Guimarães Rosa (em
“Primeiras estórias)
Sei que não atentaram na mulher; nem fosse
possível. Vive-se perto demais, num lugarejo, às sombras frouxas, a gente se
afaz ao devagar das pessoas. A gente não revê os que não valem a pena. Acham
ainda que não valia a pena? Se, pois, se. No que nem pensaram; e não se
indagou, a muita coisa. Para quê? A mulher – malandraja, a malacafar, suja de
si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime não arrependida
– e guia de um cego. Vocês todos nunca suspeitaram que ela pudesse arcar-se no
mais fechado extremo, nos domínios do demasiado?
Soubessem-lhe ao menos o nome. Não, pergunto, e
ninguém o inteira. Chamavam-na de a Mula-Marmela, somente, a abominada. A que
tinha dores nas cadeiras: andava meio se agachando; com os joelhos para diante.
Vivesse embrenhada, mesmo quando ao claro, na rua. Qualquer ponto em que
passasse parecia apertado. Viam-lhe vocês a mesmez – furibunda de magra, de
esticado esqueleto, e o se sumir de sanguexuga, fugidos os olhos, lobunos
cabelos, a cara; – as sombras carecem de qualquer conta ou relevo. Sabe-se se
assustava-os seu ser: as fauces de jejuadora, os modos, contidos, de ensalmeira?
As vezes, tinha o queixo trêmulo. Apanhem-lhe o andar em ponta, em sestro de égua
solitária; e a selvagem compostura. Seja-se exato.
E nem desconfiaram, hem, de que poderiam estar
em tudo e por tudo enganados? Não diziam, também, que ela ocultava dinheiro,
rapinicado às tantas esmolas que o cego costumava arrecadar? Rica, outromodo,
sim, pelo que do destino, o terrível. Nem fosse reles feiosa, isto vocês
poderiam notar, se capazes de desencobrir-lhe as feições, de sob o sórdido
desarrumo, do sarro e crasso; e desfixar-lhe os rugamentos, que não de idade,
senão de crispa expressão. Lembrem-se bem, façam um esforço. Compesem-lhe as
palavras parcas, os gestos, uns atos, e tereis que ela se desvendava antes
ladina, atilada em exacerbo. Seu antigo crime? Mas sempre escutei que o
assassinado por ela era um hediondo, o cão de homem, calamidade horribilíssima,
perigo e castigo para os habitantes deste lugar. Do que ouvi, a vocês mesmos,
entendo que, por aquilo, todos lhe estariam em grande dívida, se bem que de
tanto não tomando tento, nem essa gratidão externassem. Tudo se compensa. Por
que, então, invocar, contra as mãos de alguém, as sombras de outroras coisas?
O cego pedia suas esmolas rudemente. Xingava,
arrogava, desensofrido, dando com o bordão nas portas das casas, no balcão das
vendas. Respeitavam-no, mesmo por isso, jamais se viu que o desatendessem, ou
censurassem ou ralhassem, repondo-o em seu nada. Piedade? Escrúpulo? Mais seria
como se percebessem nele, de obscuro, um mando de alma, qualidade de poder.
Chamava-se o Retrupé, sem adiante. Como a Mula-Marmela, os dois, ambos: uns pobres,
de apelido. E vocês não veem que, negando-lhes o de cristão, comunicavam, à
rebelde indigência de um e outra, estranha eficácia de ser, à parte, já
causada?
Ao Retrupé com seu encanzinar-se, blasfemífero,
e prepotente esmolar, ninguém demorava para dar dinheiro, comida, o que ele
quisesse, o pão-por-deus. – "Ele é um tranca!" – o cínico e canalha,
vilão. Mas só, às vezes, alguém, depois e longe, se desabafava. O homem
maligno, com cara de matador de gente. Sobre os trapos, trazia um facão,
pendente. Estendia, imperioso, sua mão de tamanho. E gritava, com uma voz de
cão, superlativa.
Se alguém falasse, ou risse, ele parava,
esperava o silêncio. Escutava muito, ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo; não
sabia nem podia.
Tinha medo, também; disso, vocês nunca
desconfiaram. Temia-a, a ela, à mulher que o guiava. A Mula-Marmela chamava-o,
com simples sílaba, entre dentes, quase esguichado um "ei" ou
"hã" - e o Retrupé se movia de lá, agora apalpante, pisando com
ajuda; balançava o facão, a bainha presa a um barbante, na cintura. Sei que
ele, leve, breve, se sacudira. Desciam a rua, dobraram o beco, acompanharamse
por lá, os dois, em sobrossoso séquito. Rezam-se ódio. Lé e cré, pelas ora voltas,
que qual, que. tal, loba e cão. Como era que ficavam nesse acordo de
incomunhão, malquerentes, parando entre eles um frio figadal? O cego Retrupé
era filho do finado marido dela, o Mumbungo, que a Mula-Marmela assassinara.
Vocês sabem, o que foi há tantos anos. Esse
Mumbungo era célebre-cruel e iníquo, muito criminoso, homem de gostar do sabor
de sangue, monstro de perversias. Esse nunca perdoou, emprestava ao diabo a
alma dos outros. Matava, afligia, matava. Dizem que esfaqueava rasgado, só pelo
ancho de ver a vítima caretear. Será a sua verdade? Nos tempos, e por causa
dele, todos estremeciam, sem pausa de remédio. Diziam-no maltratado do miolo.
Era o punir de Deus, o avultado demo - o "cão". E, no entanto, com a
mulher, davam-se bem, amavam-se. Como?. O amor é a vaga, indecisa palavra. Mas,
eu, indaguei. Sou de fora. O Mumbungo queria à sua mulher, a Mula-Marmela e,
contudo, incertamente, ela o amedrontava. Do temor que não se sabe. Talvez
pressentisse que só ela seria capaz de destruí-lo, de cortar, com um ato de
"não", sua existência doidamente celerada. Talvez adivinhasse que em
suas mãos, dela, estivesse já decretado e pronto o seu fim. Queria-lhe, e
temia-a - de um temor igual ao que agora incessante sente o cego Retrupé.
Soubessem, porém, nem de nada. A gente é portador.
O cego Retrupé é grande, forte. Surge, de lá,
trazido pela Mula-Marmela agora se conduz firme, não vacila. Dizem que bebe?
Vejam vocês mesmos, porém, como essas petas escondem a coisa singular. Todos
sabem que ele não bebia, nunca, porque a Mula-Marmela não deixava. Nem carecia
de falar-lhe a paz da proibição: dava-lhe, apenas, um silêncio, terrível. E ele
cumpria, tinha a marca da coleira. Curtia afogados desejos, indecifrava-o.
Aspirava, à. porta dos botequins, febril, o espírito das cachaças. Seguia,
enfim, perfidiado e remisso, mal-agradecido, raivoso, os dentes do rato
rangiam-no. Porque, ele mesmo, não sabendo que não havia de beber, o que não
fosse – ah, se! – o sangue das pessoas. Porque sua sede e embriaguez eram
fatais, medonhas outras, para lá do ponto. Seria ele, realmente, uma alma de
Deus, hão certeza? Ah, nem sabem. Podia também ser de outra essência – a
mandada, manchada, malfadada. Dizem-se, estórias. Assim mesmo no tredo, estado
em que tateia, privo, malexistente, o que é, cabidamente, é o filho
tal-pai-tal; o "cão", também, na prática verdade.
O pai, o Mumbungo, se vivia bem com a mulher, a
Mula-Marmela, e se ela precisava dele, como os pobres precisam uns dos outros,
por que, então, o matou? Vocês nunca pensaram nisso, e culparam-na. Por que hão
de ser tão Infundados e poltrões, sem espécie de perceber e reconhecer? Mas,
quando ela matou o marido, sem que se saiba a clara e externa razão, todos aqui
respiraram, e bendisseram a Deus. Agora, a gente podia viver o sossego, o mal
se vazara, tão felizmente de repente. O Mumbungo; esse, foi o que tivera de se
revoltar a um outro lugar, foi como alma que caiu no inferno. Mas não a
recompensaram, a ela, a Mula-Marmela ao contrário: deixaram-na no escárnio de
apontada à amargura, e na muda miséria, pois que eis. Matou o marido, e,
depois, própria temeu, forte demais, o pavor que se lhe refluía, caída, dado
ataque, quase fria de assombro de estupefazimento, com o cachorro uivar. E ela,
então, não riu. Vocês, os que não a ouviram não rir, nem suportam se lembrar
direito do delírio daquela risada.
Se eu disser o que sei e pensam, vocês
inquietos se desgostarão. Nem consintam, talvez, que eu explique, acabe. A
mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o necessário bem de
todos, só ela mesma poderia ser a executora – da obra altíssima, que todos nem
ousavam conceber, mas que, em seus escondidos corações, imploravam. Só ela
mesma, a Marmela, que viera ao mundo com a sina presa de amar aquele homem, e
de ser amada dele; e, juntos, enviados. Por quê? Em volta de nós, o que há é a
sombra mais fechada – coisas gerais. A Mula-Marmela e o Mumbungo, no fio a fio
de sua afeição, suspeitassem antecipadamente da sanção, e sentença? Temia-a,
ele, sim, e o amor que tinha a ela colocava-o à mercê de sua justiça. A
Marmela, pobre mulher, que sentia mais que todos, talvez, e, sem o saber,
sentia por todos, pelos ameaçados e vexados, pelos que choravam os seus entes
parentes, que o Mumbungo, mandatário de não sei que poderes, atroz sacrificara.
Se só ela poderia matar o homem que era o seu, ela teria de matá-lo. Se não
cumprisse assim – se se recusasse a satisfazer o que todos, a sós, a todos os
instantes, suplicavam enormemente – ela enlouqueceria? A cor do carvão é um
mistério; a gente pensa que ele é preto, ou branco.
E outra vez vejo que vêm, pela indiferente rua,
e passam, em esmolambos, os dois, tão fora da vida exemplar de todos, dos que
são os moradores deste sereno nosso lugar. O cego Retrupé avança, fingindo-se
de seguro, não dá à Mula-Marmela a ponta do bordão para segurar, ela o gula
apenas com sua dianteira presença, ele segue-a pelo jeito, pelo se deslocar do
ar – como em trasvoo se vão os pássaros; ou o que ele percebe à sua frente é a
essência vivaz da mulher, sua sombra-da-alma, fareja-lhe o odor, o lobum? Notem
que o cego Retrupé mantém sempre muito levantada a cabeça, por inexplicado
orgulho: que ele provém de um reino de orgulho, sua maligna índole, o poder de
mandar, que estarrece. E ele traz um chapéu chato, nem branco nem preto. Viram
como esse chapéu lhe cai muitas vezes da cabeça, principalmente quando ele mais
se exalta, gestilongado abarbarado e maldoso, reclamando com urgência suas
esmolas do povo. Mas, notaram como é que a Mula-Marmela lhe apanha do chão o
chapéu, e procura limpá-lo com seus dedos, antes de lho entregar, o chapéu que
ele mesmo nunca tira, por não respeitar a ninguém? Sei que vocês não se
interessam nulo por ela, não reparam como essa mulher anda, e sente, e vive e
faz. Repararam como olha para as casas com olhos simples, livres do
amaldiçoamento de pedidor? E não põe, no olhar as crianças, o soturno de
cativeiro que destinaria aos adultos. Ela olha para tudo com singeleza de
admiração. Mas vocês não podem gostar dela, nem sequer sua proximidade tolerem,
porque não sabem que uma sina forçosa demais apartou-a de todos, soltou-a.
Apara, em seu de-cor de dever, o ódio que deveria ir só para os dois homens.
Dizem-na maldita: será; e? Porém, isto, nunca mais repitam, não me digam: do
lobo, a pele; e olhe lá! Há sobrepesos, que se levam, outros, e são a vida.
Mas, com tanto, está que ninguém sabe o que
entre os dois verdadeiramente se compassa – do desconchavo e desacerto de assim
perambularem, torvos, no monótono, em farrapos, semoventes: do que vocês apenas
se divertem, tiram graças e chocarra. Se o que os há é apenas embruxar e odiar,
loba contra cão, ojeriza e osga; convocam demônios? Ou algum encoberto
ultrapassar -posto o que também há: uma irmandade das almas más, alcatéia e
matilha? Não, não há ódio; engano. Ela, não. Ela cuida dele, guia-o, trata-o -
como a um mais infeliz, mais feroz, mais fraco. Desde que morreu o
homem-marido, o Mumbungo, ela tomou conta deste. Passou a cuidá-lo, na
reobriga, sem buscar sossego. Ela não tinha filhos. – "Ela nunca pariu.. –
vocês culpam-na. Vocês, creio, gostariam de que ela também se fosse,
desaparecesse no não, depois de ter assassinado o marido. Vocês odeiam-na,
destarte.
Mas, se ela também se tivesse matado, que seria
de vocês, de nós, às muitas mãos do Retrupé, que ainda não estava cegado, nos
tempos; e que seria tão pronto para ser sanguinaz e cruel-perverso quanto o pai
- e o que renega de Deus – da pele de Judas de tão desumana e tremenda estirpe,
de apavor?
Seus os-olhos, do Retrupé, ainda eram sãos: para
espelhar inevitável ódio, para cumprir o dardejar, e para o prazer de escolher
as vítimas mais fáceis, mais frescas. Só aí, se deu que, em algum comum dia, o
Retrupé cegou, de ambos aqueles olhos. Souberam vocês como foi? Procuraram
achar? Sabem, contudo, que há leites e pós, de plantas, venenos que ocultamente
retiram, retomam a visão, de olhos que não devem ver. Só com isso, sem precisão
de mais, e já o Retrupé parava, um ser quase inócuo, um renunciado. E vocês,
bons moradores do lugar, ficavam defendidos, a cobro de suas infrenes
celeradezas. Talvez, ele não precisasse de danado morrer como o Mumbungo, seu
pai. Talvez, me pergunto, o próprio Mumbungo descarecesse de ser morto, se
acaso, por ponto, alguém pensasse antes nessas ervas cegadoras, ou soubesse já
então de sua aplicação e efeito. Se assim, pois, haver-se-ia agora a
Mula-Marmela guiando a dois, pelas ruas, e deles com terrível dever-de-amor
cuidando, como se fossem os filhos que ela queria, os que ela não pariu nem
parirá, nunca – o dócil morto e o impedido cego. A pacto de tolher-lhes as
ainda possíveis malícias, e dar-lhes, como em sua antiquíssima linguagem ela
diz: gasalhado e emparo. Vocês, porém, fio que nem nunca lhe escutaram a voz –
à surda.
Também o cego Retrupé se intimida dessa voz,
rara tanto. Sabem o que é tão estúrdio? – que, mesmo um que não vê, sabe que
precisa de apartar a cabeça: ele faz isso, para não encarar com a mulher
odiosa. O cego Retrupé volta-se de frente para o ponto onde estão as sensatas,
quietas pessoas, que ele odeia em si, pelo desprezamento de todos, na pacatez e
concórdia. Ele precisava de matar, para a fundo se cumprir, desafogado e bem.
Mas, não pode. Porque é cego, apenas. O cego Retrupé, sedicioso, então,
insulta, brada espumas, ruge – nas gargantas do cão. Sabe que é de outra raça,
que vem do ainda horroroso, informe; que ainda não entendeu a mansidão, pelo
temor? Então, o cego Retrupé esbarra com o impoder da cegueira; agora, ele não
pode alcançar ninguém, se a raiva mais o cega; pode? O cego Retrupé cochicha
consigo – ele ofende o invisível. Para ele, graças à cegueira, este nosso mundo
já é algum além. E se assim não fosse? Alguém seria capaz de querer ir pôr o
açamo no cão em dana? E vocês ainda podem culpar esta mulher, a Marmela,
julgá-la, achá-la vituperável? Deixem-na, se não a entendem, nem a ele. Cada
qual com sua baixeza; cada um com sua altura.
Saibam ver como ela sabe dar descargo de si.
Sim, ela é inobservável; vocês não poderiam. Mas, reparando com mais tento,
veriam, pelo menos, como ela não é capaz de pegar estouvadamente em alguma
coisa; nem deixa de curvar-se para apanhar um caco de vidro no chão da rua, e
pô-lo de lado, por perigoso. Ela abaixa assaz os olhos. Pelo marido, seu morto;
pode, porque o matou sem inúteis sofrimentos. Se não o matasse, ele se teria
condenado ainda mais? Ela afasta do botequim o cego Retrupé, turbador, remisso
e bulhento. Só este é o seu, deles, diálogo: um pigarro e um impropério. Ele a
segue, caninamente. Vão-se; nunca nenhum de vocês os observou, a gente não consegue
nem persegue os fios, feixes dos fatos. Vivem em aterrador, em coisa de
silêncio, tão juntos, de morar em esconderijos. A luz é para todos; as
escuridões é que são apartadas e diversas.
Diziam que, em outro tempo, ao menos, entre
eles teria havido alguma concubinagem. Cambonda? Vocês sabem que isso é falso;
e como a gente gosta de aceitar essas simples, apaziguadoras suposições. Sabem
que o cego Retrupé, canhim e discordioso, ela mesma o conduz, paciente, às
mulheres, e espera-o cá fora, zela para que não o maltratem. Isto, porém, faz
tempo. Hoje ele está envelhecido, virou em macilento, grisalho, as cãs
assentam-lhe bem, quando o chapéu cai. Estes tempos, durante que deixamos de
conhecê-los e averiguá-los. O cego Retrupé anda meio caído, amorviado, em
escanifro e escanzelo. Parece que, ao mesmo passo, seu modo de medo da Mula-Marmela
muda e aumenta. Fraqueia-lhe também a fúria alastradora e áspera de viver: não
exerce com o mesmo entono puxar pelo seu direito - o feroz direito de pedir.
Parece que seu temor fazia-o murmurar
queixumes, súplicas, à Mula-Marmela. E, no entanto, ela cada dia para com ele
mais se abranda, apiedada de seu desvalor. Mas ele não crê, não pode saber, não
confia dela, nem da gente. O entressentir-se, entre as pessoas, vem de regra
com exageros, erro, e retardo. Ele sussurra disfarçada e impessoalmente seus
pedidos de perdão; vocês notaram? A Mula-Marmela ouvia-o, sem parecer que.
Fugia de olhá-lo. Sei, vocês não notaram, nada. E, mesmo, agora, vocês se
sentem um pouco mais garantidos, tranquilos estamos. É de crer que, breve,
estaremos livres do que não amamos, do que danadamente nos enoja, pasma.
Conta-se-me que ele quis matá-la. Em hora em
que seu medo se derramou maior, saber-se-á lá por quê? Tido que já se estava
maltreito, quando adoeceu, mal, de febre acesa. Sentara-se à beira da rua, para
arquejar. De repente, levantou-se, sem bordão, estorvinhado, gritou, bramou:
exaltado como um cão que é acordado de repente. Sacou o facão, tacava-o,
avançava às doidas, às mesmo cegas, tentando golpeá-la, em seu desatinado
furor. E ela, erguida onde estava, permaneceu, não se moveu, não se intimidava?
Olhava na direção do não. Se ele acertasse, poderia em carnes trucidá-la. Mas,
aos poucos, acreditou que o facão não a encontraria nunca, sentiu-se
desamparado demais e sozinho. Temeu, de todo em pé. O facão lhe caiu da mão.
Seu medo não tinha olhos para encher.
Parece que gemeu e chorou: - "Mãe... Mamãe...
Minha mãe! ..." – esganiçado implorava, quando retombou sentado no chão,
cessada a furibundância; e tremia estremecidamente, feito os capins dos pastos.
Estava já no fino do funil, é de crer que. A Mula-Marmela, ela veio, se chegou,
sem dizer nem o sussurrar. Apanhou-lhe o chapéu, limpou-o, tornou-o a pôr na
cabeça dele, e trouxe também o facão, recolocou-o em sua cintura, na velha
bainha. Ele, com o se apequenar de sofrer e tremer, semelhava um bicho do fundo
da floresta. Diz-se que ela teria lágrimas nos olhos; que falou, soturna de
ternuras terríveis – "Meu filho..." E olhou para uma banda, disse a
alguma coisa mais, como se falando ao outro; soluçava, também, pelo Mumbungo,
seu reconduzido marido, por sua parte, de seu ato. Disso, vocês não quererão
saber, são em-diabas confusões, disso vocês não sabem. E, se, para quê? Se
ninguém entende ninguém; e ninguém entenderá nada, jamais; esta é a prática
verdade.
Sim, os dois, ficaram, até ao anoitecer, e pela
noite entrada, naquela solidão próxima, numa beira de cerca. Alguém os acudiu?
Diz-se que ele padecia uma dor terrivelmente, de demasiado castigo, e uma
sufocação medonha de ar, conforme nem por uma esperança ainda nem não agoniava.
Só estrebuchava. Não viram, na madrugada, quando ele lançou o último mau suspiro.
Sim, mas o que vocês creem saber, isto, seriamente afirmam: que ela, a
Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi quem esganou estranguladamente o
pobre-diabo, que parou de se sofrer, pelos pescoços; no cujo, no corpo defunto,
após, se viram marcas de suas unhas e dedos, craváveis. Só não a acusaram e
prenderam, porque maior era o alívio de a ver partir, para nunca, daí que,
silenciosa toda, como era sempre, no cemitério, acompanhou o cego Retrupé às
consolações. Vocês, distantemente, ainda a odiavam?
E ela ia se indo, amargã, sem ter de se
despedir de ninguém, tropeçante e cansada. Sem lhe oferecer ao menos qualquer
espontânea esmola, vocês a viram partir: o que figurava a expedição do bode –
seu expiar. Feia, furtiva, lupina, tão magra. Vocês, de seus decretantes corações,
a expulsaram. Agora, não vão sair a procurar-lhe o corpo morto, para,
contritos, enterrá-lo, em festa e pranto, em preito? Não será custoso achá-lo,
por aí, caído, nem légua adiante. Ela ia para qualquer longe, ia longamente,
ardente, a só e só, tinha finas pernas de andar, andar. É caso, o que agora
direi. E, nunca se esqueçam, tomem na lembrança, narrem aos seus filhos,
havidos ou vindouros, o que vocês viram com esses seus olhos terrivorosos, e
não souberam impedir, nem compreender, nem agraciar. De como, quando ia a
partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na
ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando: – se para livrar o logradouro
e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra,
se para com ele ter com quem ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária?
Pensem, meditem nela, entanto.
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