Sobre
romance histórico
Surgiu no início do século XIX (cf. Lukács, O romance histórico, 1936-37), na efervescência das revoluções
sociais, e
com o surgimento de um novo tipo de consciência: um novo sentido de história e
uma nova experiência de historicidade.
Dentre as personagens,
encontram-se e interagem entre si figuras
históricas e protagonistas típicos, que seguem os padrões da
época tratada, podendo eles estar no centro ou à margem dos acontecimentos,
revelando sempre as forças sociais em disputa.
De modo geral, a perspectiva nesse tipo de romance é a do
cotidiano, no qual indivíduos das camadas médias da população encarnam os
conflitos em curso em suas vidas práticas, sendo o herói um sujeito fortemente
vinculado ao seu grupo social. Importante ainda que a ação ocorra em um período
anterior ao do escritor; esteja resolvida, por assim dizer; e que paralelamente
se desenvolva uma trama amorosa, muitas vezes finalizada de forma trágica.
Considere-se os três planos ontológicos indicados por Ricoeur (cf.Tempo e narrativa, 1983), a saber: o
existencial, da vida individual; o histórico, de caráter transindividual; e o
dos momentos axiais, quando determinados eventos funcionam como uma espécie de
marco zero, a partir do qual um novo tempo se inaugura. O romance histórico se
definiria sobretudo por ser uma narrativa desse evento primordial, na qualidade
de uma irrupção coletiva (cf. Jameson,"O romance histórico ainda é possível?", 2007).
Em um contexto romântico, dentre os primeiros romances do
gênero, estão: Waverley (1814) e Ivanhoé
(1819), de Walter Scott; I promessi sposi
(1825-27), de Alessandri Manzoni; O
último dos moicanos (1826), de James Cooper; Os três mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas; Eurico, o presbítero (1844), de
Alexandre Herculano. Gradativamente, porém, o romance histórico assume uma dicção
condizente com os movimentos naturalista e realista, como se nota em Salambó (1862), de Gustave Flaubert; e Guerra e Paz (1865-69), de Leon Tolstói.
Homem de seu tempo, das múltiplas perspectivas
Em Esaú e Jacó, os
acontecimentos externos tornam-se internos e necessários para o desenvolvimento
da trama. Para Machado de Assis, um escritor deve ser um homem de seu tempo,
“ainda quando se trate de assuntos remotos no tempo” (cf. “Notícia atual da
literatura brasileira, Instinto de Nacionalidade”, 1873). Mas suas obras já
vivenciam a expressão do romance histórico, num momento em que o recuo da
perspectiva a um passado distante, tal como fora modelado pelo romantismo,
entrava em declínio. Sua ficção procura romper com o isolamento entre presente
e passado.
Miguel Real (escritor
português, pseudônimo literário de Luís Martins
[1953]) um decálogo do Romance Histórico,
sendo possível compreender a construção da narrativa em Esaú e Jacó à luz de um dos seus estatutos:
O romance histórico não reinterpreta ou
reconstrói a história segundo um ditame de verdade [...]. A sua função consiste em abrir um horizonte
estético e lúdico às possibilidades
contidas na História, fazendo eco das múltiplas verdades e das múltiplas
perspectivas por que se desenrolam os fatos históricos, algumas delas nunca
acontecidas.
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Várias capas desde a 1a. edição_diversas perspectivas do romance |
Sobre a historicidade do
romance
Luiz Costa Lima chama atenção para um outro dado importante no que se refere ao distanciamento, por Machado de Assis, da tradição do romance. No
artigo Sob a face de um bruxo
(escrito em 1980, revisto em 2009), Lima discorre sobre a recepção de Tristam Shandy no romance machadiano em
sua maturidade, e a recepção de Machado entre seus contemporâneos e na
contemporaneidade.
Ainda vivo, o escritor viu-se alvo de críticos que sublinhavam a
repetitividade de temas e a esqualidez em seus enredos e na atuação de certos
personagens seus. Entre os críticos, ainda muito se debate sobre o envolvimento
de Machado nas questões políticas de sua época. Lima afirma que pensar sobre o
mundo que o envolvia não era mesmo uma especificidade do autor. Sua
singularidade (não exclusiva) era criar ficcionalmente a partir dessa reflexão.
E que ele não devia ser consciente desse jogo, nem tampouco sabia onde ele
daria.
A linguagem ficcional supõe que nem sempre as coisas do mundo tem
uma finalidade ou ordem. Mesmo sendo mimética, não se cria pela ficção um
objeto equivalente à parcela do mundo mimetizado, já que em seu trabalho o
autor combina proximidades e diferenças com esse mesmo mundo.
Temporalizar
Machado significa, pois, mostrar como as características de sua ficção resultam
do esforço reflexivo sobre a sociedade que conheceu. Apreender essa
temporalidade significa, por outro lado, que já temos certa distância quanto a
seu tempo, mas que essa distância ainda não se converteu em pura diferença.
Quando há absoluta coincidência temporal entre o autor e o analista, a
apreciação desse tende basicamente a importar como testemunho da recepção de
certa obra, i. e., do tipo de expectativa, de resistência e de valores que,
positiva ou negativamente, a obra ajudava a verbalmente se atualizar. Quando a episteme
do analista é absolutamente outra, o seu esforço se confunde com o do
antropólogo, que procura entender com suas categorias um objeto social
governado por outras. Quando, por fim, uma nota de diferença se intercala na
semelhança que continua a haver entre os tempos do escritor e do analista,
temos a possibilidade de entender o que já não somos e uma parcela do que
continuamos a ser.
***
Nem romântico, nem
realista
Machado se deparava com duas poéticas: a
romântica e a realista. O rumo que estabelece para si se contrapunha a ambas. O
caminho real da poética romântica era o elogio da subjetividade criadora. Ela
punha o autor, mormente em um país sem tradição intelectual, em uma posição de
gozosa passividade diante de seu contexto e de suas vivências. Dentro destas
condições, tal poética no máximo permitia a consciência do material
linguístico, constatável em Gonçalves Dias ou José de Alencar. Por via diversa,
o mesmo limite afetava a poética do realismo. Sua palavra-chave, estar atento à
observação, punha o autor na prisão do mundo perceptualmente tematizado.
Com isso, ele tendia a confundir a “consciência imaginante” (SARTRE, O imaginário, 1940) com o mero exercício
da fantasia compensatória. Por certo, hoje sabemos que não basta ter acesso ao
mundo da imaginação, tematizar imaginariamente o mundo, para ter-se acesso ao
mundo da ficção. De qualquer modo, o fato é que fechar-se no campo dos percepta
impõe um encargo negativo ao ficcionista.
Ao descartar-se das duas poéticas vigentes
no Brasil de sua época, Machado libertou-se de localizar sua empresa ficcional
fosse sob o ângulo do eu que se conta a si mesmo, fosse sob o do eu que conta
seus arredores. Nem seu umbigo, nem seu contorno, nem a nem a fantasia, nem a
percepção é o termo privilegiado. A reflexão mimética que pratica não lhe
permite a fantasia compensatória porque o próprio dessa é efetuar um
deslocamento no espaço para que se afaste a consciência de seu agora.
Controlada pela reflexão, a fantasia se transforma em ficção – um pensar sobre
o tempo histórico sem a procura de dominá-lo conceitualmente. Ampliada pela
reflexão, a observação assume em Machado o tom alegórico. Exemplo do primeiro
processo é apresentado no capítulo “O Delírio” das Memórias póstumas;
exemplo do segundo, o “Tabuleta velha” do Esaú e Jacó. Pretendemos, em
suma, que a originalidade machadiana resulta de haver fundado sua produção da
maturidade na reflexão ficcional de sua sociedade. Não se pretende que essa
seja a regra geral para todo grande criador, pois desde logo se objetaria
estar-se indevidamente empregando o termo “criador” como se fosse uma entidade
sempre igual. A melhor maneira de escaparmos de generalizações impróprias
consiste, no momento, em mostrar-se como uma determinada influência é acolhida
e como as modificações a que se sujeita decorrem do reajuste a que ela é
submetido, para dar conta do outro solo social a que agora visa.