14 de janeiro de 2015

Notas sobre o narrador em “A benfazeja”, de Guimarães Rosa, no livro "Primeiras estórias"

O narrador como advogado de defesa do estigmatizado
       Francysco Pablo Gonçalves analisa o conto do ponto de vista da psicologia social, referendando-se no conceito de estigma delineado por Goffman. Sinais corporais como cicatrizes que marcam o escravo, o criminoso ou o traidor e os tornam “ritualmente poluídos” e intocáveis, especialmente em lugares públicos, caracterizam tradicionalmente o estigmatizado. Porém, na atualidade, o termo ampliou-se e há estigmas que se ancoram em “culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade”, inferidas a partir de relatos de “distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical”. E, além desses, há estigmas de “raça, nação e religião”, que podem “contaminar por igual todos os membros de uma família”. (GOFFMAN, 1988, p. 14)
            “Por definição, é claro, [nós, normais,] acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças, tais como as de classe social. Utilizamos termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original.” (GOFFMAN, 1988, p. 14-15)
            Formado em Direito, o autor recorre ainda à criminologia (!), de modo a mostrar como a rotulação de pessoas acaba por soar verdadeira a essas mesmas pessoas. Uma citação sua comenta essa tendência estudada pelos criminólogos (sim, o termo é este): “De maneira bastante cruel, pode ser dito que, à medida que o mergulho no papel desviado cresce, há uma tendência para que o autor do delito defina-se como os outros o definem.” (SHECAIRA, 2008, p. 288)
             “A mulher fiel do paciente mental, a filha do ex-presidiário, o pai do aleijado, o amigo do cego, a família do carrasco, todos estão obrigados a compartilhar um pouco o descrédito do estigmatizado com o qual eles se relacionam.” (GOFFMAN, 1988, p. 39) 
            Coerente com essa abordagem, o autor aproxima o tom do narrador da “A benfazeja” ao de um advogado de defesa cujo questionamento centra-se nas imposições e imposturas sociais  da comunidade frente à Mula-Marmela, minimizando o crime por ela cometido. A perspectiva do narrador, ao acompanhar as interações entre os moradores do povoado e ao prestar especial atenção na Benfazeja, é a “de fora” (“de fora da sociedade e de seus valores”, observa o autor do artigo), ainda que, ao longo da narrativa, ele oscile entre o dentro e o fora da comunidade. Por conta desse seu trânsito entre diferentes pontos de vista, ele se permite jogar com a retórica, fazendo uso da exortação e da pressuposição, em seu relato do caso. Seu discurso implicitamente sugere: “se eu que sou de fora  sei, você que é do povoado deve saber”. 
            Como o narrador, o autor do artigo converte-se em seu defensor, e advoga que, mesmo enlouquecida, a Mula-Marmela “permanece consciente”, ao se retirar com o cachorro nas costas. “Aos olhos da comunidade, há pouca ou nenhuma diferença entre a Benfazeja lupina e magra e o cachorro morto e meio já podre. Diríamos até que ambos são o mesmo ser indesejável, do qual a sociedade deve ser higienizada."
           Destacando as semelhanças entre as obras de Goffman e de Foucault, cita-se o último: “Desaparecida a lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmos locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e ‘cabeças alienadas’ assumirão o papel abandonado pelo lazarento, e veremos que salvação se espera dessa exclusão, para eles e para os que os excluem.” (FOUCAULT, 2010, p. 6-7)
Os estigmas da benfazeja: mediando um diálogo entre Guimarães e Goffman. Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 1., n. 1., 2012.
Referências: FOUCAULT, Michel. Historia da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2010.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2008.
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             O mito das Eumênides e o narrador tragediógrafo
          Não menos interessante é o artigo de Adilson dos Santos (“A atualização de Eumênides, de Ésquilo, em ‘A benfazeja’, de Guimarães Rosa”). Para Santos, o conto de GR retoma o mito das “Erínias/Eumênides”, referendando-se em sua interpretação trágica por Ésquilo, na trilogia “Oréstia” (458 a.C.), sobretudo na última peça, “Eumênides” ou “Deusas Benévolas”. A partir dela se sabe que as “Erínias” eram “deusas virgens, violentas e de aspecto disforme que tinham por função punir os crimes cometidos entre consanguíneos”.
      Erínias são divindades de uma época em que figuras femininas dominavam a teogonia (matriarcado), diferentemente do patriarcado posterior do Olimpo. A peça mostra como as Erínias passaram a incorporar a função de castigar toda espécie de excesso dos homens (hybris), tornando-se as deusas benfazejas ou Eumênides.
           Também a Mula-Marmela, “vítima de um cruel e terrível destino que lhe nega o livre arbítrio do ego”, acaba por assumir, em seu povoado, a condição de bode expiatório. Na Grécia Antiga, transferia-se ao bode expiatório (pharmakós) a responsabilidade por anormalidades que perturbavam a ordem social. Como prática de purificação e cura para a cidade, em casos de calamidades, sacrificava-se o homem mais feio de todos.
         Em “A benfazeja”, menciona-se a presença do trágico logo no primeiro parágrafo quando o narrador, ao questionar os moradores do povoado, refere-se aos “domínios do demasiado”. Como heroína trágica, a Mula-Marmela  cumpre o seu destino e por ele despende todas as suas forças, cristalizando pulsões de morte e de castigo, a fim de limpar o povoado da “pestilência” daqueles que ultrapassam os limites do bom convívio social, sejam eles amados ou não. Tal como as Erínias, a Mula-Marmela também é implacável, horrível, impossível de ser contemplada. Mas, “assim como as Eumênides, Mula-Marmela se caracteriza como uma lei externa, uma ministra da justiça que, através do temor e mansidão, contém nos limites os indivíduos que os queiram ultrapassar”.
          Como uma mula, a personagem é estéril e carrega fardos, “suporta pesos que não são os seus”. Sendo  “Marmela”, é fruto ácido e adstringente usado na preparação de doces. Abstendo-se de sua subjetividade, nas palavras de Santos, “abre mão da felicidade de estar ao lado de quem amava para alcançar a graça de promover o bem a uma quantidade maior de pessoas”. Cegando o enteado, anula os seus atos, mas também lhe dá a possibilidade de permanecer junto ao vilarejo e, depois do sacrifício final, chama-o “Meu filho...”. Também as Eumênides passam a adotar os habitantes de Atenas como seus filhos, sendo responsáveis tanto pela punição de criminosos quanto pela geração da vida.
       Tal como o artigo anterior, este também faz menção ao papel do narrador em “A benfazeja”. Sendo “de fora”, “tudo o que sabe acerca da personagem obteve através do relato dos habitantes do vilarejo. Sua condição de estrangeiro lhe garante uma visão menos comprometida dos fatos”. Para Santos, o narrador é um tragediógrafo. Com o relato de crimes e agressões familiares, busca atrair a atenção e emocionar os seus interlocutores. Com palavras indignadas e não com atos, apresenta a sua interpertação trágica do caso. A partir de uma conversa, pelo domínio da argumentação, da narração e do juízo, em tempo presente, pela rememoração de acontecimentos em uma ordem estabelecida por ele, o narrador transforma a história da Mula-Marmela num caso exemplar a ser transmitido às próximas gerações.
         “Para o vilarejo, os atos de Mula-Marmela são violações de interditos. Já, para o narrador, não violar o interdito é que se caracteriza como um crime. […] Tal como acontece na terceira tragédia que compõe a Oréstia, a imagem da personagem é reabilitada através de um discurso marcadamente persuasivo. Em "Eumênides", Atena cuida para que a Democracia não seja intimidada pelas Eríneas e tece para elas um longo discurso, induzindo-as a assumirem a nova condição de Eumênides como uma honra.  "Com isso, a deusa garante a presença amedrontadora de tais divindades, que passam, então, a assumir uma função de extrema importância dentro do novo direito da pólis": a responsabilidade pela observância da justiça, cuidando, com antecedência, de evitar o crime.
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line). Ano 03 Número 01 Jul-Dez 2011.
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Imagem de leproso na idade média
            Da aparência à vidência ou a sabedoria do narrador onisciente
        Por fim, vale destacar alguns pontos extraídos do artigo “O narrador persuasivo: Um olhar benfazejo”, de Iolanda Cristina dos Santos. Em seu texto, afirma-se o narrador como um “pedagogo”, ou melhor, como um sábio focado na apreensão da realidade pela superação da aparência. Tal como os moradores, acometidos pela cegueira em relação às reais motivicões da Mula-Marmela, somos nós próprios, os leitores, convidados a nos ver e a questionar o que vemos. Nesse sentido, o distanciamento do narrador é essencial.
          Otimista, a autora do artigo afirma que  é possível deslocar pelo menos um pouco a membrana que turva a nossa visão. Com isso, belas paisagens e conceitos redimensionados surgirão.  Afirma também que o elemento trágico dialoga com a perplexidade nesta história. É a perplexidade do narrador ante o “fato de a protagonista não ter sido notada no que ela tem de melhor”, e não a crueldade dos seus atos, que o leva a contar sua história
      Iolanda dos Santos lembra que na obra de GR, a crueldade, as deficiências, apresentam-se como possibilidades de instaurar esse sentimento de perplexidade, imprescindível para uma abertura e reconhecimento “de aspectos pouco valorizados e desejáveis no ser humano”. Citando Costa Lima, a autora destaca que " O aleijão é menos prova acusatória do caráter cruel da vida que indício do que nela perplexamente desconhecemos." (LIMA, 1991, p. 506)
      Contrapondo-se ao desprezo pelo narrador onisciente, a autora elogia a sua postura “intrusa”: “Parece já ter abarcado inúmeras situações humanas, e que, por isso, agora vem nos ensinar a olhar”. Sob a forma de um “jogo de velar e desvelar”, ele se dirige desde a primeira frase do conto ao leitor (identificado aqui com os moradores do vilarejo), “introduzindo-o na problemática [do quê e do como] vai contar: "SEI QUE NÃO atentaram na mulher”, fazendo-nos “ver que o papel do narrador, muito mais que simplesmente narrar, é tocar em algumas camadas inapreensíveis pelo olhar apressado e comum”. […] “E, em termos formais, o que temos é uma reincidência de verbos ligados ao sentido da visão, pois estão sempre presentes formas verbais como "revê", "viam-lhe", "notar", "vêem", "viram", "notem", "notaram", "reparam", "olha", "saibam ver", "veriam", "os observou", dirigidas ao leitor desavisado.”
        O foco constante da voz narrativa na Mula-Marmela combina-se à força do discurso subjetivo do narrador. Graças a essa coragem em se mostrar, “podemos nos libertar das armadilhas do enredo e, paralelamente à fruição deste, refletirmos sobre os modos com que cada um realiza as suas possibilidades e impossibilidades de ser. Não fossem as chamadas do narrador, o enredo nos levaria, e perderíamos a oportunidade de refletirmos sobre o narrado”. Bendita astúcia da narração, “que nos leva a uma fruição mais astuta do texto”
Disponível em http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa11/v1/iolandacristina.html 
Referência: LIMA, Luiz Costa. “O mundo em perspectiva: Guimarães Rosa”. In: COUTINHO, Eduardo Faria. Guimarães Rosa . 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 500-513. 
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Ilustração de Gustav Tenggren para "João e o pé de feijão"
Assim que terminei a leitura do conto “A benfazeja”, de Guimarães Rosa, pensei: “aquela história que queria escrever, explorando a alma de uma mulher de ogro, já foi escrita, veja só, ei-la aqui”. Mas mesmo assim, sinto-me compelida a reler alguns contos de fadas com ogros: “O Barba azul”, “O ogro com penas” (compilado por Italo Calvino), além de “O pequeno polegar” e “João e o pé de feijão”. Em alguns deles, a mulher é pouco fiel e mostra-se como a antítese do marido.  É de Diana Lichtenstein (“Fadas no divã: psicanálise das histórias infantis”) a analogia da mulher do ogro, em “João e o pé de feijão”, com Reia, esposa de Cronos. Tal como a deusa, a ogra cuida do menino, não lhe negando a verdade de que o “pai” é um rival perigoso e temível. Segundo Lichtenstein, essa tensão ou contradição revelada pela mulher entre o seu homem e o seu filho é essencial para que a criança apreenda: “ninguém é um complemento perfeito para o outro”. Fica, por fim, a curiosidade: Simone de Beauvoir, em “O segundo sexo”, identifica a mulher de ogro com a fêmea do louva-deus: “o Outro privilegiado através do qual o sujeito se realiza”.
Reia e Cronos

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