28 de junho de 2010

Literatura “primitiva”

          Elizabeth Bishop, no conto "A escola de redação E.U.A.", utiliza o termo, diferenciando-o, porém, da pintura primitiva. Na literatura primitiva, há desmazelo e afobação.
          Enquanto o pintor primitivo é capaz de passar meses ou anos, se necessário, reproduzindo todas as folhas de relva de um gramado ou criando muros de tijolo em baixo-relevo, o escritor primitivo parece ter pressas em acabar logo com aquilo.
          Outra característica que os diferencia, acrescenta, é a ausência de detalhes.
          O pintor primitivo ama os detalhes, e os elabora e enfatiza em detrimento do todo. Mas quando o escritor primitivo utiliza detalhes, estes são muitas vezes absurdamente inadequados, e revelam muita coisa a respeito do autor sem dizer nada de relevante sobre o assunto em questão. Talvez isso prove que têm razão os escritores profissionais que com que freqüência se queixam de que pintar é mais divertido que escrever.
          Talvez - conclui - as mesmas mulheres que apresentam míseros resumos de narrativas sem diálogos e sem nenhuma descrição de personagens e lugares não hesitassem em passar uma tarde inteira enfeitando um bolo de aniversário com glacê de cores diferentes.

In: “Esforços do afeto”, de ELIZABETH BISHOP, Companhia das Letras, São Paulo, 1996.

23 de junho de 2010

As minhas cidades

Maria Luiza Martins

           No início, a cidade é um lugar em que a gente vive.  E viver neste lugar é transformador do lugar e do ser humano que é transformado pelo lugar. De modo que a cidade e a pessoa são mutuamente transformadoras. Uma transforma e constrói a outra. E, reciprocamente, atuam no desenvolvimento destes crescimentos e transformações de uma forma tão indelével pelo tempo transcorrido e pela memória do presente e do passado, que todos estes fatores são expressos em sentimentos e fundamentos de tal importância, resultando ser uma cidade ou um lugar o nascedouro precioso da alma do indivíduo. A cidade pode ser a felicidade do indivíduo. Ou a sua desgraça.
          As minhas cidades foram os meus lugares. Hoje eu digo que eu sou o lugar. A emoção em por em palavras o significado do que digo é perturbadora da expressão de dizer. Pois as cidades por onde vivi foram meus pais e mães, minhas casas e minhas amigas. A memória diz que fui solitária em todos os tempos, exceto pelo lugar. O lugar sempre me constituiu. Não por escolha, mas simplesmente assim ocorreu.
          Toda vez que venho para o Rio sinto que estou vindo para minha casa e para minha mãe. Um sentimento de tal conforto e bem, que talvez seja um momento de felicidade.
          Há uns quinze anos ou mais, vendi o apartamento em que vivia e comprei outro, mas que não pôde ser ocupado de imediato, motivo que me fez ir para um hotelzinho com meus filhos por quatro meses até a liberação do novo apartamento. E aí neste lugar, enquanto esperava, botei uma garrafinha de água doce na janela do hotel que dava para uma rua de árvores, enquanto enchia a cabeça de planejamentos para um futuro feliz. E, para meu espanto, passarinhos e beija-flor vieram para a minha janela. Um clique!
          Eu era o lugar. Eu sou o lugar. Uma descoberta que eu faço o lugar, e eu sou o lugar, não importa onde eu precise estar. Mas para chegar a este estado de libertação, houve uma construção que me fez ser através das cidades onde vivi.
          A primeira cidade foi Visconde de Rio Branco. Eu fui pra lá. O lugar me formou e me transformou. Ali conheci as flores, as cores e a doçura da Natureza. A alegria e a felicidade. Ali meus pés pequenos percorreram e descobriram todas as ruas. Correram atrás dos carros de bois e puxava as canas para chupar, junto com o alvoroço das crianças. Eu era a menina mais feliz do mundo. Era princesa de uma Cidade Princesa.
          Mas saí de lá. A cidade ficou no coração e memória. O lugar foi se transformando e eu também.
          A cidade da juventude foi Leopoldina. Transformadora em conhecimentos, lucidez e sonhos. Uma cidade Princesa.
          Fui a Paris onde pensei na felicidade. Uma cidade Princesa da cor e do encanto.
          Voltei para o Rio, onde vivi e vivo. E a cidade me aceitou. E eu adotei a cidade. A minha Cidade Rainha. O povo é meu irmão. A cidade é minha casa e mãe. Ando nas ruas e piso no chão como meu. Mas nunca houve chão melhor que o primeiro de Visconde de Rio Branco.                                        

Exercício Pirandello

Patricia Fucci
            A campainha tocou. Pedi que entrasse e ficasse confortável. Ela estava vestida de preto e carregava uma maleta. Quarentona, cabelo castanho escuro, pele clara, sendo que a do rosto era ainda mais alva que a do pescoço e braços, provavelmente pelo uso exagerado de algum cosmético.
Sentamos frente a frente e, olho no olho, comecei a entrevista:
             _Primeiramente gostaria de saber se você tem facilidade pra chorar?
             _Chorar? Que tipo de choro?
             _Choro desesperado, muito doído.
             _Ah! Choro pra valer? É minha especialidade.
          Ajeitou-se na cadeira, demonstrando estar confiante, e, do nada, começou a soluçar, compulsivamente, lágrimas profusas.
           Pedi que parasse. Parasse! E imediatamente parou. Secou as lágrimas e retomou a posição inicial. Foi só então que percebi que agora seus olhos não tinham qualquer expressão, diferentemente do minuto anterior, em que esbanjaram emoção, quando forjou o ataque de choro.
            Fiquei realmente impressionado, e foi então que lhe falei da minha intenção de escrever uma história triste, pungente. E, continuei:
            _Mas e se, por acaso, a história muda e fica, digamos, menos triste? Você saberia lidar bem com isso?
            _Lidar bem? Não faço outra coisa na vida, da hora que acordo a que durmo. E seguiu repetindo baixinho, “lidar bem”, como se minha pergunta de algum modo a houvesse ofendido. E, retomando, perguntei:
            _Quando você estaria disponível pra começar?
            _Disponível? Agora mesmo. Podemos começar agora.  Pode determinar.
           Sem esperar minha resposta, levantou-se e abriu a maleta preta, exibindo grande variedade de caracteres, suficientes para criar toda sorte de estereótipos, de palhaço a marinheiro. Aí me exaltei. Que história era aquela? Que eficiência mais inadequada. Eu nem havia determinado nada, sequer havia decidido como começar!! Nunca imaginei assim, de primeira, topar com tipo tão arrogante.
            Foi quando resolvi pôr um ponto final:
            _Não, minha senhora, nada feito, a senhora é muito apressada, meu ritmo é mais lento. Quem sabe, falamos semana que vem.
            E, de novo, aquele vazio tomou conta de seus olhos. Assim, vazia, foi juntando as coisas na maleta e fez menção de sair. Nesse momento, confesso que fiquei constrangido, nunca imaginei que pudesse ser tão desastroso o primeiro encontro de um escritor com uma possível personagem. Foi então que resolvi lhe perguntar o nome, pois realmente não me recordava te-lo ouvido, ao que ela  respondeu:
            _Meu nome? Ora, meu Deus, agora mais essa! Teria o nome que você decidisse. Esqueceu que sou uma personagem? Como esperar que eu tenha um nome? Pois vim aqui exato pra isso, pra que você me batizasse e me acolhesse em sua história por um bom tempo, durante o qual você seria meu único e adorado senhor. E, num misto de decepcionada e enraivecida, foi-se embora resmungando.

         Agora fiquei cismado. E, num arroubo de decisão, interfonei ao porteiro. Pedi, por favor, ninguém mais por hoje.

18 de junho de 2010

Em que medida escritos teóricos, científicos, influenciaram sua “escritura”?

Pier Paolo Pasolini
Coisa curiosa, eles não a influenciaram, eles a “inspiraram”. Falo do efeito que puderam ter sobre mim, fora da contribuição terminológica que deles retirei, do ponto de vista da “técnica lingüística”, do vocabulário: simples contribuição de língua especializada. Fora desta contribuição, eles agiram sobre mim como uma espécie de droga, de excitante. Assim que me pus a ler obras de lingüística, veio-me a vontade de escrever poemas.

15 de junho de 2010

Território Ocupado

 Ruth Lifschits
Estou cansada de rolar nesta cama. Que horas são não importa, dá no mesmo.   Mais um dia onde tudo vai ser igual: igualmente vazio, igualmente chato, igualmente cansativo, igualmente nada.  No minuto que eu abrir os olhos, o automático vai se ligar.  E eu? Só vendo tudo acontecer. Não me reconheço, não sei quem é essa pessoa que faz o que eu faço. Sou um território ocupado. Fui invadida. Como? Quando? Quem está aí? Xô! Tudo igual. Só a  folhinha do calendário muda - troco religiosamente antes de preparar meu café.  Vejo qual é o Santo do Dia que vai ouvir meus pedidos de socorro.   Sei lá se funciona, é a possibilidade do diferente. Talvez eu consiga dar um quê a essa desgraceira sem graça. Sou um grito vivo do que ouço na canção: socorro, alguma coisa que me dê sentido, qualquer coisa que se sinta.  Pronto, agora essa música vai ficar grudada em mim, martelando meus miolos. Diacho. Mudar o foco, rápido. A janela! A olhadinha pela janela é de lei, pra ver se vai chover, se vai haver mesmo mais um dia e se esse outro mundo realmente existe. Ah lá vai o pelotão de safenados e aposentados  pra lá e pra cá.  Ô gente cansativa correndo atrás da saúde. Ela acordou, ou melhor, me chamou. Não dorme. Coragem. Está na hora de gritar o já-vou-já-ouvi-já-tô-indo.   Nem deu tempo pro meu café. Bom dia.  Por onde começamos? Hum, tudo errado. Sou uma besta. Nunca, jamais essa pergunta. Pra ela não. Não. É isso que dá viver como um autômato. Mereço tudo que ela vai me dizer, pra deixar de ser burra. Começa-se pelo começo – a voz muito poderosa me invade, me arrepia. Não demora muito e virá o refrão por inteiro. Aliás, meu sistema já produziu o resto na minha cabeça oca: e termina-se pelo fim. Vejo até a cabeça dela balançando enquanto fala. Droga. Quando vou aprender?  Mais de cinqüenta anos ouvindo essa ladainha, essa mesma lengalenga. Bem mais de cinqüenta, mas jamais direi quantos, isso não. Nunca. Esse tempo que passou não é meu, não tenho nada com isso. Sou jovem, não sou essa pessoa - esse corpo redondo, flácido, com voz e pensamentos que não são meus. Não sou esse alguém que me habita, que faz tudo o que eu não quero fazer e ainda por cima fala bobagens o tempo todo. Fui invadida, tomada e ocupada. É uma condenação. Não fiz nada, não mereço isso. Minha pena é viver presa neste apartamento em Copacabana, cuidando o tempo todo dessa velha mandona e irritante. Se aposentou, mas não aposentou o mau humor, a cara azeda e amarrada que usava em casa e na repartição, aquele ar de hoje farei uma concessão e descerei do pedestal para te atender.  Pronto, saiu, disse. Que esforço. Quanta dificuldade. Onde foram parar meus sonhos, meus planos, meus desejos? Quando  me abandonaram?  Alguém os achou e levou para algum lugar -  e me levou junto. Estou lá, cativa. Foi isso que aconteceu, não há outra explicação. Ah, mas quando ela não estiver mais aqui... Não vejo a hora.  Um dia isso vai acontecer.   Serei livre.  Aí eu vou... eu vou... eu vou nada. Livre?! Eu não sou nada, continuarei nada sendo livremente. Não mãe, não irmã, não companheira, não amiga - de ninguém. Só e somente filha. Dela. Meu mal foi esse, a vida inteira filha assistindo a vida de outra.  Obedecendo, temendo, cuidando, providenciando. Tudo pra vida dela.  Uma espectadora, mas de comportamento exemplar. Esse era o seu grande elogio dito para os outros. Para mim só os tons duros e gélidos - o comando perverso. Esta é a chave da minha prisão. Ela se indo, ficarei com nada. Até a chave ela leva. Ficarei sem o tempo que joguei fora, que deixei escapar das minhas mãos. Nenhum santo do dia poderá dar jeito. Não há mais como fazer mudanças ou renovações. Ficarei sem os refrãos que me atormentam, mas me ocupam. Eles preenchem meus vazios e me dão a ilusão de um tempo, de um arremedo de vida. Eles são meus. Começa-se pelo começo, ela vai repetir quando eu estiver bem perto. E termina-se pelo fim, diremos juntas. Hoje não. Não vou falar nada. Juro que vou ficar calada. E termina-se pelo fim.

Carta de amor


Maria Tereza Albernaz
Forte El Zylan, 13 de outubro de ...
          Minha doce Charlotte,
          Quando fui designado para me juntar ao grupo que seguiria em duas semanas para o Forte El Zylan, o impacto da notícia me impediu de procurar você. Por dias seguidos, permaneci em casa afundado no velho sofá ou vagando pelos cômodos, como um fantasma, sem conseguir tomar qualquer iniciativa. Diante da perspectiva que atemoriza todos os soldados de meu regimento, a angústia e o medo me dominaram.
           Finalmente, percebi que os preparativos já estavam com datas acertadas. Seleção de material e enxoval militar na Academia, além de exames médicos no Hospital do Exército. A família não me poupou e as despedidas se desenrolaram em almoços e jantares por dias seguidos. O tempo que me restou ficou reduzido ao necessário para encontrar meu superior na data marcada. 
           Confesso que fugi do encontro que poderia ter me tornado um desertor.  E agora aqui estou, desesperado por não ter tomado você nos braços pela última vez. Não ter ouvido sua voz quente a me consolar e encorajar, não ter recebido o sopro de seu ar. Estas lembranças aqueceriam meu coração.
           Ao ler esta carta e saber como é minha vida neste Forte, tenho esperanças que você me perdoará. Não mereço outra punição além de ter que servir neste longínquo deserto por seis meses. Por favor, minha querida, não se assuste com a duração deste afastamento. Há casos de retorno antes do prazo previsto. Reze comigo para que seja aceita minha solicitação de transferência.
          Edificado em uma paisagem inóspita, o Forte guarda a fronteira de nosso país. Ao seu redor, somente o deserto imenso formado por irregulares dunas de areia e pequenas elevações rochosas. Nas horas mortas, isolado em meu posto de sentinela, nenhum ruído para me acompanhar. Tento em vão enxergar um sinal movente. A opressão me deixa quase sem respirar.  
         Antes de deixar o meu posto, ao final de cada dia, somente quando pronuncio seu nome num grito pungente, me sinto vivo. Ao repetir Charlotte, sua presença parece surgir entre sombras. Você é a inspiração que me faz tolerar estes dias monótonos de espera e melancolia.
         Recebendo esta curta carta, minha amada, certamente em dia muito distante do dia que escrevo, pense que quando eu atravessar este tormento, já não serei o mesmo rapaz que se escondeu dos enfrentamentos, mas o homem que pedirá você em casamento.

8 de junho de 2010

Rapidinha

Arlette Santos
          No intervalo da peça teatral duas mulheres aguardavam o início do segundo ato junto ao toilette. A mais jovem aparentando ter pouco mais de vinte anos, alongando o corpo, disse: - Estou ficando velha; minha coluna está me perturbando.
          A mais idosa - e bota idosa nisso - responde: - O que você faria se tivesse a minha idade?
          Sem titubear veio a resposta: - Dava um tiro no ouvido.
          - É o que você está me sugerindo?
          As duas sorriram face ao rumo que a conversa tomava. A mais jovem já se afastava quando  se virou e falou: - Não vá fazer o que aconselhei. Eu iria morrer de remorso.
          A velha senhora pensou com seus botões: não vá pensar esta menina que suas palavras farão com que eu desista da minha luta! E lembrou dos versos de Gonçalves Dias: A vida é combate que os fracos abate e os bravos, os fortes, só pode exaltar.
          Êta velhinha metida a besta...