11 de julho de 2019

4 pontos sobre "a máquina de fazer espanhóis"

Luiz Roberto Gouvêa
1. O que me fez ler o livro
            O título do livro foi o anzol que me fisgou. Me intrigava como um autor angolano, mas de forte identidade portuguesa, conceberia esse mecanismo ou essa suposta metáfora da máquina de fazer espanhóis. O título despertou-me a curiosidade sobre os mecanismos envolvidos nessa “transnacionalização” e as duas etapas do processo: o apagamento da identidade natural e a aquisição de uma nova identidade nacional.   Conheço de perto o processo de “desbrasilização”, porém, mesmo tendo resistido a essa ameaça, me atrai entender como o homem, depois de despido de sua nacionalidade gentílica, se metamorfoseia em argentino, português ou japonês. Isso remexe a memória e me faz lembrar de um conhecido de infância que dizia  querer ser japonês quando crescesse.
            Na leitura do livro, descobri que a máquina de fazer espanhóis era mais complexa do que eu concebia, pois, ironicamente, quem mais resistia a submeter-se a essa máquina virtual era justamente um espanhol, nacionalizado em português quarenta anos atrás.  
            Não esclareci a minha curiosidade sobre a “transnacionalização”, mas não deixei de me deliciar com o estilo e a força desse livro de impacto.

            2. A voz
            Quase todo narrado na primeira pessoa, com exceção de um pequeno capítulo.  

            3. Os mitos literários
§  A identidade portuguesa como o “pobrezinho esforçado e bom”, a dificuldade e a comodidade com o convívio com o fascismo do período salazarista, o envelhecimento, a demência senil, o confinamento involuntário de velhos em asilos, a morte e a transcendência.
§  A poesia permeia todo o livro. Sua aproximação é tal que faz com que o autor extraia da poesia Tabacaria (Álvaro de Campos / Fernando Pessoa) o personagem Esteves (o Esteves sem metafísica), que, ao contrário do narrado no poema, no livro é repleto de metafísica.

            4. Carpintaria literária
            O autor dispensa letras maiúsculas, pontos de interrogação e travessões, num estilo que parece radicalizar o método de Saramago. É a força da narrativa, seu ritmo e expressão que fazem o leitor intuir onde estão as transições da narrativa para o diálogo e vice-versa. Esse estilo consegue surprendentemente realçar a força dos diálogos enquanto obriga o leitor a não desgrudar de uma palavra sequer.
            O narrador, após o trauma da perda de sua companheira, é confinado num lar de idosos e redescobre uma nova possibilidade de existência no convívio com seus companheiros de infortúnio. Os internados recém-chegados são instalados em quartos de onde se avistam crianças brincando no jardim. À medida que as condições de saúde se agravam, são deslocados para um pavilhão em frente a um cemitério. Diante da necessidade do atendimento ao afluxo de novos internos, paira no ar uma suspeita de que a administração do hospital acelere a despedida dos mais enfermos ou idosos. 
            Na interação com os demais velhinhos emergem as insuperáveis questões da existência e as cicatrizes do período salazarista.

            Curioso é perceber que no prefácio, Caetano Veloso fala mais de si do que do próprio livro (num estilo bem Caetano), o que não desmerece a qualidade e a sensibilidade  de sua avaliação. 

            Um livro que, na minha cabeça, talvez somente na minha, dialoga com a obra “Da senectude”, de Norberto Bobbio, mas que recomendo aos leitores de todas as idades.
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Leia o início do livro (clique na imagem para ampliar)

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