20 de janeiro de 2015

As quatro últimas das “Primeiras estórias”, de Guimarães Rosa (dropes)

Bia Albernaz
Há muitos bons trabalhos de interpretação das "Primeiras estórias" a serem pesquisados. Limito-me aqui a fazer quatro dropes, textos digestivos que pretendem apenas servir como convites para o verdadeiro banquete: a leitura deste livro encantador de GR.

DARANDINA
            De início, o texto deste conto parece meio complicado. Talvez o texto inteiro seja mesmo um tanto complicado, mas isso não tem tanta importância porque a gente logo se dá conta de que estamos diante de GR, ele mesmo um personagente, em pessoa, mexendo na língua, fazendo cócegas, propondo malabarismos. Já ouvi e dou uma certa razão a quem pergunta: mas por que ele tem de escrever tão difícil? De fato, GR é um virtuose, como um menino que solta as mãos do guidão e grita em nossa direção, chamando atenção para a sua proeza. Por fim, temos de consentir em parar os nossos afazeres para ouvir ou ver o feito, concordando: ele é mesmo muito bom!
            Vejamos a primeira frase do conto “Darandina”:
De manhã, todos os gatos nítidos nas pelagens, e eu em serviço formal, mas, contra o devido, cá fora do portão, à espera do menino com os jornais, e eis que, saindo, passa, por mim e duas ou outras três pessoas que perto e ali mais ou menos ocasionais se achavam, aquele senhor, exato, rápido, podendo-se dizer que provisoriamente impoluto.
            As informações estão ali, uma em cima da outra, constituindo-se como um tudo-ao-mesmo-tempo, um desafio à sintaxe, desaguando, ao final da longa frase, no surgimento daquele “senhor, exato, rápido”, e não no “senhor exato e rápido”. A diferença sutil transforma o que seria um adjetivo num substantivo. O exato, o rápido, porém, também é aquele que a colocação do advérbio “provisoriamente”, em sua relação com o adjetivo “impoluto”, permite supor: alguma coisa vai acontecer com este homem... A frase seguinte, que fecha o primeiro parágrafo, diz:
E, pronto, refez-se no mundo o mito, dito que desataram a dar-se, para nós, urbanos, os portentosos fatos, enchendo explodidamente o dia: de chinfrim, afã e lufa-lufa.
            E, pronto, fomos fisgados, porque agora sabemos: a estória começou. Eu, como leio para interpretar (triste hábito de professora e leitora-que-estuda-o-livro-que-lê-para-aprender-macetes-da-literatura), logo me pergunto: em que mito este homem (não o personagem, mas o autor, GR) irá agora se inspirar? Além disso, percebe-se: a estória se passa numa cidade e o narrador, em 1a pessoa, se coloca como um de “nós” (o que imediatamente levanta a possibilidade da existência de um outro). Por último, surge o uso um tanto abusivo da aliteração, mas de um jeito compreensível, poético e lúdico, com a expressão, para designar aquele dia em especial, como "de chinfrim, afã e lufa-lufa”.
            A continuação da estória, não comento. Só adianto que, principalmente nas primeiras páginas, há um monte de expressões muito mais estranháveis, como "Ugh, sioux!..."; de inversões, nas sequências naturalizadas dos termos das sentenças; de flexibilizações, até aquele momento inexistentes, em vocábulos como “ascensionalíssimo”; além de inúmeras fusões de radicais para a criação de palavras novas. Não sei se ao longo do texto realmente GR acalma os nervos dessa língua crispada ou se fui eu que comecei a relaxar e a ouvir todas as estranhezas com mais naturalidade. O que importa dizer aqui é que o texto flui, que a estória segue divertida e que, ao final da leitura de “Darandina”, nos vemos como mais um dos muitos que pararam na praça para ver o espetáculo daquele homem nada exato, mas ainda assim muito rápido.
            Comento agora a figura do homem sobre a palmeira. Como tenho muitas referências do mundo do cinema, pensei logo no “Tio” do filme “Amarcord”, lembram-se? Lembrei também do conto de Sérgio Sant'Ana, “Um discurso sobre o método”. Nos dois, há um personagem encarapitado: no primeiro caso, no alto de uma árvore; e no alto de um prédio, no segundo. Em ambos, assim como em “Darandina”, o sujeito em suspenso encontra-se em estado insurgente e mobiliza toda a atenção dos que se mantêm no chão. É um modo de interromper a razão, sair da lógica pedestre. (Lembrei-me ainda de outro exemplo literário desse tipo de personagem com a cabeça nas nuvens: “O barão nas árvores”, de Ítalo Calvino, muito bom!)
Cena de "Amarcord", de Federico Fellini (1973)

          Antes de terminar, lanço a questão: “o que quer dizer “Darandina”? No conto, uma frase chega perto da expressão, quando diz: “Tanto é certo que também divertia-nos. Como se ainda carecendo de patentear otimismo, mostrava-nos insuspeitado estilo. Dandinava.”, mas a semelhança entre os dois termo limita-se à sonoridade. Um não tem nada a ver com o outro. “Dandinava” assemelha-se a dândi, daquele que tem “insuspeitado estilo”, mas “Darandina”... Não resisto. Vou pesquisar e encontro: “Darandina” é “azáfama”, “lufa-lufa”, justamente! Nos sites de dicionários mais ou menos formais que se encontram na internet, como o Michaelis e o Aulete, encontrei que a definição vem de José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, com a indicação de que se trata de uma «formação expressiva» ou, conforme explica Nilce Sant´Anna Martins, em O Léxico de Guimarães Rosa (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001), “darandina” é uma palavra “fonicamente expressiva”. Não entendi bem, mas por conta do afã, fiquemos apenas com a definição de que, nesta estória, narra-se um “lufa-lufa”, em dia muito chinfrim. 

- Texto integral de “Darandina”:
- Texto integral de "Um discurso sobre o método", de Sérgio Sant'Anna:
http://joycecoisasminhas.blogspot.com.br/2012/09/u
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SUBSTÂNCIA
Sim, na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a roupa na corda.
            A primeira frase da estória começa com o assentimento, o colorido percebido pelo substantivo “polvilho” que equivale de modo absoluto à “coisa alva”, comparando-o com outras coisas também presentes na roça. Estamos na roça e vamos falar de polvilho, essa substância que se pulveriza nas mãos de Maria Exita, introduzida de supetão à estória. “Chamava-se Maria Exita”, nome em que ressoa a palavra “êxito”, de exitar, ainda que o som se confunda com o de “hesitar”.
Datada de maio, ou de quando? Pensava ele em maio, talvez, porque o mês mor – de orvalho, da Virgem, de claridades no campo. Pares se casavam, arrumavam-se festas; numa, ali, a notara: ela, flor.
            O conto inteiro tem esse tom de suspiro amoroso, de surpresa por estar amando, de eleição de alguém, daquela que é, e que - do jeito que ela é - é cortejada, buscada por ser “coisa alva”, com alma de polvilho, tão delicada que assusta, assim como a imaginada opinião da comunidade local a respeito da moça e de seu passado, desconhecido e conhecido, na medida exata para Sionésio, o fortificado, o dono da produção, apaixonar-se.
            Quem trouxe Maria Exita para a fazenda de Sionésio foi a velha Nhatiaga, cuja função no fabrico do polvilho é peneirar. E, como sempre, combinam-se os nomes e os destinos, na obra de GR, espalhando aqui e acolá pequenas chaves para a interpretação da estória. Tiago é “o que suplanta”. Nhatiaga, peneireira, é quem promove o encontro dos dois jovens que, para ficarem juntos, têm de passar o passado e os preconceitos pela peneira e, do processo, só aproveitando a coisa alva.
Giulia Gam, como Maria Exita, no filme "Outras estórias", de Pedro Bial (1999)
                 O cenário da estória é pintado com extremo cuidado. As imagens são cristalinas, de fácil compreensão (no livro, a sequência do agitado conto anterior, “Darandina”, para este, funciona muito bem). Em “Substância”, o leitor é suavemente levado a desfrutar do “quieto completo”, “sem eixo de murmúrio”. A marcação da narração, geralmente anunciada com aqueles simples “mais tarde”, “depois”, “aí”, “anos mais tarde” etc., aqui é cadenciada por um tempo não só medido pelo relógio mas pela singularidade de um momento: “Demorara para ir vê-la. Só no pino do meio-dia – de um sol do qual o passarinho fugiu”. O compasso é o de um minueto. Tem dança e contradança. “Teve dó dela – pobrinha flor.” (A função de Maria Exita na produção do polvilho era considerada a mais dura.) A evolução de passos andantes, vagarosos, marcados, é graciosa. Avanços e recuos marcam a visão de Sinésio sobre a moça que, a certa altura, é chamada de “iazinha”, palavra que, no diminutivo, esconde a grandeza que traz, pois “iá” é a abreviação de “iáiá”, “mãe” em iorubá, podendo também ser uma curta interjeição para um grande espanto, ao ver aquela “moça feita em cachoeira”.
           Os antagonistas na estória são os fantasmas de Sionésio, o narrador das forças retroativas em ação e das suas suplantações. Ele, o dono que procura “não abusar da vantagem”, o desejoso de realizar uma esperança “mais espaçosa” para Maria Exita, que estava “amando mais ou menos”, passa pelo ciúme, pela segurança de sabê-la pura por precisão e destino, pelo medo e pela raiva de ter medo, e também pela dúvida, diante da possibilidade de herança da loucura da mãe na filha e da impossibilidade de decifração dos “olhos sacis” de Maria Exita. Entre a doçura e o espanto, Sionésio não sabe como reagir à resposta da moça para a sua galante pergunta: “Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida?” “Só se for já…” Sinésio não tem recursos para interpretar o riso que acompanha essa resposta bate-pronta, clara e quente, “decerto sem a despropositada malícia, sem menospreço”. Mas já tudo alvava quando ele refaz a pergunta e ela lhe responde com a mesma presteza de antes: “Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você comigo, vem e vai?” “Vou, demais.”
            Peço desculpas se estrago a leitura contando todo o enredo aqui, mesmo que aos pedaços, na escrita um pouco desmesurada deste texto, que transforma o dever de apresentar a estória em puro deslumbramento. Por isso, não transcrevo aqui a última frase do conto. Ela é tão linda que tem de ser lida como deságue da estória-mãe. Se me permitem, acrescento apenas: a frase refere-se ao que acontece à sombra da Nhatiaga, ou seja, pela suplantação; é o ápice do espanto, só atingido por quem faz a leitura do conto por inteiro. Só assim acontecerá o “não-fato, o não-tempo, silêncio de sua imaginação”.

Texto integral de “Substância”
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               - TARANTÃO, MEU PATRÃO…
           Este conto também é em 1a pessoa. E, como nas demais “Primeiras estórias”, esta também trata de uma suspensão do cotidiano.
Suspa! – que me não dão tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossegos da cozinha.
            Suspenso o sossego, Vagalume se vê obrigado a seguir o seu “esmarte patrão”, que ficou “zureta” e se largou pelo sertão, à cavalo, “inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e acontecer”.
            Depois do patrão Sionésio, o fortalecido, em “Substância”, eis-nos diante de Tarantão, o atarantado. Esses dois não são os únicos patrões que protagonizam estórias no livro. Há também o Tio Man’Antônio, que doou suas terras aos empregados, em “Nada e a nossa condição”; e Seo Giovânio, o italiano, cujo antagonista é o empregado Irivalíni ou Reivalino, em “O cavalo que bebia cerveja”. Em todas essas estórias, o ponto de vista de GR mostra tentativas de romper com a distância social, fazendo com que interajam luta de classes e busca existencial.
            Em “Tarantão…”, de antemão se sabe: quem tem razão é o empregado. Mas a sua razão mostra-se em lusco-fusco, no trânsito entre o escuro e o claro, como bem assinala o seu apelido, “Vagalume”. O empregado, como narrador, encarna distância e proximidade para com o patrão e, na medida justa e comedida, sente piedade, diverte-se ou aborrece-se ao cumprir a missão de acompanhar a saga do Tarantão. Ante à inesperada adesão de seguidores que se prestam a acompanhar cegamente o seu patrão, surpreende-se. Em seu séquito, tem cangaceiro, sacristão, cigano, vagabundo, bobo, aventureiro e um parente seu a quem pediu socorro (“alcança a gente, sem falta, que nem sei adonde ora andamos, a não ser que é do Dom Demo esta empreitada!)”. Os apelidos dos seguidores sugerem a inserção de personagens espectrais, forjados por estórias mais ou menos conhecidas, das quais muitas vezes resta apenas o que trazem como alcunha: Dosmeuspés, Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, Gorro-Pintado e até um sem-nome, que o narrador acrescenta ser “nosso amigo”.
            A relação entre Vagalume e Tarantão, o tom picaresco na narrativa e o comportamento desmesurado de Tarantão sugerem a relação entre dom Quixote e Sancho Pança, e lembram também a formação do exército, no filme “O incrível exército de Brancaleone”. Mas GR dá uma boa mexida em todos estes arquétipos literários. Para começar, a narrativa quem faz é o “Sancho”, isto é, o Vagalume. Além disso, em uma virada rápida, o rumo dos acontecimentos toma um caminho inesperado.
Cena de "O incrível exército de Brancaleone", de Mario Monicelli (1966)
          De fato, rezam os manuais da boa escrita que o ritmo, no final de narrativas curtas, precisa aumentar. E isso, muitas vezes, faz com que os acontecimentos pareçam abruptos.
            Ao longo de dois terços da narrativa, Tarantão mostra-se – aos olhos de Vagalume – como um amalucado e também um endemoniado. Desde o início, fica-se sabendo que os motores de sua desabalada cavalgada eram o desejo de vingança e o ódio, como também um sentimento extático de ação demoníaca:
Ei, vamos, direto, pegar o Magrinho, com ele hoje eu acabo!” - bramou, que queria se vingar. O Magrinho sendo o doutor, o sobrinho-neto dele, que lhe dera injeções e a lavagem intestinal. – “Mato! Mato, tudo!” - esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí deu o grito, revelando a causa e verdade: - “Eu 'tou solto, então sou o demônio!.
Mas, no terço final da estória, acontece a virada. O ponto em que a estória começa mudar é o da entrada dos “palhaços destemidos” na cidade. Nesse momento o narrador, Vagalume, demonstra o que parece ser uma conversão à desrazão do patrão, aderindo à ação por ele liderada. Guarda ainda uma certa distância e proximidade, em sua antevisão do espanto dos moradores da cidade, ao ouvirem “a estrupida dos nossos cavalos”.  Nesse ponto, Vagalume revela sentir saudades do velho e ter os olhos embaciados. Assim, suas palavras, mais adiante, quase já não mostram distanciamento: “A gente nem um tico tendo medo, com o existido não se importava.” O velho ainda “jurava que matava. Pois, o demo!”, mas chegados ao local do ajuste, tudo muda. Naquele justo momento, uma festa acontecia na casa do médico, e o estupor dos convidados é rompido pelo discurso de Tarantão ("Eu pido a palavra”). Não vou contar o final, mas o arquétipo literário que então me surgiu foi o da chegada de Jesus com seus apóstolos, durante os festejos de bodas, na cidade de Cananeia, se a memória não me falha.
*** 
OS CIMOS
Veredas dos Gerais. Foto: Tom Alves (Revista Sagarana)
            A suspensão do ordinário pela loucura, o êxtase e a festa promovem o milagre da multiplicação ou do ressurgimento da alegria. Suspensão gera suspensão, o que nos leva ao cume da última das primeiras estórias. Nela, reencontra-se o menino da primeira narrativa (“Às margens da alegria”) no mesmo local, onde se constrói uma cidade, na presença dos mesmos personagens (o tio, a tia, o piloto do avião), mas sob circunstâncias bem diferentes. Sua visita, dessa vez, é de um “afastamento inverso”. Precisa se afastar da mãe que está muito doente, mas o pensamento e o sentimento não decolam junto com ele no avião. São quatro, os cimos desta estória: o primeiro é “O inverso afastamento”. Os demais são: “Aparecimento do pássaro”, “O trabalho do pássaro” e “O desmedido momento”. De cada cimo, em 3a pessoa e de modo onisciente, narram-se as vivências do menino, já que ele próprio não encontraria palavras que as nomeasse.
            As primeiras vivências referem-se à aliança que o menino cerra com o seu macaquinho da sorte, o brinquedo-fetiche, que se torna uma espécie de guia que lhe apoiará nos caminhos entre o apego e o desapego;  à lembrança da mãe, com o choro preso; ao questionamento, ainda que incipiente, do mal absoluto frente à existência do belo; e ao abandono do festivo, pelo sofrimento.
            No trecho denominado “Aparecimento do pássaro”, o menino vive a culpa, a raiva, “o coração dando muita pancada”, a vigília e “os desconhecidos pensamentos”. Mas é então que se achega ao alpendre, um passadiço, e tem a visão do tucano.
            Em “O trabalho do pássaro”, a vivências do menino são de medo, de espera pelo belo, descobrindo-o como um trabalho cotidiano, matutino, de fôlego. Nesse ponto, ele já se sente mais forte e sai para passear e a imagem do bonequinho empoeirado  catalisa sentimentos de esperança e de coragem experimentados pelo menino, o que lhe possibilita negar com veemência a proposta que lhe fizeram, de matar o tucano. Nesse cimo, “o voo do pássaro habitava-o mais”.
            Antes do último cimo, “O desmedido momento”, o menino fica sabendo pelo tio que a mãe está curada. Em sua volta para a casa, as últimas impressões fazem-no refletir sobre tudo o que passou em sua estadia ali e ele sente saudades do lugar que está deixando. Sente que a vida nunca pára. Ele perde o bonequinho e, antes da última palavra do conto – que naturalmente é “vida” – algo mais acontece, que reabre a porta da festa para o menino, mas sobre isso não conto mais.
            A estória de “Os cimos” parece se destinar sobretudo para os iniciados em GR. Sem dúvida, o conto será mais interessante para aqueles que saborearam cada estória, ou seja, todas as primeiras estórias até o final. O livro possui uma sequência. A décima-primeira estória, “O espelho”, divide o livro em duas metades harmônicas com a criação de correspondências entre as estórias de ambas as partes. Nessa artesania literária, percebe-se que o autor possui um projeto de expansão do horizonte de seus leitores, de expansão de valores, de desconserto do olhar sobre os fenômenos humanos, pelo refinamento dos sentidos, principalmente o da escuta.
            Há estórias nas quais se sente mais a intencionalidade deste projeto, em que a filosofia fricciona-se à literatura em linguagem poética, num diálogo estreito entre pensamento e sentimento. Traduzir essa aproximação de saberes em uma narrativa às vezes pesa, principalmente quando o pensamento torna-se mais abstrato e as palavras bebem de fontes menos literárias e mais filosóficas. Decerto o fim do livro “Primeiras estórias” nem sempre coincidirá com “Os cimos”. Pois, como este é um livro circular, é possível retomá-lo de que estória for.
            Para finalizar, relembro-me de um trabalho que uma vez escrevi sobre uma obra de Messiaen – o Catalogue des Oiseaux – em cujo final, em uma tentativa um tanto frustrada, eu descrevia primeiro o canto de dois tucanos, em torno das 17h, durante o verão; e, em seguida, o canto de um único tucano, neste mesmo dia, às 19h. O que concluí, em meu parco estudo do sistema de Messiaen, pode ser aplicado aqui, neste parágrafo conclusivo, não só com referência às quatro últimas das “Primeiras estórias”, de Guimarães Rosa, mas a todas elas como expressão de um projeto: a sonoridade, o assovio, a altura, a entonação, as frases ascendentes, as escaladas são rompantes de alegria expressos em som.

        Em "Primeiras estórias", GR como o tucano que aparece para o menino em “Os cimos” promove em nossos ouvidos uma festa de sons de cores diversas. Com ele, apreende-se que cantar e respirar são atos contíguos; que o silêncio é mais perceptível depois do canto; e que, na escuta atenta das estórias, é que se encontram as passagens entre o primário e o primordial.

Texto integral do livro “Primeiras estórias”:
xa.yimg.com/kq/groups/24137146/.../Os+Cimos+-+Guimarães+Rosa.pdf
Texto integral de "A ventura de Messiaen":
https://www.academia.edu/5953877/A_VENTURA_DE_MESSIAEN

14 de janeiro de 2015

A benfazeja

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Guimarães Rosa (em “Primeiras estórias)
          Sei que não atentaram na mulher; nem fosse possível. Vive-se perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se afaz ao devagar das pessoas. A gente não revê os que não valem a pena. Acham ainda que não valia a pena? Se, pois, se. No que nem pensaram; e não se indagou, a muita coisa. Para quê? A mulher – malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime não arrependida – e guia de um cego. Vocês todos nunca suspeitaram que ela pudesse arcar-se no mais fechado extremo, nos domínios do demasiado?
          Soubessem-lhe ao menos o nome. Não, pergunto, e ninguém o inteira. Chamavam-na de a Mula-Marmela, somente, a abominada. A que tinha dores nas cadeiras: andava meio se agachando; com os joelhos para diante. Vivesse embrenhada, mesmo quando ao claro, na rua. Qualquer ponto em que passasse parecia apertado. Viam-lhe vocês a mesmez – furibunda de magra, de esticado esqueleto, e o se sumir de sanguexuga, fugidos os olhos, lobunos cabelos, a cara; – as sombras carecem de qualquer conta ou relevo. Sabe-se se assustava-os seu ser: as fauces de jejuadora, os modos, contidos, de ensalmeira? As vezes, tinha o queixo trêmulo. Apanhem-lhe o andar em ponta, em sestro de égua solitária; e a selvagem compostura. Seja-se exato.
          E nem desconfiaram, hem, de que poderiam estar em tudo e por tudo enganados? Não diziam, também, que ela ocultava dinheiro, rapinicado às tantas esmolas que o cego costumava arrecadar? Rica, outromodo, sim, pelo que do destino, o terrível. Nem fosse reles feiosa, isto vocês poderiam notar, se capazes de desencobrir-lhe as feições, de sob o sórdido desarrumo, do sarro e crasso; e desfixar-lhe os rugamentos, que não de idade, senão de crispa expressão. Lembrem-se bem, façam um esforço. Compesem-lhe as palavras parcas, os gestos, uns atos, e tereis que ela se desvendava antes ladina, atilada em exacerbo. Seu antigo crime? Mas sempre escutei que o assassinado por ela era um hediondo, o cão de homem, calamidade horribilíssima, perigo e castigo para os habitantes deste lugar. Do que ouvi, a vocês mesmos, entendo que, por aquilo, todos lhe estariam em grande dívida, se bem que de tanto não tomando tento, nem essa gratidão externassem. Tudo se compensa. Por que, então, invocar, contra as mãos de alguém, as sombras de outroras coisas?
        O cego pedia suas esmolas rudemente. Xingava, arrogava, desensofrido, dando com o bordão nas portas das casas, no balcão das vendas. Respeitavam-no, mesmo por isso, jamais se viu que o desatendessem, ou censurassem ou ralhassem, repondo-o em seu nada. Piedade? Escrúpulo? Mais seria como se percebessem nele, de obscuro, um mando de alma, qualidade de poder. Chamava-se o Retrupé, sem adiante. Como a Mula-Marmela, os dois, ambos: uns pobres, de apelido. E vocês não veem que, negando-lhes o de cristão, comunicavam, à rebelde indigência de um e outra, estranha eficácia de ser, à parte, já causada?
          Ao Retrupé com seu encanzinar-se, blasfemífero, e prepotente esmolar, ninguém demorava para dar dinheiro, comida, o que ele quisesse, o pão-por-deus. – "Ele é um tranca!" – o cínico e canalha, vilão. Mas só, às vezes, alguém, depois e longe, se desabafava. O homem maligno, com cara de matador de gente. Sobre os trapos, trazia um facão, pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E gritava, com uma voz de cão, superlativa.
Se alguém falasse, ou risse, ele parava, esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo; não sabia nem podia.
          Tinha medo, também; disso, vocês nunca desconfiaram. Temia-a, a ela, à mulher que o guiava. A Mula-Marmela chamava-o, com simples sílaba, entre dentes, quase esguichado um "ei" ou "hã" - e o Retrupé se movia de lá, agora apalpante, pisando com ajuda; balançava o facão, a bainha presa a um barbante, na cintura. Sei que ele, leve, breve, se sacudira. Desciam a rua, dobraram o beco, acompanharamse por lá, os dois, em sobrossoso séquito. Rezam-se ódio. Lé e cré, pelas ora voltas, que qual, que. tal, loba e cão. Como era que ficavam nesse acordo de incomunhão, malquerentes, parando entre eles um frio figadal? O cego Retrupé era filho do finado marido dela, o Mumbungo, que a Mula-Marmela assassinara.
        Vocês sabem, o que foi há tantos anos. Esse Mumbungo era célebre-cruel e iníquo, muito criminoso, homem de gostar do sabor de sangue, monstro de perversias. Esse nunca perdoou, emprestava ao diabo a alma dos outros. Matava, afligia, matava. Dizem que esfaqueava rasgado, só pelo ancho de ver a vítima caretear. Será a sua verdade? Nos tempos, e por causa dele, todos estremeciam, sem pausa de remédio. Diziam-no maltratado do miolo. Era o punir de Deus, o avultado demo - o "cão". E, no entanto, com a mulher, davam-se bem, amavam-se. Como?. O amor é a vaga, indecisa palavra. Mas, eu, indaguei. Sou de fora. O Mumbungo queria à sua mulher, a Mula-Marmela e, contudo, incertamente, ela o amedrontava. Do temor que não se sabe. Talvez pressentisse que só ela seria capaz de destruí-lo, de cortar, com um ato de "não", sua existência doidamente celerada. Talvez adivinhasse que em suas mãos, dela, estivesse já decretado e pronto o seu fim. Queria-lhe, e temia-a - de um temor igual ao que agora incessante sente o cego Retrupé. Soubessem, porém, nem de nada. A gente é portador.
          O cego Retrupé é grande, forte. Surge, de lá, trazido pela Mula-Marmela agora se conduz firme, não vacila. Dizem que bebe? Vejam vocês mesmos, porém, como essas petas escondem a coisa singular. Todos sabem que ele não bebia, nunca, porque a Mula-Marmela não deixava. Nem carecia de falar-lhe a paz da proibição: dava-lhe, apenas, um silêncio, terrível. E ele cumpria, tinha a marca da coleira. Curtia afogados desejos, indecifrava-o. Aspirava, à. porta dos botequins, febril, o espírito das cachaças. Seguia, enfim, perfidiado e remisso, mal-agradecido, raivoso, os dentes do rato rangiam-no. Porque, ele mesmo, não sabendo que não havia de beber, o que não fosse – ah, se! – o sangue das pessoas. Porque sua sede e embriaguez eram fatais, medonhas outras, para lá do ponto. Seria ele, realmente, uma alma de Deus, hão certeza? Ah, nem sabem. Podia também ser de outra essência – a mandada, manchada, malfadada. Dizem-se, estórias. Assim mesmo no tredo, estado em que tateia, privo, malexistente, o que é, cabidamente, é o filho tal-pai-tal; o "cão", também, na prática verdade.
            O pai, o Mumbungo, se vivia bem com a mulher, a Mula-Marmela, e se ela precisava dele, como os pobres precisam uns dos outros, por que, então, o matou? Vocês nunca pensaram nisso, e culparam-na. Por que hão de ser tão Infundados e poltrões, sem espécie de perceber e reconhecer? Mas, quando ela matou o marido, sem que se saiba a clara e externa razão, todos aqui respiraram, e bendisseram a Deus. Agora, a gente podia viver o sossego, o mal se vazara, tão felizmente de repente. O Mumbungo; esse, foi o que tivera de se revoltar a um outro lugar, foi como alma que caiu no inferno. Mas não a recompensaram, a ela, a Mula-Marmela ao contrário: deixaram-na no escárnio de apontada à amargura, e na muda miséria, pois que eis. Matou o marido, e, depois, própria temeu, forte demais, o pavor que se lhe refluía, caída, dado ataque, quase fria de assombro de estupefazimento, com o cachorro uivar. E ela, então, não riu. Vocês, os que não a ouviram não rir, nem suportam se lembrar direito do delírio daquela risada.
            Se eu disser o que sei e pensam, vocês inquietos se desgostarão. Nem consintam, talvez, que eu explique, acabe. A mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora – da obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus escondidos corações, imploravam. Só ela mesma, a Marmela, que viera ao mundo com a sina presa de amar aquele homem, e de ser amada dele; e, juntos, enviados. Por quê? Em volta de nós, o que há é a sombra mais fechada – coisas gerais. A Mula-Marmela e o Mumbungo, no fio a fio de sua afeição, suspeitassem antecipadamente da sanção, e sentença? Temia-a, ele, sim, e o amor que tinha a ela colocava-o à mercê de sua justiça. A Marmela, pobre mulher, que sentia mais que todos, talvez, e, sem o saber, sentia por todos, pelos ameaçados e vexados, pelos que choravam os seus entes parentes, que o Mumbungo, mandatário de não sei que poderes, atroz sacrificara. Se só ela poderia matar o homem que era o seu, ela teria de matá-lo. Se não cumprisse assim – se se recusasse a satisfazer o que todos, a sós, a todos os instantes, suplicavam enormemente – ela enlouqueceria? A cor do carvão é um mistério; a gente pensa que ele é preto, ou branco.
          E outra vez vejo que vêm, pela indiferente rua, e passam, em esmolambos, os dois, tão fora da vida exemplar de todos, dos que são os moradores deste sereno nosso lugar. O cego Retrupé avança, fingindo-se de seguro, não dá à Mula-Marmela a ponta do bordão para segurar, ela o gula apenas com sua dianteira presença, ele segue-a pelo jeito, pelo se deslocar do ar – como em trasvoo se vão os pássaros; ou o que ele percebe à sua frente é a essência vivaz da mulher, sua sombra-da-alma, fareja-lhe o odor, o lobum? Notem que o cego Retrupé mantém sempre muito levantada a cabeça, por inexplicado orgulho: que ele provém de um reino de orgulho, sua maligna índole, o poder de mandar, que estarrece. E ele traz um chapéu chato, nem branco nem preto. Viram como esse chapéu lhe cai muitas vezes da cabeça, principalmente quando ele mais se exalta, gestilongado abarbarado e maldoso, reclamando com urgência suas esmolas do povo. Mas, notaram como é que a Mula-Marmela lhe apanha do chão o chapéu, e procura limpá-lo com seus dedos, antes de lho entregar, o chapéu que ele mesmo nunca tira, por não respeitar a ninguém? Sei que vocês não se interessam nulo por ela, não reparam como essa mulher anda, e sente, e vive e faz. Repararam como olha para as casas com olhos simples, livres do amaldiçoamento de pedidor? E não põe, no olhar as crianças, o soturno de cativeiro que destinaria aos adultos. Ela olha para tudo com singeleza de admiração. Mas vocês não podem gostar dela, nem sequer sua proximidade tolerem, porque não sabem que uma sina forçosa demais apartou-a de todos, soltou-a. Apara, em seu de-cor de dever, o ódio que deveria ir só para os dois homens. Dizem-na maldita: será; e? Porém, isto, nunca mais repitam, não me digam: do lobo, a pele; e olhe lá! Há sobrepesos, que se levam, outros, e são a vida.
        Mas, com tanto, está que ninguém sabe o que entre os dois verdadeiramente se compassa – do desconchavo e desacerto de assim perambularem, torvos, no monótono, em farrapos, semoventes: do que vocês apenas se divertem, tiram graças e chocarra. Se o que os há é apenas embruxar e odiar, loba contra cão, ojeriza e osga; convocam demônios? Ou algum encoberto ultrapassar -posto o que também há: uma irmandade das almas más, alcatéia e matilha? Não, não há ódio; engano. Ela, não. Ela cuida dele, guia-o, trata-o - como a um mais infeliz, mais feroz, mais fraco. Desde que morreu o homem-marido, o Mumbungo, ela tomou conta deste. Passou a cuidá-lo, na reobriga, sem buscar sossego. Ela não tinha filhos. – "Ela nunca pariu.. – vocês culpam-na. Vocês, creio, gostariam de que ela também se fosse, desaparecesse no não, depois de ter assassinado o marido. Vocês odeiam-na, destarte.
            Mas, se ela também se tivesse matado, que seria de vocês, de nós, às muitas mãos do Retrupé, que ainda não estava cegado, nos tempos; e que seria tão pronto para ser sanguinaz e cruel-perverso quanto o pai - e o que renega de Deus – da pele de Judas de tão desumana e tremenda estirpe, de apavor?
         Seus os-olhos, do Retrupé, ainda eram sãos: para espelhar inevitável ódio, para cumprir o dardejar, e para o prazer de escolher as vítimas mais fáceis, mais frescas. Só aí, se deu que, em algum comum dia, o Retrupé cegou, de ambos aqueles olhos. Souberam vocês como foi? Procuraram achar? Sabem, contudo, que há leites e pós, de plantas, venenos que ocultamente retiram, retomam a visão, de olhos que não devem ver. Só com isso, sem precisão de mais, e já o Retrupé parava, um ser quase inócuo, um renunciado. E vocês, bons moradores do lugar, ficavam defendidos, a cobro de suas infrenes celeradezas. Talvez, ele não precisasse de danado morrer como o Mumbungo, seu pai. Talvez, me pergunto, o próprio Mumbungo descarecesse de ser morto, se acaso, por ponto, alguém pensasse antes nessas ervas cegadoras, ou soubesse já então de sua aplicação e efeito. Se assim, pois, haver-se-ia agora a Mula-Marmela guiando a dois, pelas ruas, e deles com terrível dever-de-amor cuidando, como se fossem os filhos que ela queria, os que ela não pariu nem parirá, nunca – o dócil morto e o impedido cego. A pacto de tolher-lhes as ainda possíveis malícias, e dar-lhes, como em sua antiquíssima linguagem ela diz: gasalhado e emparo. Vocês, porém, fio que nem nunca lhe escutaram a voz – à surda.
            Também o cego Retrupé se intimida dessa voz, rara tanto. Sabem o que é tão estúrdio? – que, mesmo um que não vê, sabe que precisa de apartar a cabeça: ele faz isso, para não encarar com a mulher odiosa. O cego Retrupé volta-se de frente para o ponto onde estão as sensatas, quietas pessoas, que ele odeia em si, pelo desprezamento de todos, na pacatez e concórdia. Ele precisava de matar, para a fundo se cumprir, desafogado e bem. Mas, não pode. Porque é cego, apenas. O cego Retrupé, sedicioso, então, insulta, brada espumas, ruge – nas gargantas do cão. Sabe que é de outra raça, que vem do ainda horroroso, informe; que ainda não entendeu a mansidão, pelo temor? Então, o cego Retrupé esbarra com o impoder da cegueira; agora, ele não pode alcançar ninguém, se a raiva mais o cega; pode? O cego Retrupé cochicha consigo – ele ofende o invisível. Para ele, graças à cegueira, este nosso mundo já é algum além. E se assim não fosse? Alguém seria capaz de querer ir pôr o açamo no cão em dana? E vocês ainda podem culpar esta mulher, a Marmela, julgá-la, achá-la vituperável? Deixem-na, se não a entendem, nem a ele. Cada qual com sua baixeza; cada um com sua altura.
            Saibam ver como ela sabe dar descargo de si. Sim, ela é inobservável; vocês não poderiam. Mas, reparando com mais tento, veriam, pelo menos, como ela não é capaz de pegar estouvadamente em alguma coisa; nem deixa de curvar-se para apanhar um caco de vidro no chão da rua, e pô-lo de lado, por perigoso. Ela abaixa assaz os olhos. Pelo marido, seu morto; pode, porque o matou sem inúteis sofrimentos. Se não o matasse, ele se teria condenado ainda mais? Ela afasta do botequim o cego Retrupé, turbador, remisso e bulhento. Só este é o seu, deles, diálogo: um pigarro e um impropério. Ele a segue, caninamente. Vão-se; nunca nenhum de vocês os observou, a gente não consegue nem persegue os fios, feixes dos fatos. Vivem em aterrador, em coisa de silêncio, tão juntos, de morar em esconderijos. A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas.
            Diziam que, em outro tempo, ao menos, entre eles teria havido alguma concubinagem. Cambonda? Vocês sabem que isso é falso; e como a gente gosta de aceitar essas simples, apaziguadoras suposições. Sabem que o cego Retrupé, canhim e discordioso, ela mesma o conduz, paciente, às mulheres, e espera-o cá fora, zela para que não o maltratem. Isto, porém, faz tempo. Hoje ele está envelhecido, virou em macilento, grisalho, as cãs assentam-lhe bem, quando o chapéu cai. Estes tempos, durante que deixamos de conhecê-los e averiguá-los. O cego Retrupé anda meio caído, amorviado, em escanifro e escanzelo. Parece que, ao mesmo passo, seu modo de medo da Mula-Marmela muda e aumenta. Fraqueia-lhe também a fúria alastradora e áspera de viver: não exerce com o mesmo entono puxar pelo seu direito - o feroz direito de pedir.
         Parece que seu temor fazia-o murmurar queixumes, súplicas, à Mula-Marmela. E, no entanto, ela cada dia para com ele mais se abranda, apiedada de seu desvalor. Mas ele não crê, não pode saber, não confia dela, nem da gente. O entressentir-se, entre as pessoas, vem de regra com exageros, erro, e retardo. Ele sussurra disfarçada e impessoalmente seus pedidos de perdão; vocês notaram? A Mula-Marmela ouvia-o, sem parecer que. Fugia de olhá-lo. Sei, vocês não notaram, nada. E, mesmo, agora, vocês se sentem um pouco mais garantidos, tranquilos estamos. É de crer que, breve, estaremos livres do que não amamos, do que danadamente nos enoja, pasma.
          Conta-se-me que ele quis matá-la. Em hora em que seu medo se derramou maior, saber-se-á lá por quê? Tido que já se estava maltreito, quando adoeceu, mal, de febre acesa. Sentara-se à beira da rua, para arquejar. De repente, levantou-se, sem bordão, estorvinhado, gritou, bramou: exaltado como um cão que é acordado de repente. Sacou o facão, tacava-o, avançava às doidas, às mesmo cegas, tentando golpeá-la, em seu desatinado furor. E ela, erguida onde estava, permaneceu, não se moveu, não se intimidava? Olhava na direção do não. Se ele acertasse, poderia em carnes trucidá-la. Mas, aos poucos, acreditou que o facão não a encontraria nunca, sentiu-se desamparado demais e sozinho. Temeu, de todo em pé. O facão lhe caiu da mão. Seu medo não tinha olhos para encher.
          Parece que gemeu e chorou: - "Mãe... Mamãe... Minha mãe! ..." – esganiçado implorava, quando retombou sentado no chão, cessada a furibundância; e tremia estremecidamente, feito os capins dos pastos. Estava já no fino do funil, é de crer que. A Mula-Marmela, ela veio, se chegou, sem dizer nem o sussurrar. Apanhou-lhe o chapéu, limpou-o, tornou-o a pôr na cabeça dele, e trouxe também o facão, recolocou-o em sua cintura, na velha bainha. Ele, com o se apequenar de sofrer e tremer, semelhava um bicho do fundo da floresta. Diz-se que ela teria lágrimas nos olhos; que falou, soturna de ternuras terríveis – "Meu filho..." E olhou para uma banda, disse a alguma coisa mais, como se falando ao outro; soluçava, também, pelo Mumbungo, seu reconduzido marido, por sua parte, de seu ato. Disso, vocês não quererão saber, são em-diabas confusões, disso vocês não sabem. E, se, para quê? Se ninguém entende ninguém; e ninguém entenderá nada, jamais; esta é a prática verdade.
           Sim, os dois, ficaram, até ao anoitecer, e pela noite entrada, naquela solidão próxima, numa beira de cerca. Alguém os acudiu? Diz-se que ele padecia uma dor terrivelmente, de demasiado castigo, e uma sufocação medonha de ar, conforme nem por uma esperança ainda nem não agoniava. Só estrebuchava. Não viram, na madrugada, quando ele lançou o último mau suspiro. Sim, mas o que vocês creem saber, isto, seriamente afirmam: que ela, a Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi quem esganou estranguladamente o pobre-diabo, que parou de se sofrer, pelos pescoços; no cujo, no corpo defunto, após, se viram marcas de suas unhas e dedos, craváveis. Só não a acusaram e prenderam, porque maior era o alívio de a ver partir, para nunca, daí que, silenciosa toda, como era sempre, no cemitério, acompanhou o cego Retrupé às consolações. Vocês, distantemente, ainda a odiavam?
          E ela ia se indo, amargã, sem ter de se despedir de ninguém, tropeçante e cansada. Sem lhe oferecer ao menos qualquer espontânea esmola, vocês a viram partir: o que figurava a expedição do bode – seu expiar. Feia, furtiva, lupina, tão magra. Vocês, de seus decretantes corações, a expulsaram. Agora, não vão sair a procurar-lhe o corpo morto, para, contritos, enterrá-lo, em festa e pranto, em preito? Não será custoso achá-lo, por aí, caído, nem légua adiante. Ela ia para qualquer longe, ia longamente, ardente, a só e só, tinha finas pernas de andar, andar. É caso, o que agora direi. E, nunca se esqueçam, tomem na lembrança, narrem aos seus filhos, havidos ou vindouros, o que vocês viram com esses seus olhos terrivorosos, e não souberam impedir, nem compreender, nem agraciar. De como, quando ia a partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando: – se para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com quem ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária? Pensem, meditem nela, entanto.
Oswaldo Goeldi. Destino. s/d.

Notas sobre o narrador em “A benfazeja”, de Guimarães Rosa, no livro "Primeiras estórias"

O narrador como advogado de defesa do estigmatizado
       Francysco Pablo Gonçalves analisa o conto do ponto de vista da psicologia social, referendando-se no conceito de estigma delineado por Goffman. Sinais corporais como cicatrizes que marcam o escravo, o criminoso ou o traidor e os tornam “ritualmente poluídos” e intocáveis, especialmente em lugares públicos, caracterizam tradicionalmente o estigmatizado. Porém, na atualidade, o termo ampliou-se e há estigmas que se ancoram em “culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade”, inferidas a partir de relatos de “distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical”. E, além desses, há estigmas de “raça, nação e religião”, que podem “contaminar por igual todos os membros de uma família”. (GOFFMAN, 1988, p. 14)
            “Por definição, é claro, [nós, normais,] acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original.” (GOFFMAN, 1988, p. 14-15)
            Formado em Direito, o autor recorre ainda à criminologia (!), de modo a mostrar como a rotulação de pessoas acaba por soar verdadeira a essas mesmas pessoas. Uma citação sua comenta essa tendência estudada pelos criminólogos (sim, o termo é este): “De maneira bastante cruel, pode ser dito que, à medida que o mergulho no papel desviado cresce, há uma tendência para que o autor do delito defina-se como os outros o definem.” (SHECAIRA, 2008, p. 288)
             “A mulher fiel do paciente mental, a filha do ex-presidiário, o pai do aleijado, o amigo do cego, a família do carrasco, todos estão obrigados a compartilhar um pouco o descrédito do estigmatizado com o qual eles se relacionam.” (GOFFMAN, 1988, p. 39) 
            Coerente com essa abordagem, o autor aproxima o tom do narrador da “A benfazeja” ao de um advogado de defesa cujo questionamento centra-se nas imposições e imposturas sociais  da comunidade frente à Mula-Marmela, minimizando o crime por ela cometido. A perspectiva do narrador, ao acompanhar as interações entre os moradores do povoado e ao prestar especial atenção na Benfazeja, é a “de fora” (“de fora da sociedade e de seus valores”, observa o autor do artigo), ainda que, ao longo da narrativa, ele oscile entre o dentro e o fora da comunidade. Por conta desse seu trânsito entre diferentes pontos de vista, ele se permite jogar com a retórica, fazendo uso da exortação e da pressuposição, em seu relato do caso. Seu discurso implicitamente sugere: “se eu que sou de fora  sei, você que é do povoado deve saber”. 
            Como o narrador, o autor do artigo converte-se em seu defensor, e advoga que, mesmo enlouquecida, a Mula-Marmela “permanece consciente”, ao se retirar com o cachorro nas costas. “Aos olhos da comunidade, há pouca ou nenhuma diferença entre a Benfazeja lupina e magra e o cachorro morto e meio já podre. Diríamos até que ambos são o mesmo ser indesejável, do qual a sociedade deve ser higienizada."
           Destacando as semelhanças entre as obras de Goffman e de Foucault, cita-se o último: “Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para os que os excluem.” (FOUCAULT, 2010, p. 6-7)
Os estigmas da benfazeja: mediando um diálogo entre Guimarães e Goffman. Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 1., n. 1., 2012.
Referências: FOUCAULT, Michel. Historia da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2010.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2008.
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             O mito das Eumênides e o narrador tragediógrafo
          Não menos interessante é o artigo de Adilson dos Santos (“A atualização de Eumênides, de Ésquilo, em ‘A benfazeja’, de Guimarães Rosa”). Para Santos, o conto de GR retoma o mito das “Erínias/Eumênides”, referendando-se em sua interpretação trágica por Ésquilo, na trilogia “Oréstia” (458 a.C.), sobretudo na última peça, “Eumênides” ou “Deusas Benévolas”. A partir dela se sabe que as “Erínias” eram “deusas virgens, violentas e de aspecto disforme que tinham por função punir os crimes cometidos entre consanguíneos”.
      Erínias são divindades de uma época em que figuras femininas dominavam a teogonia (matriarcado), diferentemente do patriarcado posterior do Olimpo. A peça mostra como as Erínias passaram a incorporar a função de castigar toda espécie de excesso dos homens (hybris), tornando-se as deusas benfazejas ou Eumênides.
           Também a Mula-Marmela, “vítima de um cruel e terrível destino que lhe nega o livre arbítrio do ego”, acaba por assumir, em seu povoado, a condição de bode expiatório. Na Grécia Antiga, transferia-se ao bode expiatório (pharmakós) a responsabilidade por anormalidades que perturbavam a ordem social. Como prática de purificação e cura para a cidade, em casos de calamidades, sacrificava-se o homem mais feio de todos.
         Em “A benfazeja”, menciona-se a presença do trágico logo no primeiro parágrafo quando o narrador, ao questionar os moradores do povoado, refere-se aos “domínios do demasiado”. Como heroína trágica, a Mula-Marmela  cumpre o seu destino e por ele despende todas as suas forças, cristalizando pulsões de morte e de castigo, a fim de limpar o povoado da “pestilência” daqueles que ultrapassam os limites do bom convívio social, sejam eles amados ou não. Tal como as Erínias, a Mula-Marmela também é implacável, horrível, impossível de ser contemplada. Mas, “assim como as Eumênides, Mula-Marmela se caracteriza como uma lei externa, uma ministra da justiça que, através do temor e mansidão, contém nos limites os indivíduos que os queiram ultrapassar”.
          Como uma mula, a personagem é estéril e carrega fardos, “suporta pesos que não são os seus”. Sendo  “Marmela”, é fruto ácido e adstringente usado na preparação de doces. Abstendo-se de sua subjetividade, nas palavras de Santos, “abre mão da felicidade de estar ao lado de quem amava para alcançar a graça de promover o bem a uma quantidade maior de pessoas”. Cegando o enteado, anula os seus atos, mas também lhe dá a possibilidade de permanecer junto ao vilarejo e, depois do sacrifício final, chama-o “Meu filho...”. Também as Eumênides passam a adotar os habitantes de Atenas como seus filhos, sendo responsáveis tanto pela punição de criminosos quanto pela geração da vida.
       Tal como o artigo anterior, este também faz menção ao papel do narrador em “A benfazeja”. Sendo “de fora”, “tudo o que sabe acerca da personagem obteve através do relato dos habitantes do vilarejo. Sua condição de estrangeiro lhe garante uma visão menos comprometida dos fatos”. Para Santos, o narrador é um tragediógrafo. Com o relato de crimes e agressões familiares, busca atrair a atenção e emocionar os seus interlocutores. Com palavras indignadas e não com atos, apresenta a sua interpertação trágica do caso. A partir de uma conversa, pelo domínio da argumentação, da narração e do juízo, em tempo presente, pela rememoração de acontecimentos em uma ordem estabelecida por ele, o narrador transforma a história da Mula-Marmela num caso exemplar a ser transmitido às próximas gerações.
         “Para o vilarejo, os atos de Mula-Marmela são violações de interditos. Já, para o narrador, não violar o interdito é que se caracteriza como um crime. […] Tal como acontece na terceira tragédia que compõe a Oréstia, a imagem da personagem é reabilitada através de um discurso marcadamente persuasivo. Em "Eumênides", Atena cuida para que a Democracia não seja intimidada pelas Eríneas e tece para elas um longo discurso, induzindo-as a assumirem a nova condição de Eumênides como uma honra.  "Com isso, a deusa garante a presença amedrontadora de tais divindades, que passam, então, a assumir uma função de extrema importância dentro do novo direito da pólis": a responsabilidade pela observância da justiça, cuidando, com antecedência, de evitar o crime.
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line). Ano 03 Número 01 Jul-Dez 2011.
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Imagem de leproso na idade média
            Da aparência à vidência ou a sabedoria do narrador onisciente
        Por fim, vale destacar alguns pontos extraídos do artigo “O narrador persuasivo: Um olhar benfazejo”, de Iolanda Cristina dos Santos. Em seu texto, afirma-se o narrador como um “pedagogo”, ou melhor, como um sábio focado na apreensão da realidade pela superação da aparência. Tal como os moradores, acometidos pela cegueira em relação às reais motivicões da Mula-Marmela, somos nós próprios, os leitores, convidados a nos ver e a questionar o que vemos. Nesse sentido, o distanciamento do narrador é essencial.
          Otimista, a autora do artigo afirma que  é possível deslocar pelo menos um pouco a membrana que turva a nossa visão. Com isso, belas paisagens e conceitos redimensionados surgirão.  Afirma também que o elemento trágico dialoga com a perplexidade nesta história. É a perplexidade do narrador ante o “fato de a protagonista não ter sido notada no que ela tem de melhor”, e não a crueldade dos seus atos, que o leva a contar sua história
      Iolanda dos Santos lembra que na obra de GR, a crueldade, as deficiências, apresentam-se como possibilidades de instaurar esse sentimento de perplexidade, imprescindível para uma abertura e reconhecimento “de aspectos pouco valorizados e desejáveis no ser humano”. Citando Costa Lima, a autora destaca que " O aleijão é menos prova acusatória do caráter cruel da vida que indício do que nela perplexamente desconhecemos." (LIMA, 1991, p. 506)
      Contrapondo-se ao desprezo pelo narrador onisciente, a autora elogia a sua postura “intrusa”: “Parece já ter abarcado inúmeras situações humanas, e que, por isso, agora vem nos ensinar a olhar”. Sob a forma de um “jogo de velar e desvelar”, ele se dirige desde a primeira frase do conto ao leitor (identificado aqui com os moradores do vilarejo), “introduzindo-o na problemática [do quê e do como] vai contar: "SEI QUE NÃO atentaram na mulher”, fazendo-nos “ver que o papel do narrador, muito mais que simplesmente narrar, é tocar em algumas camadas inapreensíveis pelo olhar apressado e comum”. […] “E, em termos formais, o que temos é uma reincidência de verbos ligados ao sentido da visão, pois estão sempre presentes formas verbais como "revê", "viam-lhe", "notar", "vêem", "viram", "notem", "notaram", "reparam", "olha", "saibam ver", "veriam", "os observou", dirigidas ao leitor desavisado.”
        O foco constante da voz narrativa na Mula-Marmela combina-se à força do discurso subjetivo do narrador. Graças a essa coragem em se mostrar, “podemos nos libertar das armadilhas do enredo e, paralelamente à fruição deste, refletirmos sobre os modos com que cada um realiza as suas possibilidades e impossibilidades de ser. Não fossem as chamadas do narrador, o enredo nos levaria, e perderíamos a oportunidade de refletirmos sobre o narrado”. Bendita astúcia da narração, “que nos leva a uma fruição mais astuta do texto”
Disponível em http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa11/v1/iolandacristina.html 
Referência: LIMA, Luiz Costa. “O mundo em perspectiva: Guimarães Rosa”. In: COUTINHO, Eduardo Faria. Guimarães Rosa . 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 500-513. 
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Ilustração de Gustav Tenggren para "João e o pé de feijão"
Assim que terminei a leitura do conto “A benfazeja”, de Guimarães Rosa, pensei: “aquela história que queria escrever, explorando a alma de uma mulher de ogro, já foi escrita, veja só, ei-la aqui”. Mas mesmo assim, sinto-me compelida a reler alguns contos de fadas com ogros: “O Barba azul”, “O ogro com penas” (compilado por Italo Calvino), além de “O pequeno polegar” e “João e o pé de feijão”. Em alguns deles, a mulher é pouco fiel e mostra-se como a antítese do marido.  É de Diana Lichtenstein (“Fadas no divã: psicanálise das histórias infantis”) a analogia da mulher do ogro, em “João e o pé de feijão”, com Reia, esposa de Cronos. Tal como a deusa, a ogra cuida do menino, não lhe negando a verdade de que o “pai” é um rival perigoso e temível. Segundo Lichtenstein, essa tensão ou contradição revelada pela mulher entre o seu homem e o seu filho é essencial para que a criança apreenda: “ninguém é um complemento perfeito para o outro”. Fica, por fim, a curiosidade: Simone de Beauvoir, em “O segundo sexo”, identifica a mulher de ogro com a fêmea do louva-deus: “o Outro privilegiado através do qual o sujeito se realiza”.
Reia e Cronos