11 de julho de 2019

"Dentro de ti ver o mar" ou A fraqueza do sexo forte

Daniel Willmer 
A primeira coisa que me interessou em Inês Pedrosa foi seu rosto. Uma mulher sorridente, que olha para a câmera com segurança.
A segunda foi a capa de um livro seu, Fazes-me falta (2002): molduras de quadros vazias, em sua edição brasileira, da Alfaguara, livro que mostra algo insólito: monólogos de duas pessoas que se comunicam. No entanto uma delas, a mulher, está morta há muito tempo e é ela quem ampara e consola o companheiro. Mulher com força.
Fiquei com vontade de conhecer outros trabalhos da autora, pois tinha gostado de seu livro, embora com ressalvas. Confesso que de início, não fui além dos títulos, que acho muito convidativos e curiosos. Dentro de ti ver o mar (2012), Os íntimos (2010), A instrução dos amantes (1992), A eternidade e o desejo (2007). 
E nessa ordem leio seus livros. 
Para essa súmula fui saber um pouco mais sobre a autora. Publica desde os 12 anos! Muitos livros publicados, redação em periódicos, programas de tv. O primeiro romance aos 20, Fazes-me falta aos trinta; Dentro de ti ver o mar, aos 40. 
***
O que de genuinamente novo existia nos fados de Rosa Cabral, sobretudo nas letras, era a ausência de um fatalismo fechado, reconfortante. No lugar da indolência diante do amor perdido, surgia o sexo, com os seus trânsitos e humores imprevisíveis, sobrevivendo heroicamente a todas as mortes. O seu corpo de bailarina transfigurava-se como uma página sublinhada. As palavras saíam-lhe dos braços, das ancas, da cintura, puxando-a pelos ombros, como se levitasse. Fechava os olhos e a substância do mundo sumia-se; entranhava-se músculo a músculo no continente da música. Subia-lhe da garganta uma voz desconhecida, uma voz de contenda, espessa, mansa, que nunca se curvava à resignação do grito.

Foco em Dentro de ti ver o mar. Rosa, uma dançarina, descobre numa visita a um presídio feminino que a dança não lhe serve mais e muda sua arte para o canto do fado. É sob a égide do fado que se constrói o romance entre Rosa e Gabriel. Os fados cantados por ela são altamente eróticos, e falam da sua paixão, contam detalhes da sua experiência amorosa. 
Trata-se de um Gabriel que descobrimos ser dono de uma loja de livros e um abusador de uma Rosa sempre com culpa de não ser tão boa quanto necessário. No romance, seguimos Rosa em suas tentativas de sair da posição de fragilidade e de encarar a realidade do abuso; em sua luta para negar a manutenção de uma realidade onde ela sempre é recusada, afastada pelo amante, que se esconde na família.
Rosa conhece Farimah em Lisboa, através uma amiga de sua mãe, engenheira iraniana que foge do Irã, de um casamento combinado pelos pais com um noivo muito mais velho. Foge para Londres e depois chega em Portugal para um casamento de araque com um soropositivo, do qual, casada, se liberta, e, encontra seu par. E Luíza, bem, essa só a história contará o seu destino.
Após a morte da mãe, Rosa descobre que tem um pai desconhecido e vem ao Brasil para buscá-lo, mas acaba por descobrir uma horrível verdade sobre sua mãe. 
Vale destacar que o Rio de Janeiro descrito pela autora é muito fidedigno daquilo que vivemos nessa cidade.
Fala Inês em entrevista ao Estadão:
A aceleração exponencial da vida tornou as relações pessoais mais complexas – e mais exigentes, também. Num mundo cada vez mais especializado e competitivo, sentimo-nos sempre em falta em relação aos outros (falta de tempo, falta de disponibilidade interior para a escuta, o que gera espirais de equívocos) e sentimos também uma crescente falta de consolação por parte dos outros. Vivemos atabalhoadamente entre culpas e desculpas; muitas vezes, sinto que a culpa age sobre nós como uma droga, desfigurando-nos  – acaba por se tornar mais fácil conviver com a culpa do que pedir desculpa e retomar o caminho, sem pesos. A própria leveza ficou pesada. E as mulheres perpetuam a educação para a culpa e a glorificação do autossacrifício, sim. Mesmo sem se darem conta disso, como é o caso de Rosa.

É nos e-mails trocados entre os personagens que vamos acompanhar a travessia de Rosa e o arraigamento de Gabriel, que mente à amante usando a esposa, a quem também trai constantemente com outras mulheres. Gabriel não vive plenamente nem os livros, nem a família, nem seus amores.
A narrativa remete a letras de fados, a poemas da autora, a e-mails, além da própria autora aparecer em comentários levando a ação adiante. Sobre a narração, encontrei um parágrafo bem elucidativo:
Sentir a ousadia da autora em criar uma fadista que destoa em suas letras do tradicional fado português é outro ponto que me cativou! Rosa é uma fadista erótica, fazendo do sexo uma espécie de sub-mote para o romance. É em suas letras que ela lança a sua dor e desejos, tirando a característica tradicional do fado, que é um certo fatalismo reconfortante, para dar a ele o tom imprevisível das paixões e do sexo.
http://almadomeusonho.blogspot.com/2014/04/dentro-de-ti-ver-o-mar-ines-pedrosa.html

As outras personagens funcionam mais como pontes para marcar o caminho percorrido por Rosa e não têm vida própria. Interessam apenas enquanto servem à sequência da trama, sendo difícil formar uma imagem de cada uma delas. Esse aspecto, contudo, não se constitui em aspecto negativo, pois mostra como outras mulheres carregam a mesma (in)dependência, e como isso é visto no mundo ainda dominado pelo masculino.
Em Dentro de ti ver o mar, as mulheres têm o mando e o jogo de cintura, num mundo onde os homens são muito arraigados a saberes antigos e pressupostos carregados de imobilismo que impedem que cresçam em humanidade.  Eis aí uma ponte possível com os romances de H. Murakami, onde as mulheres sempre tomam as iniciativas. Eu também acho que na vida acontece muito isso. Um exemplo são os homens que reclamam das “D.R.”, as discussões da relação, sempre puxadas pelas mulheres.
Essa incompetência masculina é denunciada por Inês Pedrosa. A beleza desse seu livro me calou fundo e imediatamente reatei com a autora, lendo “Os íntimos”, já finalizado.   
***
Leia um trecho de Dentro de ti ver o mar
Senhor que de vós não lembro
já o fim
nem o começo
IN NOVASCARTASPORTUGUESAS MARIA ISABEL BARRENO, MARIA TERESA HORTA
 E MARIA VELHO DA COSTA
I. Dança
Acordava no poço da noite com o coração enforcado naquela frase.
— Entrar em ti e dentro de ti ver o mar.
O ruído dos aviões já não a despertava. Habituara-se. Gostava do som dos motores no céu, provocava-lhe uma sensação de liberdade. Vivia no extremo onde nada evolui. Existe um momento em que o amor deixa de ser uma narrativa e se imobiliza. Tentara livrar-se da frase apagando o homem que a proferira. Mas a água do amor foge e volta, pesada, carregada de restos. Sem o amor que continuava a boiar naquela frase, Rosa não seria capaz de fazer tudo o que fazia, mesmo que nunca mais tornasse a ver o homem que o atiçara. Toda a sua ação era o sinal de que os dois estavam ainda no lugar desenhado pela frase, que aquele amor estava vivo. Paralisado, mas vivo. Aquele amor empurrara-a para o fado, a noite, a prisão.
Devia demasiado àquele amor de nada.
Um metro por um metro — era esse o espaço da dança. As prisioneiras resistiam à violência da esperança que a música sempre arrasta. Sonatas e canções fixavam-nas ao banho de sol. De início, Rosa pensou que as seduziria através da suavidade da melodia. Que as mulheres enjauladas sentiriam falta dessa mansidão. Que agradeceriam o intervalo do ruído das grades metálicas, do chocalhar dos chaveiros das guardas prisionais.
Rapidamente percebeu que o barulho do cárcere se sobrepunha ao das notas de música. Na prisão o silêncio não existe. Os passos, os gritos, o metal, tudo é constante. Só baterias e percussões fortes teriam capacidade para o anular. Se queria que as mulheres acedessem a prescindir de uma hora de sol para trabalhar o corpo, Rosa precisava de lhes fornecer ritmo e raiva. Não alegria. Como se sobrevive quando acaba o mergulho na alegria?
Talvez fosse possível inventar com elas uma espécie de alegria que não desaparecesse no fim da dança. Se dissesse isto em voz alta pareceria ingénua e desistiria mesmo antes de começar. Tomava consciência do poder avassalador da ingenuidade — um poder que precisava do segredo para funcionar. Onde há segredo há uma história suspensa e vontade de a continuar.
O corpo sabe mais do que é possível dizer. Os corpos daquelas mulheres eram os últimos redutos de liberdade. Mesmo confinadas às celas solitárias — um metro por um metro, sem luz. Ela iria inventar um modo de as tornar livres. Reconciliadas com o corpo, quando o mundo as quisesse castigar. E ela, por seu turno, aprenderia com aquelas mulheres a não depender de nada nem de ninguém. E a manter, ainda assim, a ideia de um sentido. Porque sem isso nada teria importância, a candura tornar-se-ia impossível, o gosto pela vida esfumar-se-ia.
Dançava desde criança, conhecia o valor da palavra equilíbrio. Fizera dele o seu ideal. O equilíbrio do corpo era o mais fácil: questão de técnica e disciplina. Aos sentimentos que erravam por dentro do corpo é que não sabia o que fazer, nunca soubera: oscilava sempre entre o excesso e a escassez.
Rosa desenhou uma dança de um metro por um metro, feita de gestos precisos, lentos. Uma dança desprendida do tempo e do lugar. Uma dança sem exterior. Igual ao amor que já não precisa de ninguém. As mulheres ficaram em silêncio a vê-la evoluir sob uma música líquida, dançando com os contornos do amor que a si mesmo se basta.
— Professora. Se a senhora me ensinar a dançar dessa maneira, eu já não preciso de sair daqui. Essa dança; lembrou-me a única coisa de que eu tenho saudades: nadar no mar com as minhas filhas. Se eu aprender a nadar assim, fico bem aqui.

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