11 de julho de 2019

"Hibisco Roxo", a tirania do colonizado

Ruth Liftschits
A leitura de Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie, nos revela um livro interessante que trata  de colonização e seus efeitos sobre os colonizados: opressão, medo, extremismo religioso e cizânia entre e dentro de famílias. O livro fala também da incompatibilidade na solução de continuidade entre a Nigéria colonizada e a Nigéria independente.  Há dificuldades em relação à coexistência dos antigos valores nativos – reprimidos pelos colonizadores – e os valores adquiridos/impostos pelo longo tempo de colonização. Por terem sido assimilados, tais valores adquirem força na nação independente e encontram espaço para existirem “livremente”. A luta pelo poder político continua a existir na Nigéria independente, em detrimento da democracia e da liberdade de pensamento e ação para todos os cidadãos.
Interessei-me por Hibisco Roxo por ser um livro sobre a África escrito por uma africana. A África é um grande mistério para mim desde que as antigas colônias se tornaram países livres sobre os quais pouco ou nada sei.

A história  é narrada por Kambili, uma adolescente de 15 anos. Ela vive com seus pais e um irmão mais novo. Seu pai é empresário e dono de um jornal. Bem sucedido, ascendeu socialmente e, convertido a um catolicismo cego e cruel, renega sua cultura nativa e se recusa a conviver com seu próprio pai que se manteve fiel a sua origem. O pai de Kambili é extremamente generoso com pobres e carentes, mas muito severo com sua esposa e filhos. Ele os agride fisicamente de forma brutal quando é desobedecido ou quando acha que filhos e esposa pecaram. A jovem vive reprimida e com medo, tentando agradar o pai e se anulando  a ponto de não saber se defender, não conseguir se expressar ou questionar o que vê acontecer em seu dia-a-dia. 

Já a tia paterna da  jovem é professora universitária e mãe solteira. Ela consegue, a duras penas, criar os filhos com liberdade, respeito e convivência harmônica. Católica, não renegou as crenças de sua origem. A convivência com a tia e com o Padre Amadi faz com que Kambili consiga amadurecer e perceber sua voz, identificar seus sentimentos, reconhecer sua condição de filha submissa e omissa, vislumbrando como sua existência pode passar a ser desde que tenha coragem de enfrentar o pai. 

Para identificar mitos literários em Hibisco Roxo eu teria que ler o livro novamente, anotando tudo que surgisse. Então citarei parte de um texto escrito pela autora ao apresentar o livro:

A narrativa sobre a complexidade da formação psíquica e amorosa de uma adolescente africana é toda acompanhada pelas mudanças sofridas pelas flores e plantas: as buganvílias, os girassóis, os coqueiros, as casuarinas e especialmente, os hibiscos roxos - variedade fruto de um experimento único, que gera flores raras, cobiçadas por todos. O crescimento dessa flor rara na casa de Kambili, prisioneira das convenções, aponta para mudanças radicais em sua vida. O bem e o mal se misturam de forma ambígua, mergulhando o leitor numa história bem mais complexa do que supõem as aparências.

A autora descreve cenas e lugares, faz relatos em discurso indireto livre e cria diálogos inteligentes e verossímeis que nos permitem ver como pessoas comuns pensam e sentem os conflitos que existem nas famílias e na sociedade do país em que vivem. 

A história começa com um enfrentamento entre pai e filho e parte para um flashback que dá condições ao leitor de conhecer o passado recente dos personagens e os conflitos que existem.  No final do livro, volta-se ao acontecimento do início, numa circularidade que aguça o interesse do leitor pelo final da história. A inclusão de muitos termos em Igbo, a língua da tribo dos principais personagens, misturada ao inglês herdado dos colonizadores, nos situa e mantém na Nigéria e nos fornece dados preciosos sobre costumes nativos, alimentação e crenças religiosas. Há muita musicalidade no dia-a-dia pontuando momentos de leveza em meio às dificuldades e o peso da pobreza. 

Adichie consegue intercalar com suavidade os fatos e diálogos que nos falam da vida de Kambili com seus pais e o que presencia na casa de sua tia paterna, deixando que o leitor tire suas próprias conclusões sobre as realidades vividas. O final surpreende.


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Leia o início do livro
QUEBRANDO DEUSES
Domingo de Ramos

                  As coisas começaram a se deteriorar lá em casa quando meu irmão, Jaja, não recebeu a comunhão, e Papa atirou seu pesado missal em cima dele e quebrou as estatuetas da estante. Havíamos acabado de voltar da igreja. Mama colocou as palmas molhadas de água benta sobre a mesa de jantar e foi para o segundo andar da casa trocar de roupa. Mais tarde ela amarraria as palmas na forma de cruzes e penduraria na parede ao lado da foto com moldura dourada da nossa família. As cruzes ficariam ali até Quarta-feira de Cinzas, quando levaríamos as palmas à igreja para que elas fossem queimadas e transformadas em cinzas. Usando uma longa veste cinzenta como outros oblatos, Papa ajudava a distribuir cinzas todos os anos. A fila que se formava diante dele era a que se movia mais devagar, porque ele pressionava com força a testa de cada um par afazer uma cruz perfeita com seu  polegar coberto de cinza e falava de forma lenta e significativa cada palavra da frase “És pó e ao pó retornarás”. 
                  Papa se sentava todas as vezes no banco da frente para assistir à missa, na ponta que dá para a nave, com Mama, Jaja e eu junto dele. Era o primeiro a receber a comunhão. A maioria das pessoas não se ajoelhava para receber a hóstia no altar de mármore, perto do qual fica a estátua loura em tamanho real da Virgem Maria. Mas Papa, sim. Ele fechava os olhos e os apertava com tanta força que suas feições se contorciam numa careta, e ele esticava a língua o máximo que podia. Depois, sentava de novo no banco e observava enquanto o resto da congregação marchava até o altar com as palmas das mãos pressionadas uma contra a outra e estendidas, como padre Benedict os ensinara a fazer. O padre Benedict já estava em St. Agnes havia sete anos, porém as pessoas se referiam a ele como “o nosso novo padre”. Talvez não tivessem feito isso se não fosse branco. Mas o padre Benedict ainda parecia novo no lugar. Seu rosto, que era da cor de leite condensado ou de uma graviola cortada ao meio, não ficara nem um pouco mais bronzeado após passar pelo calor  abrasador de sete harmattans nigerianos.
                  E seu nariz britânico continuava tão fino e estreito como antes, ainda era o mesmo nariz que me fizera temer que ele não conseguisse respirar direito, quando o padre Benedict chegou a Enugu. O padre Benedict mudara as coisas na paróquia, insistindo, por exemplo, que o credo e o kyrie fossem recitados apenas em latim; igbo não era aceitável. Além disso, devia-se bater palmas o mínimo possível, para que a solenidade da missa não ficasse comprometida. Mas ele permitia que cantássemos músicas de ofertório em igbo; chamava-as de músicas nativas, e quando dizia “nativas” a linha reta de seus lábios pendia nos cantos e formava um U invertido. Durante seus sermões, o padre Benedict sempre falava do papa, do meu pai e de Jesus – nessa ordem. Ele usava meu pai para ilustrar os evangelhos. “Quando deixamos que nossa luz brilhe diante dos homens, estamos refletindo a Entrada Triunfal de Cristo”, disse ele naquele Domingo de Ramos. “Vejam o  irmão Eugene. Ele poderia ter escolhido ser como outros Homens-Grandes deste país, poderia ter decidido ficar em casa e não fazer nada depois do golpe, para não correr o risco de ver seus negócios ameaçados pelo governo. Mas não, ele usou o Standard para falar a verdade, apesar de o jornal ter perdido anunciantes por causa disso. O irmão Eugene se manifestou em nome da liberdade. Quantos aqui defenderam a verdade? Quantos refletiram a Entrada Triunfal?”

                  A congregação respondeu “Isso mesmo”, ou “Deus o abençoe”, ou “Amém”, mas não muito alto, para não se parecer com os membros daquelas igrejas pentecostais que brotavam como cogumelos; então todos ouviram em silêncio,  cheios de atenção. (....)

4 pontos sobre "a máquina de fazer espanhóis"

Luiz Roberto Gouvêa
1. O que me fez ler o livro
            O título do livro foi o anzol que me fisgou. Me intrigava como um autor angolano, mas de forte identidade portuguesa, conceberia esse mecanismo ou essa suposta metáfora da máquina de fazer espanhóis. O título despertou-me a curiosidade sobre os mecanismos envolvidos nessa “transnacionalização” e as duas etapas do processo: o apagamento da identidade natural e a aquisição de uma nova identidade nacional.   Conheço de perto o processo de “desbrasilização”, porém, mesmo tendo resistido a essa ameaça, me atrai entender como o homem, depois de despido de sua nacionalidade gentílica, se metamorfoseia em argentino, português ou japonês. Isso remexe a memória e me faz lembrar de um conhecido de infância que dizia  querer ser japonês quando crescesse.
            Na leitura do livro, descobri que a máquina de fazer espanhóis era mais complexa do que eu concebia, pois, ironicamente, quem mais resistia a submeter-se a essa máquina virtual era justamente um espanhol, nacionalizado em português quarenta anos atrás.  
            Não esclareci a minha curiosidade sobre a “transnacionalização”, mas não deixei de me deliciar com o estilo e a força desse livro de impacto.

            2. A voz
            Quase todo narrado na primeira pessoa, com exceção de um pequeno capítulo.  

            3. Os mitos literários
§  A identidade portuguesa como o “pobrezinho esforçado e bom”, a dificuldade e a comodidade com o convívio com o fascismo do período salazarista, o envelhecimento, a demência senil, o confinamento involuntário de velhos em asilos, a morte e a transcendência.
§  A poesia permeia todo o livro. Sua aproximação é tal que faz com que o autor extraia da poesia Tabacaria (Álvaro de Campos / Fernando Pessoa) o personagem Esteves (o Esteves sem metafísica), que, ao contrário do narrado no poema, no livro é repleto de metafísica.

            4. Carpintaria literária
            O autor dispensa letras maiúsculas, pontos de interrogação e travessões, num estilo que parece radicalizar o método de Saramago. É a força da narrativa, seu ritmo e expressão que fazem o leitor intuir onde estão as transições da narrativa para o diálogo e vice-versa. Esse estilo consegue surprendentemente realçar a força dos diálogos enquanto obriga o leitor a não desgrudar de uma palavra sequer.
            O narrador, após o trauma da perda de sua companheira, é confinado num lar de idosos e redescobre uma nova possibilidade de existência no convívio com seus companheiros de infortúnio. Os internados recém-chegados são instalados em quartos de onde se avistam crianças brincando no jardim. À medida que as condições de saúde se agravam, são deslocados para um pavilhão em frente a um cemitério. Diante da necessidade do atendimento ao afluxo de novos internos, paira no ar uma suspeita de que a administração do hospital acelere a despedida dos mais enfermos ou idosos. 
            Na interação com os demais velhinhos emergem as insuperáveis questões da existência e as cicatrizes do período salazarista.

            Curioso é perceber que no prefácio, Caetano Veloso fala mais de si do que do próprio livro (num estilo bem Caetano), o que não desmerece a qualidade e a sensibilidade  de sua avaliação. 

            Um livro que, na minha cabeça, talvez somente na minha, dialoga com a obra “Da senectude”, de Norberto Bobbio, mas que recomendo aos leitores de todas as idades.
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Leia o início do livro (clique na imagem para ampliar)

"Dentro de ti ver o mar" ou A fraqueza do sexo forte

Daniel Willmer 
A primeira coisa que me interessou em Inês Pedrosa foi seu rosto. Uma mulher sorridente, que olha para a câmera com segurança.
A segunda foi a capa de um livro seu, Fazes-me falta (2002): molduras de quadros vazias, em sua edição brasileira, da Alfaguara, livro que mostra algo insólito: monólogos de duas pessoas que se comunicam. No entanto uma delas, a mulher, está morta há muito tempo e é ela quem ampara e consola o companheiro. Mulher com força.
Fiquei com vontade de conhecer outros trabalhos da autora, pois tinha gostado de seu livro, embora com ressalvas. Confesso que de início, não fui além dos títulos, que acho muito convidativos e curiosos. Dentro de ti ver o mar (2012), Os íntimos (2010), A instrução dos amantes (1992), A eternidade e o desejo (2007). 
E nessa ordem leio seus livros. 
Para essa súmula fui saber um pouco mais sobre a autora. Publica desde os 12 anos! Muitos livros publicados, redação em periódicos, programas de tv. O primeiro romance aos 20, Fazes-me falta aos trinta; Dentro de ti ver o mar, aos 40. 
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O que de genuinamente novo existia nos fados de Rosa Cabral, sobretudo nas letras, era a ausência de um fatalismo fechado, reconfortante. No lugar da indolência diante do amor perdido, surgia o sexo, com os seus trânsitos e humores imprevisíveis, sobrevivendo heroicamente a todas as mortes. O seu corpo de bailarina transfigurava-se como uma página sublinhada. As palavras saíam-lhe dos braços, das ancas, da cintura, puxando-a pelos ombros, como se levitasse. Fechava os olhos e a substância do mundo sumia-se; entranhava-se músculo a músculo no continente da música. Subia-lhe da garganta uma voz desconhecida, uma voz de contenda, espessa, mansa, que nunca se curvava à resignação do grito.

Foco em Dentro de ti ver o mar. Rosa, uma dançarina, descobre numa visita a um presídio feminino que a dança não lhe serve mais e muda sua arte para o canto do fado. É sob a égide do fado que se constrói o romance entre Rosa e Gabriel. Os fados cantados por ela são altamente eróticos, e falam da sua paixão, contam detalhes da sua experiência amorosa. 
Trata-se de um Gabriel que descobrimos ser dono de uma loja de livros e um abusador de uma Rosa sempre com culpa de não ser tão boa quanto necessário. No romance, seguimos Rosa em suas tentativas de sair da posição de fragilidade e de encarar a realidade do abuso; em sua luta para negar a manutenção de uma realidade onde ela sempre é recusada, afastada pelo amante, que se esconde na família.
Rosa conhece Farimah em Lisboa, através uma amiga de sua mãe, engenheira iraniana que foge do Irã, de um casamento combinado pelos pais com um noivo muito mais velho. Foge para Londres e depois chega em Portugal para um casamento de araque com um soropositivo, do qual, casada, se liberta, e, encontra seu par. E Luíza, bem, essa só a história contará o seu destino.
Após a morte da mãe, Rosa descobre que tem um pai desconhecido e vem ao Brasil para buscá-lo, mas acaba por descobrir uma horrível verdade sobre sua mãe. 
Vale destacar que o Rio de Janeiro descrito pela autora é muito fidedigno daquilo que vivemos nessa cidade.
Fala Inês em entrevista ao Estadão:
A aceleração exponencial da vida tornou as relações pessoais mais complexas – e mais exigentes, também. Num mundo cada vez mais especializado e competitivo, sentimo-nos sempre em falta em relação aos outros (falta de tempo, falta de disponibilidade interior para a escuta, o que gera espirais de equívocos) e sentimos também uma crescente falta de consolação por parte dos outros. Vivemos atabalhoadamente entre culpas e desculpas; muitas vezes, sinto que a culpa age sobre nós como uma droga, desfigurando-nos  – acaba por se tornar mais fácil conviver com a culpa do que pedir desculpa e retomar o caminho, sem pesos. A própria leveza ficou pesada. E as mulheres perpetuam a educação para a culpa e a glorificação do autossacrifício, sim. Mesmo sem se darem conta disso, como é o caso de Rosa.

É nos e-mails trocados entre os personagens que vamos acompanhar a travessia de Rosa e o arraigamento de Gabriel, que mente à amante usando a esposa, a quem também trai constantemente com outras mulheres. Gabriel não vive plenamente nem os livros, nem a família, nem seus amores.
A narrativa remete a letras de fados, a poemas da autora, a e-mails, além da própria autora aparecer em comentários levando a ação adiante. Sobre a narração, encontrei um parágrafo bem elucidativo:
Sentir a ousadia da autora em criar uma fadista que destoa em suas letras do tradicional fado português é outro ponto que me cativou! Rosa é uma fadista erótica, fazendo do sexo uma espécie de sub-mote para o romance. É em suas letras que ela lança a sua dor e desejos, tirando a característica tradicional do fado, que é um certo fatalismo reconfortante, para dar a ele o tom imprevisível das paixões e do sexo.
http://almadomeusonho.blogspot.com/2014/04/dentro-de-ti-ver-o-mar-ines-pedrosa.html

As outras personagens funcionam mais como pontes para marcar o caminho percorrido por Rosa e não têm vida própria. Interessam apenas enquanto servem à sequência da trama, sendo difícil formar uma imagem de cada uma delas. Esse aspecto, contudo, não se constitui em aspecto negativo, pois mostra como outras mulheres carregam a mesma (in)dependência, e como isso é visto no mundo ainda dominado pelo masculino.
Em Dentro de ti ver o mar, as mulheres têm o mando e o jogo de cintura, num mundo onde os homens são muito arraigados a saberes antigos e pressupostos carregados de imobilismo que impedem que cresçam em humanidade.  Eis aí uma ponte possível com os romances de H. Murakami, onde as mulheres sempre tomam as iniciativas. Eu também acho que na vida acontece muito isso. Um exemplo são os homens que reclamam das “D.R.”, as discussões da relação, sempre puxadas pelas mulheres.
Essa incompetência masculina é denunciada por Inês Pedrosa. A beleza desse seu livro me calou fundo e imediatamente reatei com a autora, lendo “Os íntimos”, já finalizado.   
***
Leia um trecho de Dentro de ti ver o mar
Senhor que de vós não lembro
já o fim
nem o começo
IN NOVASCARTASPORTUGUESAS MARIA ISABEL BARRENO, MARIA TERESA HORTA
 E MARIA VELHO DA COSTA
I. Dança
Acordava no poço da noite com o coração enforcado naquela frase.
— Entrar em ti e dentro de ti ver o mar.
O ruído dos aviões já não a despertava. Habituara-se. Gostava do som dos motores no céu, provocava-lhe uma sensação de liberdade. Vivia no extremo onde nada evolui. Existe um momento em que o amor deixa de ser uma narrativa e se imobiliza. Tentara livrar-se da frase apagando o homem que a proferira. Mas a água do amor foge e volta, pesada, carregada de restos. Sem o amor que continuava a boiar naquela frase, Rosa não seria capaz de fazer tudo o que fazia, mesmo que nunca mais tornasse a ver o homem que o atiçara. Toda a sua ação era o sinal de que os dois estavam ainda no lugar desenhado pela frase, que aquele amor estava vivo. Paralisado, mas vivo. Aquele amor empurrara-a para o fado, a noite, a prisão.
Devia demasiado àquele amor de nada.
Um metro por um metro — era esse o espaço da dança. As prisioneiras resistiam à violência da esperança que a música sempre arrasta. Sonatas e canções fixavam-nas ao banho de sol. De início, Rosa pensou que as seduziria através da suavidade da melodia. Que as mulheres enjauladas sentiriam falta dessa mansidão. Que agradeceriam o intervalo do ruído das grades metálicas, do chocalhar dos chaveiros das guardas prisionais.
Rapidamente percebeu que o barulho do cárcere se sobrepunha ao das notas de música. Na prisão o silêncio não existe. Os passos, os gritos, o metal, tudo é constante. Só baterias e percussões fortes teriam capacidade para o anular. Se queria que as mulheres acedessem a prescindir de uma hora de sol para trabalhar o corpo, Rosa precisava de lhes fornecer ritmo e raiva. Não alegria. Como se sobrevive quando acaba o mergulho na alegria?
Talvez fosse possível inventar com elas uma espécie de alegria que não desaparecesse no fim da dança. Se dissesse isto em voz alta pareceria ingénua e desistiria mesmo antes de começar. Tomava consciência do poder avassalador da ingenuidade — um poder que precisava do segredo para funcionar. Onde há segredo há uma história suspensa e vontade de a continuar.
O corpo sabe mais do que é possível dizer. Os corpos daquelas mulheres eram os últimos redutos de liberdade. Mesmo confinadas às celas solitárias — um metro por um metro, sem luz. Ela iria inventar um modo de as tornar livres. Reconciliadas com o corpo, quando o mundo as quisesse castigar. E ela, por seu turno, aprenderia com aquelas mulheres a não depender de nada nem de ninguém. E a manter, ainda assim, a ideia de um sentido. Porque sem isso nada teria importância, a candura tornar-se-ia impossível, o gosto pela vida esfumar-se-ia.
Dançava desde criança, conhecia o valor da palavra equilíbrio. Fizera dele o seu ideal. O equilíbrio do corpo era o mais fácil: questão de técnica e disciplina. Aos sentimentos que erravam por dentro do corpo é que não sabia o que fazer, nunca soubera: oscilava sempre entre o excesso e a escassez.
Rosa desenhou uma dança de um metro por um metro, feita de gestos precisos, lentos. Uma dança desprendida do tempo e do lugar. Uma dança sem exterior. Igual ao amor que já não precisa de ninguém. As mulheres ficaram em silêncio a vê-la evoluir sob uma música líquida, dançando com os contornos do amor que a si mesmo se basta.
— Professora. Se a senhora me ensinar a dançar dessa maneira, eu já não preciso de sair daqui. Essa dança; lembrou-me a única coisa de que eu tenho saudades: nadar no mar com as minhas filhas. Se eu aprender a nadar assim, fico bem aqui.

Do conceito de literatura à literatura do conceito (entre visões)

O que é bom em literatura? O que vale a pena ler?

A expressão do conceito de literatura acontece no ato crítico, da literatura e sobre a literatura, sob o risco de se tornar um discurso autoritário que clama pelo poder de dizer o que é bom, quem são os modelos, os exemplos canônicos etc. A crítica afinal nunca escondeu o seu caráter cultural, social, histórico e político.

Mas Silvina Lopes e Paulo Roberto Pires, ao exporem as suas teorias, invocam igualmente uma  literatura do conceito e sobre o conceito, que busca expressar, compreender ou acessar uma realidade inexplicável e no entanto incontestavelmente exposta. Essa literatura emana talvez do desejo de transcendência do escritor ou do leitor, mas ela se impõe como uma coisa física, que provoca calor, frio, medo, paixão, pensamentos. 

De Paulo Roberto Pires, enxuguei os seguintes trechos:

Em O que é a filosofia?, Deleuze e Guattari dizem que a criação de conceitos obedece a três etapas:  imanência, insistência e consistência.

Escrever é imergir-se em referências de toda a ordem (criar um campo de imanência), insistir que dali vá sair alguma coisa com vida própria e, finalmente, trabalhar para alicerçar situações e personagens.

Escrever ficção é uma forma, mais difícil do que a não-ficção, de desmontar os clichês que rondam as vidas de todos nós. ... Escrever é a defesa possível para não ser engolido pela obviedade.

Da entrevista da Silvina Lopes, mostro pontos colhidos a partir de sua metade final, com partes grifadas e em livre edição, que me parecem conversar bem com os trechos de Paulo Roberto. Abstenho-me de comentários.

Poiesis escapa à finalidade, ao exercício de uma funçãoAquilo que se escreve tem que valer enquanto aquilo que é escrito e não porque foi escrito a partir de... E nisto não há qualquer falta de reconhecimento, não há uma ingratidão em relação àquilo de que se partiu. O próprio escrever já é a gratidão; o próprio pensar já é um gesto de gratidão, já é um gesto de louvor, de exaltação... 
O pensamento da escrita enquanto leitura, e vice-versa, tem consequências, ao mostrar que em cada lance se joga a responsabilidade de quem escreve, a responsabilidade de haver futuro


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Aqui iniciamos uma série de postagens, de entrevisões da literatura, frutos da esgrima crítica e conceitual com a necessária fruição e gozo, tanto na leitura quanto na escrita.