17 de novembro de 2011

Ouvir vozes

Ferreira Gullar - Folha de São Paulo, 13 de novembro de 2005.
          O poeta Décio Victorio, meu velho e querido amigo que você não conhece, que quase ninguém conhece e que não quer ser conhecido, trabalhou certa época como acompanhante de pacientes do Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro. Trabalhava no pátio da clínica, onde os internados passavam boa parte do dia entregues a suas fantasias, falando sozinhos ou andando à toa. Décio, responsável e solidário, fazia tudo para ajudá-los, e foi com esse propósito que pediu a Aniceto que lhe fizesse um terno. Aniceto fora alfaiate de profissão até o dia em que a mulher o abandonou e ele sofreu um surto que já durava 20 anos. Ele aceitou a proposta de Décio, que, no dia seguinte, já lhe entregava um corte de brim para que pusesse mãos à obra. Ocorreu que, naquele mesmo dia, um avião passou sobre o pátio e “disse” a Aniceto que o paciente sentado ali a seu lado é que tinha lhe roubado a mulher. Sem hesitar, o alfaiate traído saltou sobre o acusado, disposto a estrangulá-lo. Os enfermeiros acudiram e, depois de dominá-lo, aplicaram-lhe um sossega-leão.
          Como advertia minha avó Teca, não se deve dar crédito a tudo o que se ouve, especialmente se dito por um avião. Mas esse é um conselho a que as pessoas não costumam dar ouvidos. Já antes de Homero, os gregos atribuíam aos oráculos o dom de não só dizer a verdade como até de adivinhar o futuro. Às vezes eram as sibilas, que falavam coisas incompreensíveis, mas, antes delas, o povo dava ouvidos ao rumorejar das águas de um riacho que corria entre as raízes de um carvalho e até mesmo ao farfalhar das folhas desse carvalho tido como sagrado. Ali estava um sacerdote para decifrar a mensagem das águas ou dos ramos, como também decifrava o que diziam, em transe, as sibilas do Oráculo de Delfos.
          Mas de onde vem essa crença de que vozes incompreensíveis estão dizendo verdades? Talvez venha da necessidade que temos de conhecer a verdade última, de antever o futuro, de decifrar o mistério da existência. Essa é uma questão complicada que envolve a própria natureza da linguagem verbal, veículo do logos; essa linguagem, que torna inteligível o real, não satisfaz entretanto nossa necessidade de decifrá-lo e, por isso, quem sabe nos induza a admitir que a linguagem hermética contém a expressão do mistério – seja a expressão dele. De qualquer modo, por ser hermética, necessita de um tradutor, ou seja, do sacerdote que diz entendê-la e decifrá-la.
          Essa pode ser a razão por que, não apenas a gente simples acreditava no que diziam os oráculos, mas também um filósofo como Heráclito de Éfeso para quem, naquela voz, falava um deus: “E a Sibila que, de sues lábios delirantes, diz coisas sem alegria, sem ornamento e sem perfume, atinge com sua voz além de mil anos, graças ao Deus que nela está.”é certo também que, num aforismo seguinte, ele adverte que “os olhos são testemulhas mais exatas que os ouvidos”.
          Os ouvidos enganam, nos dão a possibilidade de crer no inexplicável, o que é um modo, senão de entendê-lo, ao menos de assimilá-lo. Assim, acreditamos que certos ruídos ou sons naturais também são manifestações de alguma entidade superior. Para nossos índios, por exemplo, o trovão era a voz de Tupã, uma manifestação de sua zanga, enquanto para outras gentes, os uivos do vento nas noites de tempestade soavam como os lamentos de almas penadas. O temor pode nos vir também da garganta de um pássaro, como por exemplo daquele que, na São Luís de minha infância, era conhecido por Rasga Mortalha e que passava gritando assustador, à noite, sobre o telhado de nossa casa.
          Dependendo de quem as ouve, muito podem as palavras, especialmente quando ditas por um corvo (Never more) que fale inglês ou por um papagaio que fale tupi-guarani, como no caso que nos conta Pedro de Magalhães Gandavo em sua “História da Província Santa Cruz” (1576). Os guerreiros de uma tribo invadiram uma aldeia inimiga, trucidando seus moradores, mas quando já estavam a um passo da vitória definitiva, ouviram algumas palavras ditas por um papagaio, tomaram-se de pavor e saíram correndo todos.
          É verdade que o avanço do conhecimento empírico, a descoberta das causas dos fenômenos naturais, veio pouco a pouco calando aquelas vozes, retirando-lhes o significado oracular ou meramente assustador. Os poetas – e os pirados - , não obstante, continuam a dar a elas outros significados que os dos oráculos ou, no dizer de Mallarmé, emprestam “um sentido novo às palavras da tribo”. Augusto dos Anjos, com freqüência, ouvia a voz do próprio incriado, a que chamou de “Último Número”, o qual, atro e subterrâneo, bradou a seus ouvidos: “Não te abandono mais, morro contigo”.
          Eu também, modéstia à parte, às vezes ouço vozes, muitas vozes, mas nada assustadoras: vozes inofensivas de perfumes e manhãs, de sabores, de olhares, de peles, de um roçar de cabelos – um alarido que me dorme abafado no corpo. Os poetas não são sacerdotes, mas podem à sua maneira entender o que fala o vento nas folhas, como Fernando Pessoa, para quem “a brisa / nos ramos diz / sem o saber / uma imprecisa / coisa feliz”.
***
MUITAS VOZES
Meu poema
é um tumulto:
    a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.

(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:

se dizes pêra,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
    ou
se azul disseres,
pode ser que se agite
    o Egeu
em tuas glândulas)

    A água que ouviste
        num soneto de Rilke
    os ínfimos
    rumores no capim
        o sabor
        do hortelã
    (essa alegria)
    a boca fria
    da moça
        o maruim
    na poça
    a hemorragia
        da manhã

        tudo isso em ti
    se deposita
        e cala.
    Até que de repente
    um susto
        ou uma ventania
    (que o poema dispara)
                chama
    esses fósseis à fala.

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

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