17 de abril de 2014

Bichos


Maria Tereza Albernaz
Eram dois jacarés grandes e dois menores. Em fila indiana, corpos esverdeados, desciam um morro lamacento. Embaixo, no mesmo morro, eu tentava subir. Apressada, fugia de um perigo maior. Escorregava, levantava, mas prosseguia, com os olhos fixos e atemorizados em direção aos jacarés. Acordei angustiada.  
Gravura da série "Cotidiano" de Wilma Martins
         Pela manhã, a lembrança de outros pedaços de sonhos que agitaram a minha noite foi logo dissipada, mas não esqueci os bichos rastejantes e a sensação assustadora da ameaça.
         Esta cena com bichos e eu tomada pelo medo me fez lembrar um episódio ocorrido no tempo em que, menina de sete, oito anos, morava no interior, em uma casa grande, cercada de jardim, pomar e quintal. Galinhas, patos, perus andavam soltos pelo terreno e porcos, presos em baias nos chiqueiros, precariamente trancados, muitas vezes escapuliam para passear. Eu convivia e transitava entre os animais domésticos sempre que brincava ao ar livre ou corria para pegar frutas.
         Por mais incomum que pudesse parecer, não existia animal de estimação na minha família. Tantas crianças e nenhum cachorro ou gato, nem mesmo um filhote. Talvez, por poucos dias, um porquinho da índia ou um pintinho, logo afastados de seu dono. Meus pais não gostavam de bichos em casa.
         Passamos a ter um animal quando um amigo de meu pai deu de presente para meu único irmão um cavalo e para nós, meninas, uma charrete puxada por uma mula. Não me recordo se escolhemos ou se os animais já vieram com seus nomes – Russinho e Margarida. São os únicos nomes de bichos que vêm de minha infância.
         Margarida tinha sua graça e gostávamos dela, mas nenhuma das meninas se apegou à mula. Não demorou muito e deixei meu lugar na charrete para as irmãs menores. Também já queria montar um cavalo. Mas eu não escolhia nada, o cavalo já chegava para mim selado e pronto para sair. Vários me serviram de montaria nestes tempos. Não gravei nenhum deles em especial, muito menos qualquer nome.

        Por conta do sonho angustiante dos jacarés, me lembrei de um episódio inesquecível passado na infância. Em uma manhã, com minha irmã mais próxima de idade, me  afastei um pouco da casa pelo quintal dos fundos, não sei para onde, nem porquê. Esse tipo de saída, quando estávamos sozinhas, não era permitida e andávamos com cautela e contido entusiasmo. Porém, não fomos longe. Me recordo com nitidez de nós duas correndo  desesperadamente de volta, perseguidas por um cachorro que latia alto. Não esqueço do vira-lata branco com manchas pretas, de uma sandália caída no caminho e dos vestidos levantados pela correria. Que susto. Que medo de ser apanhada por aquele cachorro. 
Ilustração de Rui de Oliveira para "Chapeuzinho vermelho" de Charles Perrault
         Hoje não tenho preferência, nem sou atraída por animal nenhum. E mais, sinto desconforto com a proximidade de qualquer bicho.
         Todavia, como lembranças do passado não produzem somente traumas, já adulta, em uma viagem a longíquo país, me senti tranquila e contente ao utilizar como transporte um elefante e um camelo – graças talvez à boa experiência com a Margarida, a mula que puxava a charrete, e aos cavalos montados na infância.
Ilustração de Poty para "Sagarana" de Guimarães Rosa

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