15 de junho de 2010

Território Ocupado

 Ruth Lifschits
Estou cansada de rolar nesta cama. Que horas são não importa, dá no mesmo.   Mais um dia onde tudo vai ser igual: igualmente vazio, igualmente chato, igualmente cansativo, igualmente nada.  No minuto que eu abrir os olhos, o automático vai se ligar.  E eu? Só vendo tudo acontecer. Não me reconheço, não sei quem é essa pessoa que faz o que eu faço. Sou um território ocupado. Fui invadida. Como? Quando? Quem está aí? Xô! Tudo igual. Só a  folhinha do calendário muda - troco religiosamente antes de preparar meu café.  Vejo qual é o Santo do Dia que vai ouvir meus pedidos de socorro.   Sei lá se funciona, é a possibilidade do diferente. Talvez eu consiga dar um quê a essa desgraceira sem graça. Sou um grito vivo do que ouço na canção: socorro, alguma coisa que me dê sentido, qualquer coisa que se sinta.  Pronto, agora essa música vai ficar grudada em mim, martelando meus miolos. Diacho. Mudar o foco, rápido. A janela! A olhadinha pela janela é de lei, pra ver se vai chover, se vai haver mesmo mais um dia e se esse outro mundo realmente existe. Ah lá vai o pelotão de safenados e aposentados  pra lá e pra cá.  Ô gente cansativa correndo atrás da saúde. Ela acordou, ou melhor, me chamou. Não dorme. Coragem. Está na hora de gritar o já-vou-já-ouvi-já-tô-indo.   Nem deu tempo pro meu café. Bom dia.  Por onde começamos? Hum, tudo errado. Sou uma besta. Nunca, jamais essa pergunta. Pra ela não. Não. É isso que dá viver como um autômato. Mereço tudo que ela vai me dizer, pra deixar de ser burra. Começa-se pelo começo – a voz muito poderosa me invade, me arrepia. Não demora muito e virá o refrão por inteiro. Aliás, meu sistema já produziu o resto na minha cabeça oca: e termina-se pelo fim. Vejo até a cabeça dela balançando enquanto fala. Droga. Quando vou aprender?  Mais de cinqüenta anos ouvindo essa ladainha, essa mesma lengalenga. Bem mais de cinqüenta, mas jamais direi quantos, isso não. Nunca. Esse tempo que passou não é meu, não tenho nada com isso. Sou jovem, não sou essa pessoa - esse corpo redondo, flácido, com voz e pensamentos que não são meus. Não sou esse alguém que me habita, que faz tudo o que eu não quero fazer e ainda por cima fala bobagens o tempo todo. Fui invadida, tomada e ocupada. É uma condenação. Não fiz nada, não mereço isso. Minha pena é viver presa neste apartamento em Copacabana, cuidando o tempo todo dessa velha mandona e irritante. Se aposentou, mas não aposentou o mau humor, a cara azeda e amarrada que usava em casa e na repartição, aquele ar de hoje farei uma concessão e descerei do pedestal para te atender.  Pronto, saiu, disse. Que esforço. Quanta dificuldade. Onde foram parar meus sonhos, meus planos, meus desejos? Quando  me abandonaram?  Alguém os achou e levou para algum lugar -  e me levou junto. Estou lá, cativa. Foi isso que aconteceu, não há outra explicação. Ah, mas quando ela não estiver mais aqui... Não vejo a hora.  Um dia isso vai acontecer.   Serei livre.  Aí eu vou... eu vou... eu vou nada. Livre?! Eu não sou nada, continuarei nada sendo livremente. Não mãe, não irmã, não companheira, não amiga - de ninguém. Só e somente filha. Dela. Meu mal foi esse, a vida inteira filha assistindo a vida de outra.  Obedecendo, temendo, cuidando, providenciando. Tudo pra vida dela.  Uma espectadora, mas de comportamento exemplar. Esse era o seu grande elogio dito para os outros. Para mim só os tons duros e gélidos - o comando perverso. Esta é a chave da minha prisão. Ela se indo, ficarei com nada. Até a chave ela leva. Ficarei sem o tempo que joguei fora, que deixei escapar das minhas mãos. Nenhum santo do dia poderá dar jeito. Não há mais como fazer mudanças ou renovações. Ficarei sem os refrãos que me atormentam, mas me ocupam. Eles preenchem meus vazios e me dão a ilusão de um tempo, de um arremedo de vida. Eles são meus. Começa-se pelo começo, ela vai repetir quando eu estiver bem perto. E termina-se pelo fim, diremos juntas. Hoje não. Não vou falar nada. Juro que vou ficar calada. E termina-se pelo fim.

3 comentários:

  1. Nossa! Que tensão. Conheço algumas mulheres que viveram, ou vivem, este nada. Sempre pensei que deve ser uma vida muito triste e vazia, sem objetivos, talvez mesmo apenas refrões vazios... Nunca tinha me perguntado o que seria delas após a morte da mãe... Nossa! Esta data deve ser tão desejada quanto temida.
    Você foi ao fundo da questão. Adorei!

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  2. Adorei Ruth!Frases curtasque mantém a tensão o tempo todo. Que vidas perdidas, não? E todas nós conhecemos "algumas" assim...Parabéns! Gosto muito do seu jeito de escrever.
    Daisy

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  3. Ruth,
    Você continua afiada, seca, rascante... Eta dureza. Está cada vez melhor. Beijo, querida. Lu

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