24 de novembro de 2009

Uma única diferença

Ruth Lifschits
     A noite chegara. O silêncio tomara conta de tudo. O apartamento dormia – Eleonora, não.  Mas todas as tarefas do dia tinham sido cumpridas à risca. Estava na hora de parar.     
     Preparou um banho quente. Precisava relaxar. Sentia os músculos tensos e doloridos. Escolheu um CD e, ao som de flautas e oboés, enfiou-se na banheira. Recostou a cabeça, fechou os olhos e entregou-se aos seus pensamentos.  Não evitou nem censurou nada. Deixou-se tomar pela música e pelos sentimentos que surgissem.  Só saiu da banheira quando a água esfriou.
     Vestiu um conjunto de dormir comprado em São Paulo quando fora visitar a filha no mês anterior. As duas tinham passado uma tarde inteira de compras e conversas em um shopping. Eleonora não gostava destes programas, mas adorava estar com a filha.  Adriana tinha o dom de fazer a mãe  rir e se descontrair. Ao ouvir que Eleonora precisava de  uma camisola para uma ocasião especial, quis saber de detalhes, já fabricando uma história romântica com personagens, encontros e um enredo completo. Nada fora feito para impedir  que as fantasias da filha tomassem corpo e o clima de mistério e romance dominasse o ambiente. Sem confirmar nada, mas deixando possibilidades no ar, tinha ouvido a filha exclamar: “Que bom, mãe!  A vida continua”.     
     Eleonora foi para a sala. Aprovou ver tudo em seus lugares e em perfeita ordem.  Olhou para os retratos que lotavam a pequena mesa ao lado do sofá: Adriana sorridente no dia da formatura; Eleonora e Fernando no dia em que se casaram; a foto da  premiação de Eleonora como funcionária do ano; ela, Fernando e Adriana no último Natal juntos. E lembrou-se da manhã em que o tinham encontrado sentado em uma poltrona, a cerveja inacabada e os jornais do domingo espalhados pelo chão - morto. Infarto agudo fulminante. “Ele não sofreu”, garantiram os médicos.  Ela e a filha preferiram acreditar nessa versão.  
     Eleonora serviu-se de um licor, acendeu um cigarro e foi para a janela olhar a noite. Pensou na filha. Certamente estava em casa, navegando na internet. Adriana trabalhava demais, não parava, dormia pouco. Horas antes tinha visto na televisão a mais recente campanha publicitária da filha. Uma beleza de trabalho. Pensou em ligar para ela, só para ouvir sua voz. Quase cedeu ao impulso, mas conseguiu se conter.
     Adriana tinha sido uma criança fácil de lidar. Seu caminho neste mundo era uma via reta, desimpedida e  espaçosa. Sabia o que queria. Vivia para o trabalho, fazendo o que gostava. Ela e o marido trabalhavam juntos, sempre envolvidos em viagens e muitos projetos. Não falavam em ter filhos. Eram felizes assim.
     Terminado o cigarro, Eleonora fechou a janela da  sala e foi até a cozinha. Escreveu um bilhete para  a empregada - dormiria até tarde e  não queria ser incomodada. Pegou um copo d’água e fechou-se em seu quarto.
     Cerrou as cortinas, ajustou o ar condicionado no máximo e ligou a televisão. Queria um programa qualquer que enchesse o quarto com vozes e música. Sentou-se na beira da cama  e  passeou os olhos pelo quarto sem se fixar em nada. Sua boca estava seca,  a respiração rápida e curta e o coração acelerado. Bebeu o copo d’água.
     Assustou-se com o toque do telefone na mesa de cabeceira. Viu no leitor de  chamadas que era a filha.  Trêmula, levou o fone ao ouvido. 
     - Mãe? Alô, alô!
     - Sim, filha.
     - Cê tava dormindo, né mãe? Desculpe, mas eu preciso te contar uma coisa.  
     E Adriana continuou falando, cheia de entusiasmo e tão rapidamente que Eleonora teve dificuldades em registrar tudo.
     Após se despedir da filha, ficou pensando nela e na conversa que tinham tido. Admirava a jovem, seu caráter, sua garra e sua alegria de viver. Ela e Fernando tinham sido bons pais e toda a dedicação tinha valido o esforço. Pena ele não estar ali com ela para conversarem sobre a filha, como gostavam tanto de fazer. Tudo na vida dos dois tinha sido planejado e trabalhado para dar certo. Ao se casarem, decidiram que só teriam um filho. Queriam cuidar da criança da melhor maneira que conseguissem, sem que para isso precisassem abrir mão de suas carreiras profissionais.   Eleonora sorriu, certa de ter sido uma boa  mãe e esquecida da trabalheira que tivera com a filha asmática. Os fins de semana sem descanso e as férias obrigatoriamente a três também já tinham perdido todo e qualquer peso.
     O  telefonema a deixara agitada. Ela precisava recuperar a calma e o controle. Foi até a cozinha e preparou um chá. Acabou fumando mais um cigarro.  Sentiu vontade de folhear os álbuns de família, como se assistisse a um filme, a uma história de vida. Quando terminou, eram quase três horas da manhã.  Não percebera o tempo passar.
     Voltou para o quarto, fechando a porta atrás de si.  Lavou o rosto, penteou os cabelos e olhou-se longamente no espelho.
     Sentada na cama, fez suas orações, benzeu-se, apagou as luzes e deitou-se.
Minutos depois, o som abafado de um tiro somou-se aos demais ruídos que enchiam o quarto, diminuindo rapidamente - solitário e despercebido.
     Afinal, não seria a notícia da gravidez de sua filha que  faria Eleonora recuar de sua decisão. Três meses antes, ela ouvira de seu médico que sua doença já estava muito avançada.   Se aceitasse se submeter a tratamentos radicais e agressivos, poderia ganhar mais  tempo. Eleonora recusara tudo. Não queria  passar por cirurgias  nem sofrer o horror das quimioterapias e  das radiações. Para ela, tudo continuaria   como sempre fora, com uma única diferença:  ela passara a saber como e quando morreria.

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