20 de janeiro de 2015

As quatro últimas das “Primeiras estórias”, de Guimarães Rosa (dropes)

Bia Albernaz
Há muitos bons trabalhos de interpretação das "Primeiras estórias" a serem pesquisados. Limito-me aqui a fazer quatro dropes, textos digestivos que pretendem apenas servir como convites para o verdadeiro banquete: a leitura deste livro encantador de GR.

DARANDINA
            De início, o texto deste conto parece meio complicado. Talvez o texto inteiro seja mesmo um tanto complicado, mas isso não tem tanta importância porque a gente logo se dá conta de que estamos diante de GR, ele mesmo um personagente, em pessoa, mexendo na língua, fazendo cócegas, propondo malabarismos. Já ouvi e dou uma certa razão a quem pergunta: mas por que ele tem de escrever tão difícil? De fato, GR é um virtuose, como um menino que solta as mãos do guidão e grita em nossa direção, chamando atenção para a sua proeza. Por fim, temos de consentir em parar os nossos afazeres para ouvir ou ver o feito, concordando: ele é mesmo muito bom!
            Vejamos a primeira frase do conto “Darandina”:
De manhã, todos os gatos nítidos nas pelagens, e eu em serviço formal, mas, contra o devido, cá fora do portão, à espera do menino com os jornais, e eis que, saindo, passa, por mim e duas ou outras três pessoas que perto e ali mais ou menos ocasionais se achavam, aquele senhor, exato, rápido, podendo-se dizer que provisoriamente impoluto.
            As informações estão ali, uma em cima da outra, constituindo-se como um tudo-ao-mesmo-tempo, um desafio à sintaxe, desaguando, ao final da longa frase, no surgimento daquele “senhor, exato, rápido”, e não no “senhor exato e rápido”. A diferença sutil transforma o que seria um adjetivo num substantivo. O exato, o rápido, porém, também é aquele que a colocação do advérbio “provisoriamente”, em sua relação com o adjetivo “impoluto”, permite supor: alguma coisa vai acontecer com este homem... A frase seguinte, que fecha o primeiro parágrafo, diz:
E, pronto, refez-se no mundo o mito, dito que desataram a dar-se, para nós, urbanos, os portentosos fatos, enchendo explodidamente o dia: de chinfrim, afã e lufa-lufa.
            E, pronto, fomos fisgados, porque agora sabemos: a estória começou. Eu, como leio para interpretar (triste hábito de professora e leitora-que-estuda-o-livro-que-lê-para-aprender-macetes-da-literatura), logo me pergunto: em que mito este homem (não o personagem, mas o autor, GR) irá agora se inspirar? Além disso, percebe-se: a estória se passa numa cidade e o narrador, em 1a pessoa, se coloca como um de “nós” (o que imediatamente levanta a possibilidade da existência de um outro). Por último, surge o uso um tanto abusivo da aliteração, mas de um jeito compreensível, poético e lúdico, com a expressão, para designar aquele dia em especial, como "de chinfrim, afã e lufa-lufa”.
            A continuação da estória, não comento. Só adianto que, principalmente nas primeiras páginas, há um monte de expressões muito mais estranháveis, como "Ugh, sioux!..."; de inversões, nas sequências naturalizadas dos termos das sentenças; de flexibilizações, até aquele momento inexistentes, em vocábulos como “ascensionalíssimo”; além de inúmeras fusões de radicais para a criação de palavras novas. Não sei se ao longo do texto realmente GR acalma os nervos dessa língua crispada ou se fui eu que comecei a relaxar e a ouvir todas as estranhezas com mais naturalidade. O que importa dizer aqui é que o texto flui, que a estória segue divertida e que, ao final da leitura de “Darandina”, nos vemos como mais um dos muitos que pararam na praça para ver o espetáculo daquele homem nada exato, mas ainda assim muito rápido.
            Comento agora a figura do homem sobre a palmeira. Como tenho muitas referências do mundo do cinema, pensei logo no “Tio” do filme “Amarcord”, lembram-se? Lembrei também do conto de Sérgio Sant'Ana, “Um discurso sobre o método”. Nos dois, há um personagem encarapitado: no primeiro caso, no alto de uma árvore; e no alto de um prédio, no segundo. Em ambos, assim como em “Darandina”, o sujeito em suspenso encontra-se em estado insurgente e mobiliza toda a atenção dos que se mantêm no chão. É um modo de interromper a razão, sair da lógica pedestre. (Lembrei-me ainda de outro exemplo literário desse tipo de personagem com a cabeça nas nuvens: “O barão nas árvores”, de Ítalo Calvino, muito bom!)
Cena de "Amarcord", de Federico Fellini (1973)

          Antes de terminar, lanço a questão: “o que quer dizer “Darandina”? No conto, uma frase chega perto da expressão, quando diz: “Tanto é certo que também divertia-nos. Como se ainda carecendo de patentear otimismo, mostrava-nos insuspeitado estilo. Dandinava.”, mas a semelhança entre os dois termo limita-se à sonoridade. Um não tem nada a ver com o outro. “Dandinava” assemelha-se a dândi, daquele que tem “insuspeitado estilo”, mas “Darandina”... Não resisto. Vou pesquisar e encontro: “Darandina” é “azáfama”, “lufa-lufa”, justamente! Nos sites de dicionários mais ou menos formais que se encontram na internet, como o Michaelis e o Aulete, encontrei que a definição vem de José Pedro Machado, no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, com a indicação de que se trata de uma «formação expressiva» ou, conforme explica Nilce Sant´Anna Martins, em O Léxico de Guimarães Rosa (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001), “darandina” é uma palavra “fonicamente expressiva”. Não entendi bem, mas por conta do afã, fiquemos apenas com a definição de que, nesta estória, narra-se um “lufa-lufa”, em dia muito chinfrim. 

- Texto integral de “Darandina”:
- Texto integral de "Um discurso sobre o método", de Sérgio Sant'Anna:
http://joycecoisasminhas.blogspot.com.br/2012/09/u
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SUBSTÂNCIA
Sim, na roça o polvilho se faz a coisa alva: mais que o algodão, a garça, a roupa na corda.
            A primeira frase da estória começa com o assentimento, o colorido percebido pelo substantivo “polvilho” que equivale de modo absoluto à “coisa alva”, comparando-o com outras coisas também presentes na roça. Estamos na roça e vamos falar de polvilho, essa substância que se pulveriza nas mãos de Maria Exita, introduzida de supetão à estória. “Chamava-se Maria Exita”, nome em que ressoa a palavra “êxito”, de exitar, ainda que o som se confunda com o de “hesitar”.
Datada de maio, ou de quando? Pensava ele em maio, talvez, porque o mês mor – de orvalho, da Virgem, de claridades no campo. Pares se casavam, arrumavam-se festas; numa, ali, a notara: ela, flor.
            O conto inteiro tem esse tom de suspiro amoroso, de surpresa por estar amando, de eleição de alguém, daquela que é, e que - do jeito que ela é - é cortejada, buscada por ser “coisa alva”, com alma de polvilho, tão delicada que assusta, assim como a imaginada opinião da comunidade local a respeito da moça e de seu passado, desconhecido e conhecido, na medida exata para Sionésio, o fortificado, o dono da produção, apaixonar-se.
            Quem trouxe Maria Exita para a fazenda de Sionésio foi a velha Nhatiaga, cuja função no fabrico do polvilho é peneirar. E, como sempre, combinam-se os nomes e os destinos, na obra de GR, espalhando aqui e acolá pequenas chaves para a interpretação da estória. Tiago é “o que suplanta”. Nhatiaga, peneireira, é quem promove o encontro dos dois jovens que, para ficarem juntos, têm de passar o passado e os preconceitos pela peneira e, do processo, só aproveitando a coisa alva.
Giulia Gam, como Maria Exita, no filme "Outras estórias", de Pedro Bial (1999)
                 O cenário da estória é pintado com extremo cuidado. As imagens são cristalinas, de fácil compreensão (no livro, a sequência do agitado conto anterior, “Darandina”, para este, funciona muito bem). Em “Substância”, o leitor é suavemente levado a desfrutar do “quieto completo”, “sem eixo de murmúrio”. A marcação da narração, geralmente anunciada com aqueles simples “mais tarde”, “depois”, “aí”, “anos mais tarde” etc., aqui é cadenciada por um tempo não só medido pelo relógio mas pela singularidade de um momento: “Demorara para ir vê-la. Só no pino do meio-dia – de um sol do qual o passarinho fugiu”. O compasso é o de um minueto. Tem dança e contradança. “Teve dó dela – pobrinha flor.” (A função de Maria Exita na produção do polvilho era considerada a mais dura.) A evolução de passos andantes, vagarosos, marcados, é graciosa. Avanços e recuos marcam a visão de Sinésio sobre a moça que, a certa altura, é chamada de “iazinha”, palavra que, no diminutivo, esconde a grandeza que traz, pois “iá” é a abreviação de “iáiá”, “mãe” em iorubá, podendo também ser uma curta interjeição para um grande espanto, ao ver aquela “moça feita em cachoeira”.
           Os antagonistas na estória são os fantasmas de Sionésio, o narrador das forças retroativas em ação e das suas suplantações. Ele, o dono que procura “não abusar da vantagem”, o desejoso de realizar uma esperança “mais espaçosa” para Maria Exita, que estava “amando mais ou menos”, passa pelo ciúme, pela segurança de sabê-la pura por precisão e destino, pelo medo e pela raiva de ter medo, e também pela dúvida, diante da possibilidade de herança da loucura da mãe na filha e da impossibilidade de decifração dos “olhos sacis” de Maria Exita. Entre a doçura e o espanto, Sionésio não sabe como reagir à resposta da moça para a sua galante pergunta: “Você tem vontade de confirmar o rumo de sua vida?” “Só se for já…” Sinésio não tem recursos para interpretar o riso que acompanha essa resposta bate-pronta, clara e quente, “decerto sem a despropositada malícia, sem menospreço”. Mas já tudo alvava quando ele refaz a pergunta e ela lhe responde com a mesma presteza de antes: “Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar? Você comigo, vem e vai?” “Vou, demais.”
            Peço desculpas se estrago a leitura contando todo o enredo aqui, mesmo que aos pedaços, na escrita um pouco desmesurada deste texto, que transforma o dever de apresentar a estória em puro deslumbramento. Por isso, não transcrevo aqui a última frase do conto. Ela é tão linda que tem de ser lida como deságue da estória-mãe. Se me permitem, acrescento apenas: a frase refere-se ao que acontece à sombra da Nhatiaga, ou seja, pela suplantação; é o ápice do espanto, só atingido por quem faz a leitura do conto por inteiro. Só assim acontecerá o “não-fato, o não-tempo, silêncio de sua imaginação”.

Texto integral de “Substância”
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               - TARANTÃO, MEU PATRÃO…
           Este conto também é em 1a pessoa. E, como nas demais “Primeiras estórias”, esta também trata de uma suspensão do cotidiano.
Suspa! – que me não dão tempo para repuxar o cinto nas calças e me pôr debaixo de chapéu, sem vez de findar de beber um café nos sossegos da cozinha.
            Suspenso o sossego, Vagalume se vê obrigado a seguir o seu “esmarte patrão”, que ficou “zureta” e se largou pelo sertão, à cavalo, “inteiro na sela, inabalável, proposto de fazer e acontecer”.
            Depois do patrão Sionésio, o fortalecido, em “Substância”, eis-nos diante de Tarantão, o atarantado. Esses dois não são os únicos patrões que protagonizam estórias no livro. Há também o Tio Man’Antônio, que doou suas terras aos empregados, em “Nada e a nossa condição”; e Seo Giovânio, o italiano, cujo antagonista é o empregado Irivalíni ou Reivalino, em “O cavalo que bebia cerveja”. Em todas essas estórias, o ponto de vista de GR mostra tentativas de romper com a distância social, fazendo com que interajam luta de classes e busca existencial.
            Em “Tarantão…”, de antemão se sabe: quem tem razão é o empregado. Mas a sua razão mostra-se em lusco-fusco, no trânsito entre o escuro e o claro, como bem assinala o seu apelido, “Vagalume”. O empregado, como narrador, encarna distância e proximidade para com o patrão e, na medida justa e comedida, sente piedade, diverte-se ou aborrece-se ao cumprir a missão de acompanhar a saga do Tarantão. Ante à inesperada adesão de seguidores que se prestam a acompanhar cegamente o seu patrão, surpreende-se. Em seu séquito, tem cangaceiro, sacristão, cigano, vagabundo, bobo, aventureiro e um parente seu a quem pediu socorro (“alcança a gente, sem falta, que nem sei adonde ora andamos, a não ser que é do Dom Demo esta empreitada!)”. Os apelidos dos seguidores sugerem a inserção de personagens espectrais, forjados por estórias mais ou menos conhecidas, das quais muitas vezes resta apenas o que trazem como alcunha: Dosmeuspés, Sem-Medo, Curucutu, Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, Gorro-Pintado e até um sem-nome, que o narrador acrescenta ser “nosso amigo”.
            A relação entre Vagalume e Tarantão, o tom picaresco na narrativa e o comportamento desmesurado de Tarantão sugerem a relação entre dom Quixote e Sancho Pança, e lembram também a formação do exército, no filme “O incrível exército de Brancaleone”. Mas GR dá uma boa mexida em todos estes arquétipos literários. Para começar, a narrativa quem faz é o “Sancho”, isto é, o Vagalume. Além disso, em uma virada rápida, o rumo dos acontecimentos toma um caminho inesperado.
Cena de "O incrível exército de Brancaleone", de Mario Monicelli (1966)
          De fato, rezam os manuais da boa escrita que o ritmo, no final de narrativas curtas, precisa aumentar. E isso, muitas vezes, faz com que os acontecimentos pareçam abruptos.
            Ao longo de dois terços da narrativa, Tarantão mostra-se – aos olhos de Vagalume – como um amalucado e também um endemoniado. Desde o início, fica-se sabendo que os motores de sua desabalada cavalgada eram o desejo de vingança e o ódio, como também um sentimento extático de ação demoníaca:
Ei, vamos, direto, pegar o Magrinho, com ele hoje eu acabo!” - bramou, que queria se vingar. O Magrinho sendo o doutor, o sobrinho-neto dele, que lhe dera injeções e a lavagem intestinal. – “Mato! Mato, tudo!” - esporeou, e mais bravo. Se virou para mim, aí deu o grito, revelando a causa e verdade: - “Eu 'tou solto, então sou o demônio!.
Mas, no terço final da estória, acontece a virada. O ponto em que a estória começa mudar é o da entrada dos “palhaços destemidos” na cidade. Nesse momento o narrador, Vagalume, demonstra o que parece ser uma conversão à desrazão do patrão, aderindo à ação por ele liderada. Guarda ainda uma certa distância e proximidade, em sua antevisão do espanto dos moradores da cidade, ao ouvirem “a estrupida dos nossos cavalos”.  Nesse ponto, Vagalume revela sentir saudades do velho e ter os olhos embaciados. Assim, suas palavras, mais adiante, quase já não mostram distanciamento: “A gente nem um tico tendo medo, com o existido não se importava.” O velho ainda “jurava que matava. Pois, o demo!”, mas chegados ao local do ajuste, tudo muda. Naquele justo momento, uma festa acontecia na casa do médico, e o estupor dos convidados é rompido pelo discurso de Tarantão ("Eu pido a palavra”). Não vou contar o final, mas o arquétipo literário que então me surgiu foi o da chegada de Jesus com seus apóstolos, durante os festejos de bodas, na cidade de Cananeia, se a memória não me falha.
*** 
OS CIMOS
Veredas dos Gerais. Foto: Tom Alves (Revista Sagarana)
            A suspensão do ordinário pela loucura, o êxtase e a festa promovem o milagre da multiplicação ou do ressurgimento da alegria. Suspensão gera suspensão, o que nos leva ao cume da última das primeiras estórias. Nela, reencontra-se o menino da primeira narrativa (“Às margens da alegria”) no mesmo local, onde se constrói uma cidade, na presença dos mesmos personagens (o tio, a tia, o piloto do avião), mas sob circunstâncias bem diferentes. Sua visita, dessa vez, é de um “afastamento inverso”. Precisa se afastar da mãe que está muito doente, mas o pensamento e o sentimento não decolam junto com ele no avião. São quatro, os cimos desta estória: o primeiro é “O inverso afastamento”. Os demais são: “Aparecimento do pássaro”, “O trabalho do pássaro” e “O desmedido momento”. De cada cimo, em 3a pessoa e de modo onisciente, narram-se as vivências do menino, já que ele próprio não encontraria palavras que as nomeasse.
            As primeiras vivências referem-se à aliança que o menino cerra com o seu macaquinho da sorte, o brinquedo-fetiche, que se torna uma espécie de guia que lhe apoiará nos caminhos entre o apego e o desapego;  à lembrança da mãe, com o choro preso; ao questionamento, ainda que incipiente, do mal absoluto frente à existência do belo; e ao abandono do festivo, pelo sofrimento.
            No trecho denominado “Aparecimento do pássaro”, o menino vive a culpa, a raiva, “o coração dando muita pancada”, a vigília e “os desconhecidos pensamentos”. Mas é então que se achega ao alpendre, um passadiço, e tem a visão do tucano.
            Em “O trabalho do pássaro”, a vivências do menino são de medo, de espera pelo belo, descobrindo-o como um trabalho cotidiano, matutino, de fôlego. Nesse ponto, ele já se sente mais forte e sai para passear e a imagem do bonequinho empoeirado  catalisa sentimentos de esperança e de coragem experimentados pelo menino, o que lhe possibilita negar com veemência a proposta que lhe fizeram, de matar o tucano. Nesse cimo, “o voo do pássaro habitava-o mais”.
            Antes do último cimo, “O desmedido momento”, o menino fica sabendo pelo tio que a mãe está curada. Em sua volta para a casa, as últimas impressões fazem-no refletir sobre tudo o que passou em sua estadia ali e ele sente saudades do lugar que está deixando. Sente que a vida nunca pára. Ele perde o bonequinho e, antes da última palavra do conto – que naturalmente é “vida” – algo mais acontece, que reabre a porta da festa para o menino, mas sobre isso não conto mais.
            A estória de “Os cimos” parece se destinar sobretudo para os iniciados em GR. Sem dúvida, o conto será mais interessante para aqueles que saborearam cada estória, ou seja, todas as primeiras estórias até o final. O livro possui uma sequência. A décima-primeira estória, “O espelho”, divide o livro em duas metades harmônicas com a criação de correspondências entre as estórias de ambas as partes. Nessa artesania literária, percebe-se que o autor possui um projeto de expansão do horizonte de seus leitores, de expansão de valores, de desconserto do olhar sobre os fenômenos humanos, pelo refinamento dos sentidos, principalmente o da escuta.
            Há estórias nas quais se sente mais a intencionalidade deste projeto, em que a filosofia fricciona-se à literatura em linguagem poética, num diálogo estreito entre pensamento e sentimento. Traduzir essa aproximação de saberes em uma narrativa às vezes pesa, principalmente quando o pensamento torna-se mais abstrato e as palavras bebem de fontes menos literárias e mais filosóficas. Decerto o fim do livro “Primeiras estórias” nem sempre coincidirá com “Os cimos”. Pois, como este é um livro circular, é possível retomá-lo de que estória for.
            Para finalizar, relembro-me de um trabalho que uma vez escrevi sobre uma obra de Messiaen – o Catalogue des Oiseaux – em cujo final, em uma tentativa um tanto frustrada, eu descrevia primeiro o canto de dois tucanos, em torno das 17h, durante o verão; e, em seguida, o canto de um único tucano, neste mesmo dia, às 19h. O que concluí, em meu parco estudo do sistema de Messiaen, pode ser aplicado aqui, neste parágrafo conclusivo, não só com referência às quatro últimas das “Primeiras estórias”, de Guimarães Rosa, mas a todas elas como expressão de um projeto: a sonoridade, o assovio, a altura, a entonação, as frases ascendentes, as escaladas são rompantes de alegria expressos em som.

        Em "Primeiras estórias", GR como o tucano que aparece para o menino em “Os cimos” promove em nossos ouvidos uma festa de sons de cores diversas. Com ele, apreende-se que cantar e respirar são atos contíguos; que o silêncio é mais perceptível depois do canto; e que, na escuta atenta das estórias, é que se encontram as passagens entre o primário e o primordial.

Texto integral do livro “Primeiras estórias”:
xa.yimg.com/kq/groups/24137146/.../Os+Cimos+-+Guimarães+Rosa.pdf
Texto integral de "A ventura de Messiaen":
https://www.academia.edu/5953877/A_VENTURA_DE_MESSIAEN

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