João Cabral de Melo Neto
A composição, que para uns é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; que para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composição, tarefa agora dificílima, se quem fala preza, em alguma medida, a objetividade.
Não digo isso somente por me lembrar das dificuldades que podem resultar da falta de documentação sobre o trabalho de composição da grande maioria dos poetas. O ato de poema é um ato íntimo, solitário, que se passa sem testemunhas. Nos poetas daquela família para quem a composição é procura, existe como que o pudor de se referir aos momentos em que, diante do papel em branco, exerciam sua força. Porque eles sabem de que é feita essa força - é feita de mil fracassos, de truques que ninguém deve saber, de concessões ao fácil, de soluções insatisfatórias, de aceitação resignada do pouco que se é capaz de conseguir e de renúncia ao que, de partida, se desejou conseguir.
No que diz respeito à outra família de poetas, a dos que encontram a poesia, se não é a humildade ou o pudor que os fazem calar, a verdade é que pouco tem a dizer sobre a composição. Os poemas neles são de iniciativa da poesia. Brotam, caem, mais do que se compõem. E o ato de escrever o poema, que neles se limita quase ao ato de registrar a voz que os surpreende, é um ato mínimo, rápido, em que o poeta se apaga para melhor ouvir a voz descida, se faz passivo para que, na captura, não se derrame de todo esse pássaro fluido.
A dificuldade maior, porém, não está aí. Está em que, dentro das condições da literatura de hoje, é impossível generalizar apresentar um juízo de valor. É possível propor um tipo de composição que seja perfeitamente representativo do poema moderno e capaz de contribuir para a realização daquilo que exige modernidade de um poema. A dificuldade que existe neste terreno é da mesma natureza de contradição que existe, hoje em dia, na base de toda atividade crítica.
Na verdade, a ausência de um conceito de literatura, de um gosto universal, determinados pela necessidade - ou da exigência - dos homens para quem se faz a literatura, vieram transformar a crítica numa atividade tão individualista quanto a criação propriamente. Isto é, vieram transformá-la no que ela é hoje, antes de tudo - a atividade incompreensiva por excelência. A crítica que insiste em empregar um padrão de julgamento é incapaz de apreciar mais do que um pequeníssimo setor das obras que se publicam - aqueles em que esses padrões possam ter alguma validade. E a crítica que não se quer submeter a nenhum tem que renunciar a qualquer tentativa de julgamento. Ter de limitar-se ao critério de sua sensibilidade, e a sua sensibilidade é também uma pequena zona, capaz de apreender o que a atinge, mas incapaz de raciocinar claramente sobre o que foi capaz de atingi-la.
(Primeiros parágrafos de "A inspiração e o trabalho de arte", conferência pronunciada na Biblioteca de São Paulo, 1952. Em: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994)
Em "Psicologia da composição", João Cabral publicou poemas de 1946-1947. O livro tinha como epígrafe a expressão Riguroso horizonte., de Jorge Guillén.
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O Postigo
A Theodemiro Tostes,
confrade,
colega, amigo
1
Agora aos sessenta e muitos anos,
quarenta e três de estar em livro,
peço licença para fechar,
como fizeste meu postigo.
Não há nisso nada de hostil:
poucos foram tão bem tratados
como o escritor dessas plaquetes
que se escreviam sem mercado.
Também, ao fechar o postigo,
não privo de nada ninguém:
não vejo fila em minha frente,
não o estou fechando contra alguém.
2
O que acontece é que escrever
é ofício dos menos tranquilos:
se pode aprender a escrever,
mas não a escrever certo livro.
Escrever jamais é sabido:
o que se escreve tem caminhos;
escrever é sempre estrear-se
e já não serve o antigo ancinho.
Escrever é sempre o inocente
escrever do primeiro livro.
Quem pode usar da experiência
numa recaída de tifo?
3
Aos sessenta, o pulso é pesado:
faz sentir alarmes de dentro.
Se o queremos forçar demais
eles nos corta o suprimento
de ar, de tudo, e até da coragem
para enfrentar o esforço imenso
de escrever, que entretanto lembra
o de dona bordando um lenço.
Aos sessenta, o escrito adota,
para defender-se, saídas:
ou o mudo medo de escrever
ou o escrever como se mija.
4
Voltaria a abrir o postigo,
não a pedido do mercado,
se escrever não fosse de nervos,
fosse coisa de dicionários.
Viver nervos não é higiene
para quem jé entrado em anos:
quem vive nesse território
só pensa em conquistar os quandos:
o tempo para ele é uma vela
que decerto algum subversivo
acendeu pelas duas pontas,
e se acaba em duplo pavio.
(Poema final de "Agrestes", poemas de 1981-1985)
Mas depois disso ainda vieram muitos poemas. Mais sevilhizados do que civilizados?
Sevilhizar o mundo
Como é impossível, por enquanto,
civilizar toda a terra,
o que não veremos, verão,
de certo, nossas tetranetas,
infundir na terra esse alerta,
fazê-la uma enorme Sevilha,
que é a contra-pelo, onde uma viva
guerrilha do ser, pode a guerra.
(De "Andando Sevilha", 1987-1989)
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Direção de Bebeto Abrantes, 2009. |