22 de setembro de 2020

[A] Mulher [não existe]

Casaco de pele, de Siron Franco (1984)

Mas eu sou um homem ainda.

Clarice Lispector

O espelho se virou, e de moça magra e bela, de chapéu, fluida e enamorável, me tornei o homem de corpo pesado, cenho fechado, punhos comprimidos. Nele descubro meu semblante, e a figura feminina se esvai, incapaz de competir com aquele mistério agonizante, em absurda compressão de dor, aprisionado no jorro vermelho, destituído de azul. Uma lava rubra, muito escura, ferve no peito e exige mais sangue, goles de vinho e nacos de carne. 


Publico minha força e minha potência. Meu olhar vazio, meu corpo endurecido, meus gestos contidos refletem a ausência do que possa eu me reconhecer. Sou único e individual. Minha presença toma todo o espaço. Domino e subordino o que me rodeia. Não ouço nada além de ruídos sem importância. Nada me surpreende, desconheço o encontro – alienado de memória, amor, esperança, fé. Ando por sobre a vida. 


Sou um homem, o que basta.

Ana Maria Albernaz

Pele de onça, de Siron Franco (1983)

16 de agosto de 2020

O BRANCO LUNAR

Maria Tereza Albernaz 

Parecia que o sonho era inventado, mas gravei exatamente como tinha sido.

Estou caminhando ao ar livre e ao virar para uma pequena estrada, vejo uma paisagem esbranquiçada. Me deparo com montanhas de pedra branca, trilhas de pedra branca, mesmo casas feitas com a pedra branca. Não é um lugar nobre, nem pobre demais. Não encontro vida, folhagem, flor. A medida que avanço, percebo ao fundo um mercado, uma feira de todos os tipos de coisas sem cor. Velhos pálidos de cabeça branca e jovens macilentos amigavelmente exibem suas mercadorias. O único animal que vejo é um cachorro quase sem pelo, enrolado em um pano desbotado sendo acarinhado por uma moça que chora. Me abaixo para apanhar no chão pedaços de ossos, ensaio um meio sorriso e ela se afasta fazendo levantar sua ampla saia de uma alvura resplandecente. Sigo seu percurso e me vejo diante de um lago cristalino. Entro e me deito na água transparente, pura, fria. Nas proximidades um homem calvo lança um anzol e pesca um peixe brilhante. Os movimentos e sons desaparecem e as formas somem como um pássaro atrás das nuvens. Neste momento faz-se um vazio total entre a noite e o dia. Na alvorada, começo a afundar lentamente e respiro lívido de medo. Reviro-me de costas, estendendo os braços para alcançar um tronco que sirva de boia. Estou preso ali sentindo a sucção me puxar para baixo. Aterrorizado vejo ao meu lado a moça flutuando em sua brancura imaculada. Depois me acalmo e sou levado também pela morte.   

 

Acordei aliviado por sentir que minha reação ao sonho foi de tranquilidade e aceitação. 

Branco sobre branco. Kazimir Malevich, 1918.

6 de agosto de 2020

Conveniências

Ruth Lifschits

                 Padre, quero me confessar. 

            Não estou à beira da morte e nem mal da cabeça. Estou velha, só isso. Pequei, errei, é hora de acertar as contas. Não sei quanto tempo mais tenho por aqui, já-já me chamam para o andar de cima.

            Católica? Sim, fui. Não se espante, explico. Tive todo o preparo, instrução religiosa mas, lá pelas tantas, parei de praticar. Não que tenha perdido a fé, ela se voltou para um Deus sem igreja. Esse é um dos meus pecados, bem sei. 

            Padre, por favor me dê esse tempo, quero me confessar conversando. Sei que concordou em me ver nesse quarto onde moro. Preciso que me ouça. Pode ser? Ótimo. 

Quarto no Brooklin. Edward Hopper, 1932.

            Me casei duas vezes, a primeira, com vinte e poucos anos, com meu grande amor. De véu e grinalda, união abençoada por Deus. Benção?!, pois sim! Danilo morreu de tifo antes de comemorarmos dois anos de casados. Um jovem, trinta anos incompletos, um doce de pessoa. O segundo casamento foi só no civil, o Deus católico descartado, esquecido.

            Casei com um judeu. Surpreso? Devo contar isso como pecado? Vejo que o desassosseguei. Casei-me sabendo que teria muitos problemas. Os judeus não me queriam, e os católicos desaprovavam a união. 

            Aceitei, quer dizer, aceitamos enfrentar as dificuldades como parte da vida. E Jaime era dez anos mais novo do que eu, uma viúva com um filho pré-adolescente. Ah, não falei do filho? A morte de Danilo precipitou o nascimento do menino, prematuro, com quase 8 meses de gestação. Pulmões ainda não inteiramente formados, criança de risco. Deu trabalho, exigiu muitos cuidados que não dei. Entregue à minha dor, desistindo da vida, larguei meu filho com a minha mãe e a minha irmã. Eu não via sentido em viver. Sem meu amor?! Impossível. Cheguei a iniciar um suicídio num dia em que fiquei sozinha em casa. Enquanto o bebê dormia, fui para a cozinha, me ajoelhei diante do fogão, liguei o gás do forno e enfiei a cabeça lá dentro.  Comecei a respirar fundo quando ouvi o choro – forte, doído. Desisti de morrer naquela manhã. Ele chorava e esperneava. Tirei-o do berço e me sentei com ele numa cadeira de balanço. Ele foi se acalmando e, de repente, sorriu para mim. Esse sorriso me fez mãe, me conquistou. 

            Desse dia em diante, tudo que eu fazia, pensava, planejava era para ele. Tentativa de suicídio, pecado forte, não? Conversei muito com aquele pequeno ser, cheguei até a dizer que se o nome dele não fosse Danilo, como o do pai, seria Salvador. Ele sorria e emitia sons me ouvindo e tentando me imitar. Ficamos muito unidos. Tinha tempo para me dedicar a ele com atenção e mimos pois costurava em casa. Ganhava dinheiro vestindo senhoras chiques. Assim pude ajudar nas despesas e nos cuidados com Danilo e com minha mãe.

            A costura me trouxe o segundo marido, Jaime. Um dia ele me seguiu na Rua do Ouvidor até me ver entrar numa loja de tecidos e aviamentos finos onde todos me conheciam por ser freguesa. Lá conseguiu meu endereço com um vendedor e eu passei a notar um rapaz magrelo na minha rua, nos finais de tarde, me encarando sempre que eu chegava à janela. Nos aproximamos e começamos a nos encontrar na calçada. Eu sem saber muito sobre ele e ele sem saber que eu tinha um filho de 12 anos. Danilinho era semi-interno no Colégio São José, ali mesmo na Tijuca onde morávamos. Sim, concordo, os irmãos Maristas são excelentes educadores. O fato é que Jaime já tinha visto meu menino e pensava que fosse filho da minha irmã. Ela, dez anos mais nova do que eu, parecia ser a mais velha de nós duas. Minha genética me favoreceu, sempre aparentei menos idade. Até hoje é assim, é o que dizem. Quantos anos o senhor acha que tenho? Pode dizer, seja sincero. Oitenta? Não, completo noventa no final do mês. 

            Bem, continuando. Parece conversa mas é confissão, creia-me. Pensei muito antes de querer a sua visita. Digamos que ensaiei bem o que lhe falaria. Com Jaime, à medida que fui ficando íntima, e que o namoro ganhou ares de sério, resolvi contar tudo: minha idade, a viuvez, o filho. Ele não esperava por nada disso. Minha aparência jovem o enganara. Passou dias distante mas voltou e me disse que era judeu, não religioso, nunca praticante, mas que a sua família não veria com bons olhos nosso namoro e muito menos uma união. E concluiu dizendo que tinha 10 anos menos do que eu, mas não via problema nisso. Foi a minha vez de ficar mal. Terminei o namoro. Pedi a ele que não me procurasse mais. 

            Ficamos meses afastados até que ele voltou, decidido a enfrentar tudo. Eu tinha sentido falta dele, muita mesmo. Cheia de coragem, aceitei a reaproximação. Ele passou a frequentar a casa, jantando conosco algumas vezes por semana. Danilinho me tranquilizou. Me disse que eu já tinha sofrido muito, queria minha felicidade. Jaime garantiu que meu menino seria um filho para ele. Mas os dois nunca conseguiram se aceitar de fato. O senhor falou bem, padre – dois estranhos. 

            Nos casamos, vida simples com poucos recursos. Jaime era funcionário da Light, ganhava pouco. Após batalhar muito, conseguiu um emprego melhor em São Paulo. Danilinho preferiu continuar no Rio, com a tia e a avó. Jaime fez carreira nessa empresa. Seu crescimento na firma começou quando ele assumiu a gerência de uma filial no Sul. Chegamos a Porto Alegre com um filho de cinco anos e lá moramos por dez anos.            

            Vejo agora que aceitar Danilinho vivendo no Rio, longe de mim, me foi benéfico: a diferença de  idade entre Jaime e eu pôde não existir. Um filho adolescente seria a mesma coisa que ter a verdade escrita na testa. Também foi conveniente para ele que não precisou explicar um enteado, a mulher viúva e mais velha.  Funcionou bem para nós dois – casal jovem com filho pequeno, início de vida, era assim que nos viam. Nenhum preconceito nos ameaçando. Só o dele ser judeu. Não era possível esconder seu sobrenome. Mas, seu carisma dava conta disso com facilidade. Vendedor nato, soube divulgar uma imagem social positiva, vencedora. Em casa já era diferente: exigente com o filho e controlador em relação a tudo. 

            De minha parte, ao deixar de dar carinho e proteção ao meu primeiro filho, não me permiti dar carinho e mostras de amor ao segundo. Vejo isso agora. Um pouco tarde, não é? Atuava como uma governanta incansável, impecável: casa limpa, roupas limpas e bem passadas, comida boa na mesa, doces e bolos sempre ao alcance das vontades fora dos horários rígidos. 

            Como a família dele me tratou? Mal. Em reuniões, ainda bem que raras, muitos não me cumprimentavam, nem falavam comigo. Minha sogra me hostilizava e era muito crítica. Eu não acertava o ponto de nenhuma comida judaica, não fazia nada certo e nem do seu agrado. Riva, irmã de Jaime, me tratava bem, mas sempre desconfiei de suas intenções. Ela queria ficar próxima para me vigiar, ver se eu era boa para o irmão e o sobrinho. 

Quarto em Nova Iorque. Edward Hopper, 1932.

            E assim foi minha vida. Viajamos, fui companheira em eventos sociais, mantendo a pose de porto seguro de meu marido. Meu filho Raul, não foi batizado e nem comemorou Bar Mitzvá. Caberia a ele escolher uma religião, quando quisesse e se quisesse. Mas foi circuncisado. Jaime disse que seria por razões higiênicas, mas convidou os pais e irmãos, fingindo uma celebração judaica. Nunca o perdoei por isso. 

            Aí estão os meus pecados, padre.  Ah, tem mais dois, desculpe.  Dois abortos que fiz antes de Raul nascer. Por quê?! Ora, mal tínhamos como nos sustentar! Claro que me senti culpada, tenho sentimentos!  Era isso ou ver o casamento desabar.  Outro casamento interrompido?! Para mim, não! Me dispus a fazer de tudo para que meu segundo casamento fosse duradouro. E foi. Vivemos juntos 50 anos. Bodas de Ouro que não foram comemoradas porque ele estava bem doente, terminal. Danilinho já tinha falecido, seus filhos pouco me visitavam. Raul, esposa e filhos há anos morando no exterior. Ele veio para o enterro do pai, cuidou dos nossos bens, me instalou nesse lar de idosos e administra minha vida lá de Portugal. Nos falamos por telefone. 

            Sim, distantes. Conveniente, não é?

            Algo de curioso, não serve para nada mas acho interessante: Danilinho faleceu no dia do aniversário do padrasto e Jaime se foi no dia do nascimento de Danilinho. 

            Mereço perdão?

Brejal, 12/06/20

1 de agosto de 2020

A arte da ficção – Entrevista com Raymond Carver

por Mona Simpson e Lewis Buzbee

Trechos extraídos de “The Art of fiction nº76”.

In: The Paris Review No. 88. Summer 1983*

Traducão de Daniel Willmer
Raymond Carver, 1984. Foto: Bob Adelman Archive

Raymond Carver, 1984. Foto: Bob Adelman Archive


ENTREVISTADORES – Então, de onde vêm suas histórias? Estou perguntando especialmente sobre as histórias que tem algo que ver com beber.

CARVER - A ficção que mais me interessa tem referência no mundo real. Nenhuma das minhas histórias aconteceu realmente, claro. Mas sempre há alguma coisa, algum elemento, algo que me dizem ou que testemunhei, que pode ser o início. Um exemplo: – Esse é o último Natal que você irá arruinar! Eu estava bêbado quando ouvi isso, mas lembrei. E mais tarde, muito depois, quando estava sóbrio, usando apenas aquela única linha e outras coisas que imaginei, imaginei tão precisamente que elas poderiam ter acontecido, fiz uma história – A Serious Talk [“Um papo sério”]. Mas a ficção que mais me interessa, a ficção de Tolstoy, Chekhov, Barry Hannah, Richard Ford, Hemingway, Isaac Babel, Ann Beattie e Anne Tyler, me parece autobiográfica até certo ponto. No mínimo, são referenciais. Histórias longas ou curtas não aparecem do nada. Isso me lembra uma conversa envolvendo John Cheever. Estávamos sentados em volta de uma mesa em Iowa City com algumas pessoas e ele ressaltou que, depois de uma briga familiar em sua casa uma noite, na manhã seguinte ele levantou e foi ao banheiro e encontrou algo que sua filha havia escrito com batom no espelho do banheiro: – Q-u-e-r-i-d-o papai, não nos deixe. Alguém à mesa então tomou a palavra e disse, – Reconheço isso de uma de suas histórias. Cheever disse, – provavelmente. Tudo que escrevo é autobiográfico. Agora, claro que não é verdade, literalmente. Mas tudo que escrevemos é, de algum modo, autobiográfico. Eu não me incomodo nem um pouco com ficção autobiográfica. Ao contrário. On The Road. Céline. Roth. Lawrence Durrell no Quarteto de Alexandria. Hemingway nas histórias de Nick Adams. Updike também pode apostar. Jim McConkey. Clark Blaise, um escritor contemporâneo cuja ficção é de fora-a-fora autobiográfica. Claro, você tem que saber o que está fazendo quando transforma suas histórias de vida em ficção. Você tem que ser imensamente ousado, muito habilidoso e imaginativo, e disposto a contar tudo sobre você.  Uma e outra vez é dito a você quando jovem que você deve escrever sobre o que conhece, e o que você conhece melhor do que seus próprios segredos? Mas, a não ser que você seja um tipo especial de escritor, e muito talentoso, é perigoso tentar escrever, tomo sobre tomo, a “História da minha vida”. Um grande perigo, ou ao menos uma grande tentação, para muitos escritores é se tornarem autobiográficos demais na abordagem de sua ficção.  Um pouco de autobiografia e muita imaginação são o melhor.

ENTREVISTADORES - Os seus personagens estão tentando fazer algo importante?

CARVER - Acho que estão tentando. Mas tentar e ter sucesso são duas coisas diferentes. Em algumas vidas, as pessoas sempre têm sucesso. E acho ótimo quando acontece. Em outras, as pessoas não têm sucesso no que tentam fazer, nas coisas que mais querem fazer, as grandes e pequenas coisas que dão suporte à vida. Essas vidas são, é claro, válidas para se escrever, as vidas das pessoas mal sucedidas. A maior parte da minha experiência, direta ou indireta, tem a ver com a última situação. Penso que a maior parte de meus personagens gostaria que suas ações valessem para alguma coisa.  Mas, ao mesmo tempo, chegaram ao ponto – como muita gente chega – de compreenderem que não é assim. Não dá mais certo. As coisas que alguma vez acharam importantes ou mesmo que valessem a pena não valem mais um centavo. É com suas vidas que estão desconfortáveis, vidas que veem se quebrando. Gostariam de acertar as coisas, mas não conseguem. E de modo geral sabem disso, eu acho, e depois disso, fazem o melhor que podem.

ENTREVISTADORES - Poderia dizer algo sobre um dos meus contos favoritos da sua última coleção? De onde veio a ideia original de “Por que não dançam?” [Why Don’t You Dance?]?1

CARVER - Estava visitando uns amigos escritores em Missoula no meio dos anos 1970. Estávamos todos sentados bebendo e alguém contou uma história sobre uma barmaid chamada Linda que uma noite se embebedou com seu namorado e decidiu colocar toda sua mobília de quarto no quintal. E o fizeram, até o tapete e o abajur, a cama, a mesinha de cabeceira, tudo. Havia quatro ou cinco escritores na sala, e depois que o sujeito terminou de contar a história, alguém disse, – Bem, quem vai escrevê-la?  Não sei quem mais possa tê-la escrito, mas eu escrevi. Não então, mas depois. Quatro ou cinco anos depois, acho. Mudei e acrescentei coisas, claro. Na verdade, foi a primeira história que escrevi depois de parar de beber.

ENTREVISTADORES - Como são seus hábitos de escrita? Você está sempre trabalhando numa história?

CARVER - Quando escrevo, é todo dia. É lindo quando isso acontece. Um dia se mesclando com o próximo. Às vezes nem sei o dia da semana. “A cantareira dos dias” [paddle-wheel of days}, como chamou John Ashbery. Quando não estou escrevendo, como agora, quando estou amarrado com tarefas de ensino como tenho estado, é como se nunca tivesse escrito ou tivesse desejo de escrever. Passo a ter maus hábitos. Fico acordado até tarde e durmo demais. Mas tá bem. Aprendi a ser paciente e tomar meu tempo. Tive que aprender isso há muito tempo. Paciência. Se acreditasse em signos, suponho que meu signo seria a tartaruga. Escrevo aos trancos e barrancos.  Mas quando estou escrevendo, fico muitas horas na escrivaninha, dez ou doze horas de cada vez, todos os dias. Adoro quando isso acontece. Muitas dessas horas de trabalho, compreendam, é para revisar e reescrever. Existe pouca coisa de eu goste mais que pegar uma história que estava pela casa por um tempo e retrabalhá-la. É o mesmo com os poemas que escrevo. Nunca tenho pressa em enviar algo logo depois de escrever, e às vezes guardo pela casa por meses fazendo isso ou aquilo, tirando isso e pondo aquilo.  Não leva muito tempo para fazer o primeiro rascunho da história, isso normalmente acontece em uma sentada, mas leva um tempo para as várias versões dela. Já fiz vinte ou trinta rascunhos de uma história. Nunca menos que dez ou doze esboços. É instrutivo e encorajador ver os primeiros rascunhos de grandes escritores.  Estou pensando nas fotos de provas pertencentes a Tolstoi, para nomear um escritor que amava revisar. Quero dizer, não sei se ele amava ou não, mas fazia um bocado disso. Estava sempre revisando, até no momento das provas. Ele revisou e reescreveu Guerra e Paz oito vezes e ainda estava fazendo correções nas provas. Coisas assim devem ser um incentivo a todos os escritores cujas primeiras versões são horríveis, como as minhas.

ENTREVISTADORES - Descreva o que acontece quando você escreve uma história.

CARVER - Escrevo a primeira versão rapidamente, como falei. Isso é frequentemente feito à mão. Simplesmente completo as páginas tão rápido quanto posso. Em alguns casos, existe uma espécie de taquigrafia pessoal, notas para mim mesmo para o que vou fazer depois quando voltar a ele. Algumas cenas deixo inacabadas; não escritas em alguns casos; e que depois carecerão de atenção meticulosa. Quer dizer, tudo requer atenção meticulosa – mas algumas cenas deixo até a segunda ou terceira versão porque, para escrevê-las corretamente levaria muito tempo na primeira versão. Com a primeira versão, alinhavo o esqueleto da história.  Então nas revisões subsequentes faço o resto. Quando termino a versão à mão, datilografo a versão da história e continuo dali. Sempre parece diferente para mim, melhor, claro, depois de datilografar.  Quando estou datilografando a primeira versão, começo a reescrever, somar e eliminar. O trabalho real vem depois, após três ou quatro versões da história.  É o mesmo com os poemas, apenas que os poemas passam por quarenta ou cinquenta versões. Donald Hall me contou uma vez que às vezes escreve cento e poucas versões de seus poemas. Pode imaginar?

ENTREVISTADORES - Como sua forma de trabalhar mudou?

CARVER - As histórias de “Do que falamos quando...” [What We Talk About When We Talk About Lovesão, até certo ponto, diferentes. É um livro muito mais autoconsciente no sentido de quão intencional era cada movimento era, quão calculado. Puxei e empurrei e trabalhei com essas histórias antes que chegasse ao livro de um jeito que nunca tinha feito com qualquer outra história. Quando o livro foi composto e estava nas mãos do meu editor, não escrevi nada por mais de seis meses. E então a primeira história que escrevi foi “Catedral” [Cathedral], que eu sinto ser totalmente diferente na concepção e execução de qualquer história que veio antes. Suponho que reflita uma mudança na minha vida tanto quanto na minha forma de escrever. Quando escrevia “Catedral”, experimentei essa pressa e senti, – É sobre tudo isso, essa é a razão pela qual fazemos isso. Foi diferente das histórias que vieram antes. Havia uma abertura quando escrevi a história. Sabia que tinha ido para o outro lado o mais longe que pude ou queria, cortando tudo até a medula, não apenas até os ossos. Mais longe naquela direção e estaria num beco sem saída – escrevendo coisas e publicando coisas que não gostaria de ler, eu mesmo. Essa é a verdade. Na revisão do último livro, alguém me chamou de escritor minimalista. Para o crítico significava um elogio. Mas não gostei. Existe algo sobre minimalista que denota estreiteza de visão e execução de que não gosto. Mas todas as histórias no novo livro, chamado “Catedral”, foram escritas num período de dezoito meses; e em cada um deles noto essa diferença.

ENTREVISTADORES - Você tem alguma noção de um público? Updike descreveu seu leitor ideal como um rapazinho numa cidade do meio-oeste encontrando um de seus livros na estante de uma biblioteca.

CARVER - É simpático pensar num leitor idealizado por Updike. Excetuando-se as primeiras histórias, não acho que seja um rapazinho numa pequena cidade do meio-oeste que esteja lendo Updike. O que esse rapazinho faria de O Centauro [The Centaur], ou Casais Trocados [Couples], ou Coelho redux [Rabbit Redux] ou O Golpe [The Coup]? Penso que Updike escreve para a mesma audiência que John Cleever disse que escrevia, – homens e mulheres inteligentes, onde quer que vivam. Qualquer escritor que se preze escreve tão bem e tão verdadeiramente quanto pode, e espera um público tão amplo e perspicaz quanto possível. Então você escreve o melhor que pode, e espera ter bons leitores. Mas acho que você está escrevendo para outros escritores até certo ponto – os escritores mortos cujo trabalho você admira, assim como os escritores vivos que você lê. Se eles gostarem, os outros escritores, há uma boa chance que outros – mulheres e homens inteligentes também gostem. Mas não tenho aquele menino que você mencionou em minha mente, ou qualquer outra pessoa, quando estou escrevendo de fato.

ENTREVISTADORES - Quanto do que escreve você finalmente descarta?

CARVER - Muito. Se o primeiro esboço da história tem quarenta páginas, geralmente terá a metade quando eu terminar com ele. E não é só uma questão de cortar, ou diminuir. Tiro muito, mas também somo coisas e depois somo mais e tiro mais. É algo que adoro fazer, por e tirar palavras.

ENTREVISTADORES - O processo de revisão mudou agora que as histórias parecem ser mais longas e mais generosas?

CARVER – “Generosas” é uma boa palavra para elas. Sim, e te digo o porquê. Na escola, há uma datilógrafa que tem umas daquelas máquinas de escrever da era espacial, um processador de texto, e posso dar a ela uma história para digitar, e uma vez que ela o digitou recebo a cópia fiel. Posso marcar até o coração ficar contente e devolver para ela; e no dia seguinte recebo minha história de volta, uma nova cópia fiel. Então posso marcá-lo de novo o quanto quiser, e no dia seguinte terei de volta uma cópia fiel de novo. Adoro isso. Pode parecer uma coisa pequena, realmente, mas aquela mulher e seu processador de texto mudaram a minha vida.

19 de julho de 2020

Pequeno ensaio sobre a palavra fim

Edna Bueno
Os passos do tio escada acima ecoavam. O barulho da sola dos sapatos nos degraus, estalando, fazia a casa inchar, crescer até arrebentar. Tapei os ouvidos, sabia o que vinha me dizer. Sentia uma água empedrada desde o estômago, guardada para chorar em silêncio, em paz.
Era domingo. Se não era domingo, um dia de céu  e vento, carros na rua, horas passando. De manhã, na visita no hospital, vi que se soltavam as amarras. A respiração roncava. Quando vem a calmaria, espera-se. Um bom velejador espera. Que o vento volte, que aponte no mar encrespando sua superfície. Sabe-se que ele vem, não a hora.
Quando meu pai me levava no barco à vela, eu prestava uma atenção descuidada aos movimentos. Nas manobras, a vela saía da linha do vento e ficava panejando até se alinhar novamente. Manobras mais lentas, maior o tempo do panejar. 
Éramos pequenos, eu e o irmão do meio. O pai amarrava uma corda na popa e nos puxava pelas águas da baía. O barco se arrastava com nosso peso e alegria. Porque era muito movimento, braços, pernas, mergulhar a cabeça, risadas. Um modo da alegria de se colocar no caminho, diminuindo a velocidade, querendo se demorar. Fomos pequenos um dia, eu, o irmão do meio e o caçula nos braços da mãe.
Meu tio despontou na porta do quarto:
            – Seu pai…
            Já não era pequena. E me afligia com o escuro que levava pessoa tão amada, o rosto, as mãos:
– Vou precisar de você.
Por que? Sempre eu a precisar dele. 
O vazio era de se pegar, apalpar. Eu aprendia a palavra fim.
***
"Regata" (2008), Mário Signorini
            Sábado, com certeza um sábado. Sol e vento, calçadão da Praia do Leme, o bebê de um mês no carrinho. Uma alegria cuidadosa, de gestos pequenos, de pegar o bebê e deixar no colo do pai. Então sigo em direção ao mar, ainda me viro para ver os dois e guardar a imagem daquela manhã. Quero molhar os pés, sentir a areia.
            Uma separação breve, meu filho sob cuidados paternos. Ele conheceria o avô pelas histórias, um dia aprenderia que o mar nunca acaba, que vai andando e empurrando o horizonte adiante. Que viver é algo desarrazoado e pulsa.
            A palavra fim me paralisa. Pressinto que serão separações e encontros, no nascimento corta-se o cordão. Pela vida, muitas vezes mais o cordão será cortado. Morte do pai e nascimento do filho se traduzem em sentimento semelhante, o mesmo vazio espesso, de se pegar. Fim e começo. O bebê chegou por meio de uma cirurgia, faca que corta pele e carne. Da sala de parto para o quarto sem ele. Rodeada de pessoas felizes e notícias do berçário. Tudo rodando. Vazio. Não se separa assim duas pessoas tão uma da outra. E por que se quer tanto um filho se a vida comporta a dor? Minhas mãos têm o formato das de meu pai.
            Penso outras palavras: porto, âncora, deriva. Os barcos nunca deixam de singrar as águas, velas brancas na linha do horizonte. Meu pai dizia que, quando se entra em um barco à vela, não se vai a lugar algum: já se chegou. Olho para trás, para meu rastro, para a frente. O fim não decifro. Um bom velejador espera, sereno na deriva da vida. Tem o controle do barco, o vento desenha os caminhos.
            O filho pela primeira vez à beira do mar. Um passeio banal, em família. As velas brancas no horizonte, a palavra fim mergulhada nas águas, ondas, vento, as calmarias.
            Volto para o calçadão. No inverno, as manhãs de sol são especialmente bonitas.
fevereiro 2019
Edna Bueno nasceu no Rio de Janeiro. E passa longas temporadas em Praia Seca. Pelo livro Entre os bambus, recebeu em 2000 o Prêmio França-Brasil de Literatura para crianças. Com A Ingrid veio ver o mar, ganhou em 2002 o Prêmio Adolfo Aizen, de literatura infantojuvenil. Mais informações AQUI na página da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil. 

18 de julho de 2020

Tempos imperfeitos

Luiz Roberto Gouvêa
O aprendizado em 2020 me deu forças para enfrentar as pandemias dos últimos anos. Faço parte dos 80% que sobreviveram às ondas sucessivas de flagelo e horror que têm castigado esse planeta miserável. Parece que alguém no Oriente destampou o alçapão do inferno e até agora não conseguiu fechar. Por ele escapa uma fileira de vírus, cada qual mais agressivo que o precedente. Além de dizimar 20% da população mundial, esse ataque legou a alguns sobreviventes sérias complicações de saúde.
No meu caso, a única sequela que tive foi uma estranha dificuldade adquirida de lidar com o tempo. Muitas vezes o ontem, o hoje e o amanhã se misturam ora se fundindo num único e longo dia, ora invertendo a sua sequência temporal. A ordem numérica que deveria reger as horas e os dias em vez de me ajudar me atrapalha.  As poucas pessoas de quem me aproximo se irritam com a pontualidade não garantida e com agendamentos de compromissos improváveis - às vezes marco uma visita ou um exame para uma data que já passou ou relato um fato que me aconteceu no futuro. Não têm a menor paciência com a inaptidão que vez por outra me acomete para controlar a fala e a escrita nos tempos verbais corretos.  Procurarei rever o texto para evitar o caos cronológico de minha narrativa.
Tentei sem sucesso convencer minha família e meus amigos de que os procedimentos que adoto se constituam como um escudo protetor quase perfeito. Somente meu médico, depois de ouvir os pormenores da minha teoria, imediatamente recomendou intensificar profilaticamente a prática diária, uma proteção adicional aos vírus que se avizinham. Estou preparado. Que venga el toro!
Mas o que me deixa mais seguro é a faculdade aprendida para detectar as pessoas, sintomáticas ou não, em estágio de contaminação ativa. Sobre as máscaras de pseudoproteção despontam olhares suspeitos que revelam o perigo de aproximação. Conscientes ou não, ostentam uma assimetria na expressão de cada olho: o direito ligeiramente melancólico, o esquerdo vivamente eufórico. Outra característica do risco de contágio é a forma com que rapidamente movimentam seus polegares em pequenos círculos. Toda vez que me deparo com esses verdadeiros vetores do mal, dou meia volta ou desvio bruscamente a direção. 
O leitor poderá duvidar de minha faculdade de corretamente decifrar os sinais de transmissão da doença pela simples observação dos olhos e dedos da mão, mas a minha sobrevivência num bairro que experimentou uma mortalidade brutal bem acima da média é um fato eloquente que dissipa quaisquer dúvidas.
Frequentemente alerto amigos e vizinhos assintomáticos sobre sua possível contaminação. Obviamente minha “dislexia cronológica” não ajuda a credibilidade de meus avisos. Uns ignoraram, outros correm para fazer exames. Morrerão muitos.
Como praticante de ioga, aprendi a inspirar apenas com uma das narinas sem levar a mão ao rosto. Por duas vezes tive a exata sensação, mais do que sensação, tive a convicção de ter alojado o vírus CV-25 na minha narina esquerda. Minha reação foi interromper a inspiração por aquela narina, passando a inspirar com a narina direita até chegar em casa para uma incômoda operação de desinfecção das narinas pela aplicação de chumaços embebidos em álcool e éter. Felizmente minhas fossas nasais estão treinadas para bloquear a intromissão de qualquer vírus indesejável.
Como proteção adicional, somente circulo nas ruas com roupas impermeáveis de mergulhador. Minha família considera esse meu novo hábito uma esquisitice e uma espécie de hostilidade social. Apesar disso não deixo de tomar essas precauções.
As últimas pandemias nos trouxeram grande sofrimento, contudo nos proporcionaram alguns benefícios. A menor circulação de pessoas nas ruas possibilitou reduzir o número de acidentes, a prática de crimes, o consumo de drogas, o alcoolismo e a poluição.  A própria previdência social conseguiu restaurar seu equilíbrio financeiro à medida que a doença foi geralmente benigna com os jovens e implacável com os mais velhos.  
Lamento que meus amigos se recusem a se tratar com os meus procedimentos, aprender ioga ou sequer atentar para os sinais dos olhos e dos polegares. Isso me deixa triste por ver tantas mortes que poderiam ter sido evitadas.
A história humana é assim. Desprezam-se a experiência, a ciência e o bom senso para favorecer a estupidez, a superstição, a insensibilidade, a discriminação dos desiguais, a exaltação de uma medicina corrompida pelos grandes laboratórios farmacêuticos e a inútil politização de cada vírus que emerge, uns tachados de vassalos do capitalismo, outros como instrumentos comunistas.

maio de 2020
Uma companhia francesa de teatro de rua - Royal De Luxe - representou uma odisseia com gigantes contando histórias. Fonte: gizmodo.com

20 de maio de 2020

LOVE IS ENOUGH [Basta o amor], William Morris

LOVE IS ENOUGH

Love is enough: though the World be a-waning,
And the woods have no voice but the voice of complaining,
Though the sky be too dark for dim eyes to discover
The gold-cups and daisies fair blooming thereunder,
Though the hills be held shadows, and the sea a dark wonder
And this day draw a veil over all deeds pass'd over,
Yet their hands shall not tremble, their feet shall not falter;
The void shall not weary, the fear shall not alter
These lips and these eyes of the loved and the lover.

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BASTA O AMOR

Basta o amor: embora o mundo esteja minguando,
E a floresta não tenha outra voz senão a das queixas,
Embora esteja o céu escuro demais para olhos fracos perceberem
As trepadeiras e as margaridas florescendo,
Embora as montanhas sejam vultos e o mar um colosso sombrio
E que esse dia desenhe um véu sobre cada fato passado,
Ainda assim, que as mãos não tremam, os pés não vacilem;
O vazio não esgotará, o medo não mudará
Os lábios e os olhos de amados e amantes.

Poema de William Morris (1834-1896), publicado em 1872
Tradução de Maurício Peltier 
(Poeta e designer. Autor de Poemas tribais, 1995 e Magistério Vodu, 2010)
William Morris nasceu em Walthamstow, Gră-Bretanha em 1834, e morreu em Hammersmith, Gră-Bretanha em 1896. Socialista, poeta, artista e arquiteto, fundou a Sociedade para a Proteção de Edifícios Antigos em 1877; a Liga Socialista em 1884, e sua própria editora, a Kelmscott Press em 1893. Sua produção literária inclui poesia narrativa, romances, ensaios e contos. Incorporou elementos da poesia clássica e de romances da Idade Média. 


"Trabalho tanto com a cabeça quanto com as mãos."

10 de maio de 2020

A peste e a pandemia

Introdução
Por força da época em que foi publicada (1947) e pelas próprias motivações explicitadas naquela altura pelo autor, a mais conhecida interpretação de A Peste de Albert Camus é a que aproxima a epidemia que teria devastado a cidade de Oran com a ascensão do nazismo na Europa. As brigadas voluntárias de combate à doença, nesse caso, refletiriam a ação da resistência francesa que Camus conhecia de perto; e outras inúmeras alusões claramente remeteriam ao cenário da guerra, como o negacionismo dos cidadãos, o fechamento da cidade, o contrabando, o tratamento dado aos cadáveres (similar ao que acontecia nos campos de concentração), a separação de familiares, a restrição à circulação, além do uso de um léxico em que abundam expressões como “vida de prisioneiros”, “interminável derrota” etc. Esse inevitável paralelo, no entanto, valeu duras críticas ao autor, feitas por Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Roland Barthes, que condenaram a comparação de um problema histórico (o nazismo) com um fenômeno natural (a epidemia). Não é possível, diziam eles, fazer uma analogia entre as questões morais enfrentadas num combate com seres humanos e aquelas na luta contra os avanços de uma doença.
Camus respondeu às críticas. Sua frase mais famosa em sua defesa era a de que A Peste era mais do que uma crônica da resistência, embora certamente não menos. Em seu relato dos acontecimentos na cidade assolada pelo incontrolável alastramento da doença, outras interpretações são possíveis. Uma delas é a religiosa, atribuindo-se à peste a força de um castigo divino. Um dos personagens do relato, o Padre Paneloux, abusa de metáforas que culpabilizam a fraqueza moral da humanidade. A reação ao mérito da punição enviada por Deus, preconizada pelo padre aos devotos da Igreja, no entanto, diante da presença da morte de uma criança inocente, sofre uma mudança, passando da contrição dos pecados à aceitação inconteste, mesmo que não se compreenda os desígnios divinos. Outra interpretação da peste estaria na sua visão, trazida por um outro personagem, Tarrou, também como uma metáfora da culpabilidade humana, porém do ponto de vista laico. Somos todos mais ou menos pestilentos, discursa o personagem. Como réus ou como cúmplices, não conseguimos “recusar tudo aquilo que que, de perto ou à distância, por boas ou más razões, provoca a morte ou justifica que se mate”. Contudo, o autor constitui como interpretação primordial da peste, o mal a que está sujeita a condição humana. A fim de combater a argumentação de Barthes, Camus escreveu que A Peste tem um significado social, mas também um existencial, da luta do ser humano com o absurdo da vida.
A peste demonstraria o absurdo da nossa condição: ter a morte como horizonte, e mesmo assim se recusar a parar de lutar. O relato traria assim à tona o que o autor designaria como o “homem revoltado”, que recusa o suicídio; que aceita a sua condição sem recorrer a um Deus ou a explicações metafísicas; que age no momento presente; e que afirma a solidariedade e a cumplicidade. Camus cumpre, dessa maneira, um ciclo criativo que parte do homem solitário (expresso no romance O estrangeiro e no ensaio O mito de Sísifo) ao homem solidário.  
É a partir desse enorme cabedal de discussões e análises da obra que se introduz aqui uma leitura atual, iluminada pelo advento de uma espécie de peste enfrentada pela humanidade nesse momento. Poderia este romance corroborar para o enfrentamento lúcido do que nos acomete? Pensar sobre tal livro nos ajudaria a refletir sobre a nossa própria reação face ao absurdo da pandemia provocada pelo rápido contágio com o COVID-19? Estando, tal como os habitantes de Oran, cativos do nosso cotidiano e dos nossos hábitos, como reagir? Como nos mover nesse cenário tão obscuro? Também, na crônica de nossos dias, fica patente o absurdo das desigualdades em nossas relações sociais e a irrealidade do nosso governo. Também nesse momento, por falta de imaginação, muitos recusam a ver o que está diante de seus olhos. Vivemos sob um sistema abstrato que nos isenta da responsabilidade diante da pandemia. Camus defende que a resposta ao absurdo se situa na ação, sem expectativa de que se encontre uma solução universal. Respostas individuais possibilitam ações coletivas; a liberdade de cada um permitirá a colaboração de todos pela melhoria da condição humana. Contudo, é preciso sempre reagir à injustiça e ao sofrimento que, aos olhos do revoltado, não cessam nunca de ser um escândalo.
Assim como em Oran, enfrentamos dilemas morais. No curso da atual pandemia, todos precisamos fazer escolhas muito difíceis e aceitar as consequências (inclusiva as fatais) de nossos atos. Ficar em casa, por exemplo, se tornou sinônimo de consciência e solidariedade. Da mesma maneira, é preciso manter o salário dos trabalhadores a fim de que possam permanecer sem trabalhar e em condições dignas. Em nossas atitudes, reside não a eliminação de uma doença simbólica mas a sua limitação real. Com relação ao uso metafórico e a manipulação política nos discursos acerca da pandemia, as considerações de Susan Sontag, em “A doença e suas metáforas”, são de extrema valia. Ainda não temos o devido distanciamento para compreender o grau de profundidade da crise em que estamos metidos. Há inúmeras interpretações que relacionam a presente catástrofe com o modo como a humanidade tem se conduzido, fonte do desequilíbrio ambiental. Mesmo com a melhor das intenções, é preciso cuidado para não incorrer numa manipulação discursiva da horrível situação em que nos encontramos, em detrimento da consciência. 
Em A Peste, o herói da história não é Rieux, o médico, nem mesmo Tarrou, o temerário chefe das Brigadas voluntárias. O que o narrador do relato propõe é que a figura heroica por excelência nessa história seja Grand, um obscuro funcionário, cuja única ambição é realizar digna e honestamente o seu trabalho, além de incansavelmente buscar objetividade e beleza em sua expressão. De fato, este trio de personagens atuam de modo complementar, apresentando de modo contundente a passagem do ser solitário ao solidário. 

A cidade e seu narrador 
Daqui em diante, tudo o que se escreverá se fará pelo método da paráfrase, como se esticássemos um papel transparente sobre o livro e sobrepuséssemos frases e expressões decalcadas em um desenho mais sucinto. Desse modo, tal como o narrador, iniciamos focando a cidade de Oran, que tem um papel crucial nos acontecimentos. Oran, no entanto, poderia ser qualquer outra cidade pois, como diz o narrador; é “um lugar neutro”, onde se percebe a mudança das estações pelo céu e a chegada da primavera pela qualidade do ar e pelas cestas de flores que se vendem no mercado. Oran é assim a nossa cidade. Em sua pequenez, mal consegue abarcar a quantidade de atividades e de desejos. Tudo então tem de ser feito ao mesmo tempo. Todo mundo é muito ocupado, “frenético e distante”. Trabalho, amor e morte transcorrem “aparentemente sem suspeitas”, de modo “inteiramente moderno”. Amar, por exemplo, é devorar, e rápido; ou simplesmente se habituar. Quanto à beleza natural que lá existia, as construções a emparedaram.
Quando a epidemia chega, pega a cidade de surpresa. A ciência procura mostrar o que está acontecendo, mas a imaginação dos cidadãos e dos governantes não permite. É preciso continuar o zumbido, a mistura entre felicidade e tacidurnidade. A certeza do trabalho diário tem de continuar. O essencial é cumprir o dever. Quanto ao “resto”, “prendia-se a fios, a movimentos insignificantes”. Para disfarçar o abatimento, graceja-se. Qualquer semelhança com o que vivemos no contexto da atual pandemia, não é uma coincidência.
Ao narrador da história, o que cabe dizer, a não ser “isso aconteceu”? Os acontecimentos durante a peste interessam “à vida de todo um povo”; “há milhares de testemunhas que irão avaliar nos seus corações a verdade”. O narrador não se revela, a não ser quando tudo passa. Procurando ser mais do que uma voz individual, recolhe depoimentos e se envolve pela força das circunstâncias. Munindo-se de documentos, torna-se historiador. Sem dispensar o seu próprio testemunho, acolhe confidências e textos alheios. 
O narrador busca, portanto, a objetividade. Não quer modificar os acontecimentos pelos “efeitos da arte”. Sua tarefa passa a ser a de dar oportunidade ao acaso que tantas vezes só age quando provocado. Confessa assim que a distração já não lhe é possível. Ao mesmo tempo, segundo “a lei de um coração honesto”, toma deliberadamente o partido da vítima e quer se juntar aos seus concidadãos no que eles têm em comum: o amor, o sofrimento e o exílio.  Decide narrar para “para deixar ao menos uma lembrança da injustiça e da violência” e “para dizer simplesmente o que se aprende no meio dos flagelos: que há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”.
Em Oran, a peste começa com a morte de ratos, a céu aberto, num espetáculo que a nós, leitores, à distância, pareceria incontestavelmente intolerável. Mas de início o surgimento de ratos lançando sangue pela boca parece apenas motivo de preocupação. Por distração e pela ignorância geral, as cambalhotas e guinchos dos ratos, ao alcance da vista de todos, nada mais motivaram do que a contemplação. Enquanto apareciam mais e mais ratos, as pessoas circulavam, as mães cuidavam de seus filhos, mas muito lentamente o sentimento se transmutava da curiosidade à irritação. Os acontecimentos tornam-se mais e mais repugnantes: “Nas calçadas também, ocorria a mais de um notívago sentir sob os pés a massa elástica de um cadáver ainda fresco. Dir-se-ia que a própria terra onde estavam plantadas nossas casas se purgava dos seus humores, pois deixava subir à superfície furúnculos que, até então, a minavam interiormente.”
Enquanto isso, a “municipalidade nada se tinha proposto e nada previra, mas começou por reunir-se em conselho para deliberar”. Quando se anuncia a incineração de 6.231 ratos num só dia, reconhece-se por fim a ameaça que ronda a cidade. E, quando morre o primeiro homem, a surpresa dá lugar ao pânico. Muitas mortes se seguiram, mas como em geral ainda aconteciam em casa, pouco foram noticiadas. As pestes, assim como as guerras, diz o narrador, sempre pegam as pessoas desprevenidas. Muitos negaram o flagelo de modo veemente. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Julgavam-se livres. Os mortos não têm significado se não os vemos, “milhões de cadáveres semeados através da história esfumaçam-se na imaginação”. As autoridades não querem espalhar o alarme. Custam a nomear os acontecimentos e a assumir as responsabilidades. Os médicos já podem discernir os sintomas e alertam que “não devemos agir como se metade da cidade não corresse o risco de morrer, porque senão ela morrerá de fato”. As medidas governamentais, porém, são insuficientes. Parece que, por falta imaginação, os governantes são incapazes de interpretar os números. Mas quando o medo bate com força à porta, o prefeito de Oran resolve fechar a cidade.

Quem somos nós, nessa peste?
O cronista narra os acontecimentos enquanto demarca as diferentes escolhas existenciais dos personagens. Em uma leitura catártica, os leitores ora se identificam com um, ora com outro, reconhecendo em si próprios os dilemas morais que os personagens carreiam. Assim, nos perguntamos: Somos como Tarrou, capazes de sentir os gestos cotidianos mais insignificantes em toda a sua extensão? Simpático e modesto, Tarrou almeja ser um “assassino inocente”, consciente de que, pela lógica em que vivemos, não se pode “fazer um gesto neste mundo sem se correr o risco de fazer morrer”. Para ele, “poder ser santo sem Deus é o único problema concreto” que temos hoje.
Somos como o Dr. Rieux, seres cansados e assim mesmo decididos e recusar a “injustiça das concessões”? Distraído e ao mesmo tempo bem informado, o médico sente a realidade do perigo, o “ligeiro temor diante do futuro”. Pressente que, dentre a população, grande parte está impaciente por romper o fio da vida pela realização de movimentos insignificantes. Rieux é um ser mais solidário com os vencidos do que com os santos ou os heróis.  E sua grande ambição é ser humano.
Somos como Grand, frágeis e obscuros funcionários com “um arzinho de mistério”? Com um sorriso melancólico, esse pequeno ser (que, para Rieux, é o grande herói dessa história) assume que resiste e continua a trabalhar, não pela ambição mas pela “perspectiva de uma vida material assegurada por meios honestos”. Tem a coragem de assumir seus bons sentimentos, mas custa-lhe evocar emoções simples por não conseguir encontrar a palavra certa. Ao final, feliz e sobrevivente, consegue eliminar todos os adjetivos da única frase perfeita que pretende escrever na vida.
Somos como Rambert, cuja única ideia era se evadir da prisão que passou a ser para ele a cidade de Oran? Em suas tentativas de voltar à sua cidade de origem, Rambert adquiriu um olhar crítico sobre os governantes da cidade. Havia, segundo ele, os argumentadores ou formalistas;  os bem-falantes, que asseguravam que nada daquilo podia durar; “os importantes, que pediam ao visitante que deixasse uma nota resumindo seu caso, informando que decidiriam sobre o pedido; os fúteis, que lhe propunham vales de alojamento ou endereços de pensões econômicas; os metódicos, que o faziam preencher uma ficha e arquivavam-na em seguida; os exaltados, que levantavam os braços e os aborrecidos, que desviavam os olhos; havia, enfim, os tradicionais, de longe os mais numerosos, que indicavam a Rambert outra repartição ou nova diligência a fazer”. E, depois de tantas tentativas, depois de conseguir uma fuga de modo ilegal, desiste, pois se partisse sentiria vergonha de ser feliz sozinho.
Há ainda o personagem Cottard que, por ser procurado pela polícia antes da peste estourar, sentia-se bem com o sofrimento que agora era geral, aproximando-o dos seus concidadãos, pois “o terror parece-lhe então menos pesado de suportar que se estivesse totalmente só”. Somos como essa figura desprezível e digna de pena, que busca lucrar com a situação? Ou somos como o padre Paneloux, pensando “que a peste tem o seu lado bom, que abre os olhos, que obriga a pensar”, que devemos amar o que não conseguimos compreender? Ou, por fim, somos apenas como o personagem asmático a quem só importava a hora das refeições? 

A peste é a pandemia?
Transformando muito (mas muito) livremente o passado das palavras expressas na narrativa, em A Peste, pelo presente da Pandemia que atravessamos; atualizando certos termos, como “telegramas” por mensagens da internet; substituindo o eles pelo nós; extraindo particularidades do sítio da cidade de Oran para evidenciar o isolamento social e global que o Coronavírus nos impinge; selecionando trechos mais significativos; tendo o cuidado de não pintar o quadro com a tinta da autocomiseração, eis que nos defrontamos com uma compreensão muito arguta do que atualmente estamos passando:

O individual e o coletivo
Já não há destinos individuais, mas uma história coletiva, em que doença e sentimentos são compartilhados por todos.

A comunicação
Alguns se exprimem do fundo de longos dias de ruminação e de sofrimentos, e a imagem que transmitem arde muito tempo no fogo da espera e da paixão. Outros navegam em emoções convencionais que se vendem nos mercados, e que são transmitidas em séries.

Quando o silêncio é insuportável (e já que é muito difícil encontrar a linguagem do coração), resignamo-nos e adotamos também a língua dos mercados e falamos igualmente de maneira convencional. As dores mais verdadeiras adquirem o hábito de se traduzir em fórmulas banais de conversação.

Exílio e emprisionamento
Sabemos que nossa separação está destinada a durar e que devemos tentar nos entender. Nos reintegramos, afinal, à nossa condição de prisioneiros, reduzidos ao nosso passado e, ainda que busquemos viver no futuro, logo renunciamos, ao experimentar as feridas que a imaginação inflige aos que nela confiam.
Relação com o tempo e o espaço
Pela primeira vez todos nos tornamos sensíveis às cores do céu e aos odores da terra causados pela mudança das estações.

(In)consciência
Com o tempo, ao constatar o aumento das mortes, a opinião pública toma consciência da verdade. O aumento, pelo menos, é eloquente. Mas não é bastante forte para impedir que concidadãos, em meio à sua inquietação, tenham a impressão de que se trata de um acidente, sem dúvida desagradável, mas, apesar de tudo, temporário.

No auge da doença
E, como não podemos pensar sempre na morte, não pensamos em nada. Estamos de férias.

Só há lugar no nosso coração para uma esperança muito velha e muito taciturna, a mesma que nos impede de nos entregarmos à morte e que não é mais que simples obstinação em viver.

Tem-se a impressão de que a doença se esgotará por si própria ou, talvez, de que se retirará depois de ter alcançado todos os seus objetivos.

Todos nós nos nutrimos do mesmo pão do exílio, esperando sem o saber a mesma reunião e a mesma paz perturbadoras.

Toda a cidade parece uma sala de espera.

Dos sentimentos e do tempo
Nos adaptamos, como se costuma dizer, porque não há outro modo de proceder. Temos ainda, naturalmente, a atitude da desgraça e do sofrimento, mas já não os sentimos. O hábito do desespero é pior que o próprio desespero?

Sem memórias e sem esperança, instalamo-nos no presente. Na verdade, tudo se torna presente para nós. A pandemia, é preciso que se diga, tira a todos o poder do amor e até mesmo da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e para nós só há instantes.
As desigualdades
A especulação intervém e oferece, a preços fabulosos, os gêneros de primeira necessidade que faltam no mercado habitual. As famílias pobres veem-se, assim, numa situação muito difícil, enquanto às ricas não falta praticamente nada. A pandemia, que, pela imparcialidade eficaz com que exerce seu ministério, deveria ter reforçado a igualdade entre nossos concidadãos pelo jogo normal dos egoísmos, torna, ao contrário, mais acentuado no coração dos homens o sentimento da injustiça.

A partir desse momento, na realidade, vê-se sempre a miséria mostrar-se mais forte que o medo, tanto mais que o trabalho é pago na proporção dos riscos.

O final da Pandemia
Na verdade, o nosso mais forte desejo é agir como se nada tivesse mudado e que, portanto, nada, em certo sentido, será mudado, mas, em outro sentido, não se pode esquecer tudo, mesmo com a vontade necessária, e a pandemia deixará vestígios, pelo menos nos corações.

Toda a cidade lança-se às ruas, para festejar esse minuto em que acaba o tempo dos sofrimentos e ainda não começa o tempo do esquecimento.

Sabemos agora que, se há qualquer coisa que se pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a ternura humana.
Um sopro
A uma certa altura, no auge da doença, Rieux diz a Rambert que “não se pode, ao mesmo tempo, curar e saber”. E que se devotar à cura é o mais urgente. Ao final, ele conclui que “não podendo ser santos e recusando-se a admitir os flagelos, os seres humanos se esforçam no entanto por ser médicos”. Embora tenha consciência que o micróbio não morre, apenas entra em estado de inércia, ou seja, sabedor de que não se elimina o absurdo da vida, também ele sente o estado de suspensão que o final da peste promove. Reflexivo, Rieux assinala então que o que resta a quem passou pela epidemia é a sua lembrança e o fato de ter conhecido a amizade ao combatê-la. O que resta aos sobreviventes, ele pensa, é o conhecimento – o calor da vida e uma imagem de morte –, assim como a memória. Mas, sendo tão duro viver apenas com o que se sabe e com aquilo de que se tem lembrança, não é possível abrir mão de se esperar. Não há paz sem esperança.
Bia Albernaz