Helena
Ruth Lifschits
— Chegou cedo, hein? Deu formiga na cama?
Helena nem respondeu, um olhar bastava. O porteiro que pensasse o que quisesse. Passara a noite em claro na companhia de preocupações e medos. Qual o problema de começar o trabalho mais cedo? Na verdade, muito mais cedo — ainda não eram cinco da manhã.
Tinha-se adiantado e muito.
Pegou o elevador para o décimo quinto andar. Entrou no apartamento e encontrou silêncio e penumbra. Acendeu a luz da cozinha e foi trocar de roupa. Ficou um bom tempo no banheiro: escovou os dentes, lavou o rosto e tentou encontrar um pouco de ânimo e confiança, mas estava péssima. “Vou preparar o café.” Queria oferecer para sua patroa um café da manhã de novela de TV, algo muito especial. Tirou pão de queijo do freezer e arrumou as bolinhas na assadeira. Ligaria o forno às sete. Descascou frutas e cortou em cubinhos para uma salada que serviria com iogurte fresco e coado, espesso como os patrões gostavam. Arrumou os frios numa travessa: mortadela defumada, pastrami e peito de peru. No cestinho de palha colocou fatias de pão integral com sementes de girassol. “O queijo de Minas só na hora. Aí faço o suco de laranja.” Caprichou na arrumação da mesa: louça florida combinando com a toalha de linho rosa.
E Helena tratou de se manter ocupada pois não queria ficar de olho no relógio esperando que a patroa aparecesse.
Regou as plantas da varanda e as de dentro da sala. Deu um jeito nos sofás afofando as almofadas. Tirou pó dos móveis e limpou as mesas de vidro. Voltou para a cozinha - ainda eram seis horas. Varreu, passou pano no chão da cozinha e da área, lavou louça, guardou copos e pratos, arrumou gavetas. Trabalhar, trabalhar para não pensar nos problemas.
E foi passar roupas. Começou pelas camisas, umedecendo bem as de algodão. Pendurava todas em cabides para que esfriassem antes de serem dobradas, evitando assim novas rugas ou partes amassadas.
Mais uma consulta ao relógio: sete e meia e a patroa dormindo. Rita costumava acordar as oito ou oito e meia. Gostava de se demorar tomando café, lendo o jornal, fazendo as palavras cruzadas e o logodesafio.
Oito horas, a mesa do café intocada. O patrão tinha viajado na véspera e só voltaria no final da semana. Sem Maurício em casa seria mais fácil conversar com a patroa e conseguir o que queria. Sabia o que esperar dela: Rita se aborrecia, a voz ficava exaltada e vinham os sermões. Relembrava todos os pedidos de ajuda feitos anteriormente e cobrava as promessas não cumpridas de que tais cenas não se repetiriam. Geralmente ela terminava com “isso me causa muito desconforto, me faz mal. Não sou responsável por seus problemas pessoais e nem por sua família. Quero uma profissional competente dentro de minha casa. Deixe seus problemas lá fora.”
Mas Rita acabava cedendo. Ficava uns dois dias fria e distante e depois tudo se normalizava.
Hoje, mais do que nunca, Helena precisava que ela cedesse . Acabou de dobrar a última camisa e foi tratar dos verdes que tinham vindo do sítio. Lavou as alfaces, a rúcula e o agrião. Secou todas as folhas e guardou nos saquinhos de abrir e fechar – como Rita ensinara.
Fechado o último saquinho, viu que ainda eram nove e meia. “Cadê D. Rita? Será que não está em casa?” Pé ante pé foi até a porta do quarto da patroa e ouviu o som do ar condicionado ligado. Certa de não estar sozinha no apartamento, voltou para a cozinha.
Nove e trinta e cinco e Helena sem nada para fazer. Tomou um copo de café com muito açúcar. Estava agitada, precisava se acalmar. Mas sentiu-se tonta, seu coração estava disparando. Enfiou-se no banheiro decidida a tomar um banho frio para espantar o mal estar.
Rita se levantou às dez e meia. Tomou banho, cuidou do rosto e dos cabelos, vestiu-se e foi tomar café.
Viu a mesa posta com capricho, o rádio ligado tocando música suave, o jornal dobrado. Chamou Helena mas não teve resposta. Procurou-a na sala, mas não a encontrou. “Deve ter ido à padaria”. Sentou-se para tomar café e desligou-se de tudo lendo o jornal e fazendo os jogos com letras e palavras.
Quando o telefone tocou, se assustou de tão absorta que estava. Era o marido. Conversaram um pouco, se desejaram bom dia, beijinhos e até mais. Deu-se conta do adiantado da hora – quase meio-dia e nada de Helena. Desligou o rádio e só então ouviu um barulho de chuveiro aberto. Vinha do banheiro de empregada. Bateu na porta, chamou por Helena, mas só se ouvia a água correndo. Assustada, interfonou para o porteiro pedindo ajuda. E foi um auê. Arrombaram a porta do banheiro e encontraram Helena caída no chão, desfalecida. Chamaram uma ambulância, mas foi tarde. Um enfarte fulminante acabara com a vida da empregada que servira essa família por mais de vinte e cinco anos.
Polícia, perícia, enterro, choro dos filhos de Helena, promessas de ajuda, todos os capítulos que fazem parte dessas mortes súbitas foram sofridos por Rita e seu marido.
Passados uns dias, era hora de abrir espaço para uma nova funcionária. “Vou mandar as coisas da Helena para os filhos.” E foi um joga fora isso e guarda aquilo que durou horas. Exausta, Rita chegou à última peça: o uniforme que Helena estava usando no dia em que passou mal. A faxineira o tinha encontrado num canto do banheiro e o pusera, dobrado, sobre a máquina de lavar roupas. Rita ficou olhando para o vestido desbotado mas inteiro, sem partes descosturadas e com todos os botões. Pegou o uniforme, imaginando Helena dentro dele e sentindo falta daquela cara redonda, muito preta e de olhos de jabuticaba. E achou um bilhete dentro de um dos bolsos. Imediatamente reconheceu a letra irregular e os erros de português,
Dona Rita descupe mais essa é mais uma tentativa minha desesperadora e utima da minha vida já que não consigo falar, eu estou me espressando escrevendo. Eu hoje tenho que voltar para minha casa. A senhora nem sabe estou sem dormir em casa a uma semana com medo dos cobradores. Só a senhora pode me ajudar, pelo amor de Deus. Se não pagar hoje eles vão me matar ou fazer mal a um dos meus filhos. Dona Rita, em nome de Deus eu farei tudo que a Senhora ordenar, serei sua eterna Helena e não peço mais nada nessa vida. Pelos nossos filhos que Deus já levou, eu te suplico e eu pagarei da melhor forma e nunca mais comprarei uma agulha sem te pedir autorização, me perdoe minhas fraquezas, meus erros e me ajuda hoje e eu farei tudo que me pedir. Leia e me da a resposta hoje eu trouse o documento eu prometo nunca mais falar de problema ou qualquer coisa só se a Senhora me perguntar.
Helena nem respondeu, um olhar bastava. O porteiro que pensasse o que quisesse. Passara a noite em claro na companhia de preocupações e medos. Qual o problema de começar o trabalho mais cedo? Na verdade, muito mais cedo — ainda não eram cinco da manhã.
Tinha-se adiantado e muito.
Pegou o elevador para o décimo quinto andar. Entrou no apartamento e encontrou silêncio e penumbra. Acendeu a luz da cozinha e foi trocar de roupa. Ficou um bom tempo no banheiro: escovou os dentes, lavou o rosto e tentou encontrar um pouco de ânimo e confiança, mas estava péssima. “Vou preparar o café.” Queria oferecer para sua patroa um café da manhã de novela de TV, algo muito especial. Tirou pão de queijo do freezer e arrumou as bolinhas na assadeira. Ligaria o forno às sete. Descascou frutas e cortou em cubinhos para uma salada que serviria com iogurte fresco e coado, espesso como os patrões gostavam. Arrumou os frios numa travessa: mortadela defumada, pastrami e peito de peru. No cestinho de palha colocou fatias de pão integral com sementes de girassol. “O queijo de Minas só na hora. Aí faço o suco de laranja.” Caprichou na arrumação da mesa: louça florida combinando com a toalha de linho rosa.
E Helena tratou de se manter ocupada pois não queria ficar de olho no relógio esperando que a patroa aparecesse.
Regou as plantas da varanda e as de dentro da sala. Deu um jeito nos sofás afofando as almofadas. Tirou pó dos móveis e limpou as mesas de vidro. Voltou para a cozinha - ainda eram seis horas. Varreu, passou pano no chão da cozinha e da área, lavou louça, guardou copos e pratos, arrumou gavetas. Trabalhar, trabalhar para não pensar nos problemas.
E foi passar roupas. Começou pelas camisas, umedecendo bem as de algodão. Pendurava todas em cabides para que esfriassem antes de serem dobradas, evitando assim novas rugas ou partes amassadas.
Mais uma consulta ao relógio: sete e meia e a patroa dormindo. Rita costumava acordar as oito ou oito e meia. Gostava de se demorar tomando café, lendo o jornal, fazendo as palavras cruzadas e o logodesafio.
Oito horas, a mesa do café intocada. O patrão tinha viajado na véspera e só voltaria no final da semana. Sem Maurício em casa seria mais fácil conversar com a patroa e conseguir o que queria. Sabia o que esperar dela: Rita se aborrecia, a voz ficava exaltada e vinham os sermões. Relembrava todos os pedidos de ajuda feitos anteriormente e cobrava as promessas não cumpridas de que tais cenas não se repetiriam. Geralmente ela terminava com “isso me causa muito desconforto, me faz mal. Não sou responsável por seus problemas pessoais e nem por sua família. Quero uma profissional competente dentro de minha casa. Deixe seus problemas lá fora.”
Mas Rita acabava cedendo. Ficava uns dois dias fria e distante e depois tudo se normalizava.
Hoje, mais do que nunca, Helena precisava que ela cedesse . Acabou de dobrar a última camisa e foi tratar dos verdes que tinham vindo do sítio. Lavou as alfaces, a rúcula e o agrião. Secou todas as folhas e guardou nos saquinhos de abrir e fechar – como Rita ensinara.
Fechado o último saquinho, viu que ainda eram nove e meia. “Cadê D. Rita? Será que não está em casa?” Pé ante pé foi até a porta do quarto da patroa e ouviu o som do ar condicionado ligado. Certa de não estar sozinha no apartamento, voltou para a cozinha.
Nove e trinta e cinco e Helena sem nada para fazer. Tomou um copo de café com muito açúcar. Estava agitada, precisava se acalmar. Mas sentiu-se tonta, seu coração estava disparando. Enfiou-se no banheiro decidida a tomar um banho frio para espantar o mal estar.
Rita se levantou às dez e meia. Tomou banho, cuidou do rosto e dos cabelos, vestiu-se e foi tomar café.
Viu a mesa posta com capricho, o rádio ligado tocando música suave, o jornal dobrado. Chamou Helena mas não teve resposta. Procurou-a na sala, mas não a encontrou. “Deve ter ido à padaria”. Sentou-se para tomar café e desligou-se de tudo lendo o jornal e fazendo os jogos com letras e palavras.
Quando o telefone tocou, se assustou de tão absorta que estava. Era o marido. Conversaram um pouco, se desejaram bom dia, beijinhos e até mais. Deu-se conta do adiantado da hora – quase meio-dia e nada de Helena. Desligou o rádio e só então ouviu um barulho de chuveiro aberto. Vinha do banheiro de empregada. Bateu na porta, chamou por Helena, mas só se ouvia a água correndo. Assustada, interfonou para o porteiro pedindo ajuda. E foi um auê. Arrombaram a porta do banheiro e encontraram Helena caída no chão, desfalecida. Chamaram uma ambulância, mas foi tarde. Um enfarte fulminante acabara com a vida da empregada que servira essa família por mais de vinte e cinco anos.
Polícia, perícia, enterro, choro dos filhos de Helena, promessas de ajuda, todos os capítulos que fazem parte dessas mortes súbitas foram sofridos por Rita e seu marido.
Passados uns dias, era hora de abrir espaço para uma nova funcionária. “Vou mandar as coisas da Helena para os filhos.” E foi um joga fora isso e guarda aquilo que durou horas. Exausta, Rita chegou à última peça: o uniforme que Helena estava usando no dia em que passou mal. A faxineira o tinha encontrado num canto do banheiro e o pusera, dobrado, sobre a máquina de lavar roupas. Rita ficou olhando para o vestido desbotado mas inteiro, sem partes descosturadas e com todos os botões. Pegou o uniforme, imaginando Helena dentro dele e sentindo falta daquela cara redonda, muito preta e de olhos de jabuticaba. E achou um bilhete dentro de um dos bolsos. Imediatamente reconheceu a letra irregular e os erros de português,
Dona Rita descupe mais essa é mais uma tentativa minha desesperadora e utima da minha vida já que não consigo falar, eu estou me espressando escrevendo. Eu hoje tenho que voltar para minha casa. A senhora nem sabe estou sem dormir em casa a uma semana com medo dos cobradores. Só a senhora pode me ajudar, pelo amor de Deus. Se não pagar hoje eles vão me matar ou fazer mal a um dos meus filhos. Dona Rita, em nome de Deus eu farei tudo que a Senhora ordenar, serei sua eterna Helena e não peço mais nada nessa vida. Pelos nossos filhos que Deus já levou, eu te suplico e eu pagarei da melhor forma e nunca mais comprarei uma agulha sem te pedir autorização, me perdoe minhas fraquezas, meus erros e me ajuda hoje e eu farei tudo que me pedir. Leia e me da a resposta hoje eu trouse o documento eu prometo nunca mais falar de problema ou qualquer coisa só se a Senhora me perguntar.
Rita abraçou o vestido da empregada. Um entendimento doído, misturado a tristeza, saudade, impotência e arrependimento, a invadia por inteiro.
***
Súplica
Maria Tereza Albernaz
No fim de suas forças, depois de gritar e reclamar, já sem vontade de olhar para sua mãe, Helena sentou-se na cama e começou a chorar. Daquela vez, ela sentiu que sua desobediência havia causado muita preocupação. Mas ela havia mentido porque seus pais não entendiam sua maneira de ser. Queria que fosse diferente. E agora outra batalha a enfrentar. Tinha planos para passar o fim de semana com os amigos em uma casa de praia. Precisava decidir sobre esse assunto, principalmente depois da conversa que havia acabado de ter. Queria muito não fazer essa viagem escondida. Assim, respirou fundo, limpou com a mão seu rosto coberto de lágrimas, aproximou-se e falou manso:
Por favor, mamãe, me escute, eu te imploro. Pense, antes de tudo, que eu adoro minha família, não quero fazer ninguém sofrer, mas tenho 14 anos e não sou mais criança. Tente ouvir até o fim tudo o que tenho a falar.
A minha turma organizou um fim de semana na praia. Vamos dormir na casa do pai do Bento. Você sabe como a família dele é complicada, mas deixaram que nosso grupo ficasse lá, mesmo sem adultos. Somos sete amigos. Imagine só, mamãe, a Norma, mãe dele, vai sair de casa para viver com outro homem e não quer levar os filhos. Não saiu ainda não, só avisou. São quatro filhos e ela vai morar em outro país. O pai, pelos cantos, chora sem parar. O Bento nos disse que ouviu o pai gritar que, de jeito nenhum, vai ficar sozinho com tantas crianças. Pode imaginar a confusão? Todos na casa estão atordoados, surpresos. Nunca podiam imaginar ver o pai desesperado, chorando como se fosse o fim do mundo. Foi pior que a notícia da mãe. Claro que eles se arranjariam, mas o pai só falava bobagens.
Nós, os amigos, precisamos ajudar. O Bento quer fugir, ir para longe da casa de doidos onde está vivendo. Não suporta mais a discussão, a gritaria, o pai chorão, antes tão senhor de si, tão intransigente. Então, bastou o filho comunicar que iria viajar para a praia e ninguém perguntou nada.
Assim, mamãe, eu te suplico, eu te imploro, me deixa ir para a praia com meus amigos, por favor. Eu já sei cuidar de mim. Não me trate igual a uma criança. Eu percebo que a situação é séria. Está enganada se pensa que essa viagem será fácil para mim. Vamos tentar animar o Bento, mas sabe-se lá se ele vai querer se divertir. É um drama.
A mãe de Helena suspirou. “Eu vou.”, Helena decidiu-se.
A mãe de Helena apertou os lábios. “Eu vou, tá?”
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