pierre Brunel.
- Pedro Almodóvar – A cerimônia do espelho (Folha de SP)
- Hans-Christian Andersen – A sombra (Coletânea de contos fantásticos, de Ítalo Calvino)
- Jean Anouihl – O viajante sem bagagem
- Guillaume Apollinaire – A separação da sombra / O passeio da sombra (O rei lua)
- Amílcar Bettega Barbosa – O rosto / Cara a cara (Deixe o quarto como está)
- Samuel Beckett – Textos a troco de nada // Molloy
- Saul Bellow – A vítima
- Wilfred Bion – O gêmeo imaginário
- Jorge Luís Borges – El sur / As ruínas circulares / A forma da espada / A morte e a bússola (Ficções) // O outro (O livro de areia) // Abenjacan... (O Aleph) // Borges e eu (O fazedor)
- André Breton – Nadja
- Adalberto von Chamisso – A maravilhosa história de Pedro Schlemihl
- Joseph Conrad – O parceiro secreto
- Julio Cortázar – Relato sobre fundo de água / Distante (Bestiário) // Uma flor amarela (Final de jogo) // À noite, olhando pro céu (As armas secretas)
- Fiódor Dostoievski - O duplo
- Rubens Figueiredo – Nos olhos do intruso (As palavras secretas)
- Carlos Fuentes – Zona sagrada // Todos os gatos são pardos // Terra nostra // Um parentesco distante
- Téophile Gauthier – A morte enamorada / O cavaleiro duplo (Contos fantásticos, SP: Primeira linha, 1999)
- Julien Green – Se eu fosse você // O viajante sobre a terra // O visionário
- Nikolai Gogol – O retrato (O capote&O retrato – LPM)
- João Guimarães Rosa - O espelho (Primeiras estórias)
- Herman Hesse – O lobo da estepe / Demian
- ETA Hoffmann – O homem de areia / Os elixires do diabo / O gato Murr (Contos fantásticos, trad. Fernando Sabino, RJ: Imago, 1993)
- Jack London – A sombra e o brilho
- Dyonélio Machado – Os ratos
- Machado de Assis – Esaú e Jacó // O espelho / Identidade (Relíquias da velha casa)
- Guy de Maupassant – O horla (1ª e 2ª versão) / Ele
- Thomas Mann – As cabeças trocadas (Nova Fronteira, 87)
- Robert Musil – O homem sem qualidades (que poderia ter se chamado "A irmã gêmea")
- Vladimir Nabokov – Desespero (Lisboa: Teorema, 2010)
- Nelson Rodrigues – As gêmeas (A vida como ela é)
- Luigi Pirandello – A desdita de Pitágoras (O velho Deus - Novelas para um ano) // O falecido Mattia Pascal
- Edgar Allan Poe – Wiliam Wilson (Histórias fantásticas) // O retrato oval // A queda da casa de Usher
- Ricardo Piglia – A cidade ausente
- Shakespeare – Comédia de erros / Noite de reis
- Robert Stevenson – Dr. Jeckyl e Mr. Hide
- Scott Turrow – Idênticos
- Oscar Wilde - O retrato de Dorian Gray
Duplo Rembrandt com degraus (1987-88), de Mike e Doug Starn
O mito literário 
          O mito do duplo remonta a tempos imemoriais e está presente na mitologia greco-romana (ex.:Rômulo e Remo), judaico-cristã (ex.:Caim e Abel) e pré-colombiana (ex.:Popol Vuh). O mito literário atualiza a crença; transforma-a. Na literatura, o mito das tradições religiosas, da memória e das enciclopédias, se reflete em inúmeras histórias e se desdobra em outras tantas.  Nelas, a formação de um par ou de uma dupla desempenha papel fundamental na trama, e a apreensão da identidade dos personagens se reforça pela transparente relação de alteridade que estabelecem entre si (ex.:Dom Quixote e Sancho Pança).
          A diferença entre o Duplo e a dupla é que o primeiro termo diz respeito à função que a relação entre certas duplas exerce nas histórias. Desde o romantismo, o duplo (Doppelgänger) se converteu em uma questão, uma temática. Traduzindo literalmente a palavra quer dizer “aquele que caminha do lado”; “companheiro de estrada”. Nas palavras de Jean-Paul Richter (1796), “assim designamos as pessoas que se veem a si mesmas”. Trata-se portanto de uma experiência de intersubjetividade, isto é, que depende da subjetividade e que acontece sobretudo nesse nível.
        Partindo dessa compreensão, muitas situações apresentadas literariamente discutem ou simplesmente mostram o quanto a nossa identidade é falha e como é necessário que nos reflitamos em um outro, a fim de afirmá-la, lembrando que duplos podem ser constituídos por pares nada evidentes.
          O poeta Rimbaud (Je est um autre.), assim como Borges e sua visão do el otro, são exemplos  de autores que absorveram com muita intensidade a questão do Duplo, revirando-a de modo que a fragilidade e a força do eu se tornassem inseparáveis. 
          Mas essa atração que a questão exerce vem de longa data. Sófocles em “Édipo rei” põe em dúvida a noção que já então se pronunciava – a de que o homem é o motor absoluto de suas ações – reiterando a sua dualidade. Homem não é só o “que está aqui”, mas também o que “está fora daqui”. 
          Há textos literários em que o duplo aparece explicitamente, de forma linguística, quando se faz menção ao eu/ o outro/ ele; ou ao eu/ dois em um; ou ainda ao eu/ o mesmo, ou seja, a significantes que mostram claramente a proximidade de um estranho, ou então de um estranhamento da identidade. 
          A crescente absorção desse mito pela literatura tornou-o parte indissociável de um gênero – a ficção fantástica, e também a científica. Se nos ativermos ao que diz Goethe sobre a novela como “a narração de uma perturbação por um acontecimento estranho”, entenderemos porque esse tipo de texto literário (a novela) é o preferido para o desenvolvimento do tema. Mas também na poesia lírica, pela qual se expressa o eu-lírico e se canta os problemas do eu, o Duplo está presente, sendo porém pouco frequente no romance.
Auto-retrato (1987), de Mike e Doug Starn
Aspecto simbólico
          Todo homem tem natureza dupla: é masculino e feminino. Por isso, a cisão do ser andrógino enfraqueceu-o. A estrutura interior do homem pressupõe a união de elementos diferentes.
          A dualidade intrínseca da pessoa cria a necessidade de um constante processo de metamorfose, reforçando a ideia do homem como responsável pelo seu destino, o que sugere uma associação entre o Duplo com o romance de formação ou Bildungsroman.
          A dicotomia induz a separação dos entes em maléficos e benéficos. Exemplos dessa experiência são o diabo e o anjo; o homem e o animal; o espírito e a carne; a vida e a morte; e, no ocultismo, a morte e o renascimento. 
          De acordo com Otto Rank, autor de O duplo, heróis que se desdobram apresentam uma disposição amorosa voltada para o próprio ego e sofrem de uma incapacidade de amar (cf. mito de Narciso). O conflito psíquico cria o duplo como projeção de uma desordem íntima. O Duplo indica a parte não apreendida ou excluída pela imagem de si que tem o eu.
          Mas, além dessa possibilidade de visão psicológica da experiência do Duplo, existe uma outra, de cunho mais existencial ou metafísico, que o relaciona ao problema da morte e ao desejo de sobreviver-lhe. Trata-se de uma nostalgia do infinito, do tempo imemorial em que tudo era uno e um só ser. O amor próprio e a angústia da morte seriam portanto sentimentos muito próximos, talvez indissociáveis.
          A nostalgia do infinito nos leva a realizar ritos de passagem, pelo desejo de se tornar habitantes de dois mundos.
           Pelo Duplo, personifica-se a alma imortal, mas também o assustador mensageiro da morte. Por isso, os componentes do duplo ao mesmo tempo se atraem e se repelem. Há uma ambivalência de sentimentos: interesse apaixonado e terror; a relação tem um caráter ao mesmo tempo de proximidade e antagonismo; e em geral o encontro ocorre num momento de vulnerabilidade do eu original.
          Subsiste também um certo sentimento de culpabilidade por conta do eu desejar a morte de si para renascer num outro ser. 
          Enfim, o desdobramento pode ser objetivo, gerando-se duplos por multiplicação; ou subjetivos, dividindo-se o self. O Duplo é idêntico e diferente; interior e exterior; está aqui e lá; é oposto e complementar.
          Até o final do século XVI, o Duplo apresenta sobretudo o homogêneo, o idêntico, o substituível, o usurpador de identidade; cada um tem sua identidade própria; podem ser gêmeos ou um só personagem desempenhar dois papéis. Nesse caso, a tendência é buscar a unidade, sabendo-se que o homem é feito à imagem e semelhança de Deus.
          A partir do século XVI até o XIX, o Duplo representa o heterogêneo; a divisão do eu; a quebra da unidade até o fracionamento infinito (século XX). Ego e Deus se separam; é a morte de Deus; o sujeito hipertrofiado torna-se centro do mundo, o que pode também gerar sentimentos de alienação, niilismo ou impotência.
          A partir do século XX, o Duplo veio a ser eminentemente o Outro; alguém que leva uma vida em um mundo paralelo, mas correlato e interdependente. Baseia-se essa noção na teoria do caos ou de eventos ou elementos associados em cadeias não lineares. Socialmente, os componentes desses pares ao infinito são indissociáveis, embora em geral não tenham consciência disso (ex. Mrs.Dalloway e Septimus). 

Segundo Carl F. Keppler (The literature of the second self, University of Arizona, Press Tucson, 1972), há sete modalidades de duplos: o perseguidor / o gêmeo / o(a) bem-amado(a) / o tentador / a visão de horror / o salvador / o duplo no tempo.
OBS.: Não esquecer que o duplo pode ser um animal.
Cavalos (1985-86), de Mike e Doug Starn